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lucamacdoiss.com.br 1 Contos Singulares Contos luca mac doiss Conto n.o 3: Utopia : <utopia!-utopia?> Copyright by luca mac doiss (registrado na ABN) lucamacdoiss@gmail.com www.lucamacdoiss.com.br <utopia!-utopia?> Simão Bacamarte, não o alienista, mas um cientista do mundo, como costumeiramente se apresentava, um cartógrafo dos bons, desses de desbravar mato sem trilha, de entrar em rio que não dá pé, de subir em montanha sem teto, de voar em aeroplano penso, até desses de rasar plantações no meio do nada deste país ainda por terra a descobrir, por povos a se apresentar. Trinta e três anos, ainda não se firmara em parada alguma, por pura veia vibrante por aventura; quase se casara por três vezes, nenhuma delas suportou mais que duas viagens de acompanhante, de parceira, ficaram no porto mais próximo. Doutor em ciências da Terra, doutor em ciências humanas; justos títulos adquiridos aqui e em faculdades da França e Inglaterra. Viajado, experimentado, por todos os continentes, pelos lugares mais escondidos. Fazia mapas dos bons, por encomenda, por sustento, mas procurava por gente, por interesse, por prazer. Sentia-

lucamacdoiss.com.br 2 se bem na convivência com povos de vida primitiva, sentia-se bem com camiseta e pé no chão; sentia-se sufocado em grandes cidades, sentia-se apagado com gravata e sapatos engraxados. No terceiro dos três anos dedicados exclusivamente para trabalho e prazer no Brasil, uma encomenda que viera de encomenda mapear os rios das divisas do Pará, do Amazonas e do Mato Grosso o levou a Guarantã do Norte, a cidade escolhida como base para o estudo. No terceiro dos três dias dedicados a sobrevoar o vértice do triângulo de lados de água e base imaginária de mata, o piloto Tapajó, apelido do nascido Raimundo Tenório, filho de grande chefe Kaxinauá, mostrava-se triste, triste por ser o último dia em que voaria com o então grande amigo Simão. O aviãozinho alugado do patrão, fazendeiro da região, trouxe o piloto de experiência comprovada de horas e horas, que aprendera o ofício com o antigo piloto da família, o capataz Ferreira. Com o assassinato do Ferreira, por um marido traído poucos meses, então, fazia, assumiu o posto o aluno; piloto certificado pelo patrão em um voo a Itaituba. Saudade dos bacuris e de minha Lua, foi o que disse Tapajó, quando perguntou, preocupado, Simão, por que perdera a alegria contagiante o amigo. Saudades dos dois filhos pequenos e da índia Lua Cheia. Simão, com os olhos embaçados, lembrou-se de Mariana, a terceira, a que mais se aguentou junto a ele, deixada no porto de Santarém, dias antes. Aí ficaram os dois, por minutos, calados: um olhando para o céu, a sonhar com a Lua, castigado pelo Sol; outro olhando para o horizonte, sonhando com o brilho de Mariana, castigado pelos raios de sol. Horas depois, o avião sobrevoava o verde triângulo na direção do vértice; quando, de repente, pesadas nuvens chegaram pela esquerda e pela direita, criando um corredor iluminado pelos raios solares. Se fosse Simão um matemático, poderia medir a altura do triângulo isósceles,

lucamacdoiss.com.br 3 pois o avião seguiu a perpendicular traçada pelo sol, tentando escapar das nuvens que, então, uniam forças para pegar o rabo do pequeno aparelho, invasor de espaço alheio. Sem aparelhos de voo, sem condições de se guiar pelas referências cardeais, Tapajó aprumou o bico do aero para a boca do funil de nuvens, para a luz, que cada vez se tornava mais fraca. Daí em diante, somente aguardavam o pior, o desfecho fatal, os dois ocupantes do aparelho. Um rezava, suplicava ao deus da mata um milagre; outro não rezava, não acreditava em milagres. Quando os sinais de que existe um Sol para a Terra desapareceram, quando uma árvore, dentre milhares que cobriam cada centímetro do terreno abaixo deles, era o que se presumia como o destino mais provável para o fim da viagem, um grande vale surgiu no meio da densa floresta. Após uma pequena elevação do terreno, não uma montanha, um monte, o vale os engoliu, no meio da prece, no meio da surpresa. Um vale que não constava de nenhum mapa, que não devia estar ali; mas, no trago do vale, o aeroplano, por diferença de pressão atmosférica, perdeu altitude repentinamente; as asas agitavam-se desesperadamente para livrar o corpo do desastre; as hélices torciam o nariz do avião tentando levantá-lo; tudo gorava, todo o esforço dos membros era em vão. Tivera Simão experimentado quedas bruscas de altitude, não uma vez, diversas vezes em voos pelo mundo, até em céus de brigadeiro, mas dessa vez sentiu que não ia escapar. Tapajó, ainda sem perceber a profundidade do vale, acreditou que estava sendo abocanhado pela terra. Então, o avião sustentou-se a uns cinquenta metros do solo: por habilidade do piloto, pensou Simão; pela mão do deus, acreditou Tapajó. Nesse instante, como parte do pacote milagre, eles avistaram uma clareira, propositadamente no vale aberta: um retângulo de duzentos e poucos

lucamacdoiss.com.br 4 metros por aproximados quarenta. Antes do pouso, Simão, em um bater de olhos, estimou as dimensões do vale: uma depressão de mais de cem metros em relação ao nível da superfície que antes sobrevoavam; um terreno plano com diâmetro aproximado de três quilômetros. O avião pousou, até, com certa facilidade, incerta era a probabilidade de pousá-lo, na clareira que gentilmente se oferecera a eles. Nem bem o motor do aeroplano foi desligado, o carrancudo céu torceu todas as nuvens em cima do vale. Foi uma hora de chuva, de muita chuva, não conseguiam Simão e Tapajó ver um nariz da parte de fora do avião. No minuto seguinte à interrupção da chuva o céu abria-se em azul e o Sol, desesperado, não economizava energia para recuperar as ingratas nuvens para o acolhedor céu. Após saírem do avião, Simão e Tapajó perceberam que levantar voo seria uma tarefa das mais difíceis, das mais arriscadas. O vale, até onde se podia avistar, era cercado por um paredão de mais de noventa, de cem metros; no lado oeste havia uma extensão de mata de uns cinquenta metros, a menor distância entre o limite da menor dimensão da clareira e o paredão; na face leste a visão do paredão era coberta por uma densa mata. Então, com os pés fincados no chão e os olhos fitados no alto, Simão presenciou um fenômeno único, jamais visto por ele: a água despejada pelas nuvens era devolvida ao céu, por evaporação, em uma velocidade surpreendente; por dedução, explicada pela alta temperatura do solo e pela umidade excessiva do ambiente, formada pela torrencial chuva. E, o melhor, o mais raro: o denso vapor, quase gotículas, emergindo do solo e os raios lançados com energia pelo Sol criaram uma atmosfera

lucamacdoiss.com.br 5 singular, formaram uma calota de névoa esférica que cobriu todo o vale. Era como se o vale fosse protegido contra as interações ambientais externas por um material transparente, uma espécie de plasma; sim, uma camada esférica de gás rarefeito cobria todo o vale. A visão encantadora do vale totalmente coberto pela calota da pesada névoa deixou Simão extasiado, e, o fenômeno explicava a razão de o vale não existir em mapa algum, de o vale não ter sido descoberto até então, pois para isso era necessário um sobrevoo rasante pela mata da região. Decidiram: enquanto Tapajó verificava o avião, Simão atravessou a pequena extensão de mata em direção ao paredão, na tentativa de localizar um ponto mais alto para visualizar todo o vale. Descobriram: o rádio do avião não funcionava e o trem de pouso, melhor, pior, o trem de decolagem estava impossibilitado de atuar os pneus dianteiros estavam danificados, junto duas das barras do dispositivo ; e, o vale era totalmente cercado pelo paredão de altura em torno de cem metros; verificou Simão após conseguir, com muito esforço, escalar o paredão até uma altura de trinta metros após esse ponto era impossível continuar subindo sem a ajuda de equipamentos de alpinismo, e muito arriscado, mesmo para profissionais dessa área. A única boa notícia era que a mata do outro lado da clareira tinha, também, uma pequena largura; melhor, na maior parte do vale, na área central, não existia mata; infelizmente não sabia dizer que tipo de vegetação ali havia, se é que havia alguma, pois Simão somente conseguiu ver que a mata não tinha uma larga extensão. * * * * * Enquanto ouvia Tapajó, Simão notou uma movimentação dos

lucamacdoiss.com.br 6 arbustos da mata oposta à explorada por ele. Fixou a atenção e percebeu três rostos misturados à folhagem. Como aprendera nas aventuras por este mundo, disse em alto e pausado som: Amigos. Somos amigos. Paz. Viemos em paz. Ajuda. Precisamos de ajuda. Amigos. Disse e levantou os braços, sendo seguido pelo amigo, demonstrando não apresentarem risco algum aos curiosos olhos, prováveis habitantes da região. Em resposta ao ato, em entendimento à mensagem, do meio dos arbustos que cercavam a clareira surgiram três jovens, aparentando terem idades em torno de doze anos; temerosos, com certeza os estranhos lhe metiam medo, simplesmente por serem estranhos, mas, acima de todos os temores, curiosos, e, calados, não emitiram nenhuma palavra ao se aproximarem, com todo o cuidado, com passos medidos e pausados. Os três adolescentes vestiam-se com roupas simples: calções calça curta com comprimento até os joelhos e camisas sem botão, parecida com camisa de pagão, de mangas curtas de algodão cru; e, sandálias de couro com tiras de tecido dobrado enroladas até o meio da perna. Para não serem vistos como intrometidos, como rudes hóspedes, não fizeram os dois amigos perguntas a respeito da vida dos jovens; como apareceram ali? viviam ali? : perguntas que ficaram para um momento oportuno. Ali, naquele vale que aparentava ser de difícil acesso, até mesmo difícil de ser descoberto, um local de difícil conexão com o mundo externo. O mais provável era que ninguém vivesse naquele vale dedução baseada na experiência e capacidade de observação do Simão ; se certo estivesse, os jovens deveriam ter conhecimento de como ali chegar, de como sair do vale, e, de como achar alguém que os pudesse ajudar a consertar o avião.

lucamacdoiss.com.br 7 Simão, então, perguntou se eles sabiam de alguém que pudesse ajudá-los. Os jovens ficaram na resposta direta: Sim ; e começaram a caminhar em direção ao centro do vale, insinuando que os amigos os seguissem. À única pergunta, então no meio da mata, que um dos jovens fez, e fez em poucas palavras: O grande pássaro? que é?, Simão respondeu com fáceis palavras: Um avião, um aparelho para o homem voar como pássaro. À observação de outro jovem: Nós o vimos cair com a chuva, Simão completou com sábias palavras: O aparelho não sabe voar tão bem como o pássaro. Em poucos minutos eles chegavam ao fim da densa mata. Para surpresa dos amigos, a uns cinquenta metros adiante existia uma área cultivada com trigo e milho; mas a maior surpresa tiveram ao vencer o corredor de quase cem metros que separava o crescido milharal do dourado trigal: escondido, atrás dos altos pés de milho, um grupo de casas, iguais, de madeira, nem pequenas nem grandes, dispostas em linha; quinze casas para ser exato. E, perpendiculares às casas: dois galpões; a direção tomada pelos rapazes que os guiavam, calados desde a pergunta na mata. Calados, e sem menção alguma de abertura para perguntas dos estranhos. Ao tempo de percorrerem cem metros, de passarem em frente de doze das casas, não viram nenhuma pessoa; viram, sim, cabras, cachorros, galinhas; soltos, misturados; sentiram, sim, que eram observados por pessoas, por olhos escondidos às cortinas das janelas das casas. Um dos galpões era um local de convivência para reuniões, celebrações e refeições; no fundo existia uma cozinha, com uma grande mesa retangular e um fogão a lenha. O segundo galpão era dividido ao meio por uma parede; servindo, uma metade, como depósito de ferra-

lucamacdoiss.com.br 8 mentas e utensílios e, a outra metade, como estoque de alimentos, principalmente de grãos. Atrás das casas existia uma farta horta de verduras e legumes, e atrás dos galpões, um sortido pomar. * * * * * No Espaço de Convivência, o primeiro dos galpões a partir da fila de casas, Simão e Tapajó foram recebidos por dois homens, que mostraram rugas de preocupação, mas não marcas de estarem surpreendidos pela chegada dos estranhos. Um dos jovens foi logo dizendo: Pai, encontramos esses dois estranhos na Aurora. Eles vieram em um grande... Antes que a frase fosse completada, um dos homens respondeu que já sabia que e como haviam chegado os dois estranhos; resposta acompanhada de um forte sotaque alemão. O outro homem pediu aos jovens que os deixassem a sós com os estranhos; pedido que veio com um forte acento paulistano. Ao fundo do galpão um casal de japoneses limpava legumes e um outro casal, de italianos, armazenava cuidadosamente belas maças e graúdas laranjas em prateleiras de madeira. Ao se sentarem em bancos de madeira dispostos ao lado da entrada, Simão apressou-se em se desculpar, por atrapalhar os afazeres das pessoas daquela localidade. Não quis nesse momento, ainda, fazer as perguntas que gostaria, por ter certeza de que acabaria por ter as respostas às inúmeras indagações, que pairavam à ponta da língua, a tempo. Mas não se absteve de perguntar como podia ele se referir àquela comunidade. Ele não se conteve em usar a palavra comunidade, pois era óbvio que ali existia um grupo de pessoas vivendo dentro de uma formação social com características próprias, com regras consensuais. E, sem interrupção, disse que precisavam de ajuda, pois o trem de pouso do avião estava danificado.

lucamacdoiss.com.br 9 Após se apresentarem, Joseph e Fernando, disseram que os estranhos... Simão e Tapajó interrupção informativa de Simão... que eles eram bem-vindos e que iam ajudá-los, mas antes gostariam de oferecer algo para beberem e comerem. Nesse instante o italiano, Rossi, trazia água, e, uma bandeja com pães e uma fumegante broa de milho, que foram postos na mesa ao lado dos bancos. Não havia como nem por que não aceitar. Ao Simão dizer: Muito obrigado, Fernando disse: Utopia. E, após a expressão facial de não ter entendido de Simão, completou: Nossa comunidade, Utopia, é como a denominamos. Depois de haverem saciado a fome, os visitantes foram levados a uma das casas, a décima quinta, a mais próxima do Espaço de Convivência, para o asseio e para descansarem um pouco. Essa casa era a mais nova, construída havia pouco tempo, explicou Fernando, seria usada por um casal de jovens que casariam em meses; mas eles, os visitantes, podiam ficar à vontade. A casa tinha dois quartos, uma sala e um banheiro; nela somente móveis básicos, simples, artesanais, feitos basicamente de madeira e couro; não havia cozinha, visto que Utopia tinha uma só, a comunitária. Joseph havia prometido ajudar Simão e Tapajo, e que, mais tarde, ao entardecer conversariam com tempo a dispor, quando então os serviços da fazenda estariam feitos. Fazenda!?, perguntou, surpreso, Simão. Sim, Fazenda Utopia, respondeu Fernando. Nós dizemos Fazenda, quando queremos nos referir ao local físico, e Utopia, quando queremos citar a sociedade, a relação entre as pessoas, a vida em grupo, a vida como a idealizamos. Aprendeu Simão, também, que das quinze casas, treze eram habitadas e a décima quarta era usada como escola. E lá se ensinava, além de todas as matérias básicas das escolas regulares, o Inglês, o Alemão e o

lucamacdoiss.com.br 10 Japonês. Aqui um comentário relevante, de Fernando: O conhecimento de diferentes Línguas ajuda muito no entendimento das relações do Homem com o meio ambiente, com o mundo, comentário ao qual Simão fez questão de dizer que assinava embaixo. * * * * * Enquanto os visitantes descansavam, os três jovens que os trouxeram até a fazenda reuniam-se com Fernando, Joseph e Akira. O que vocês disseram aos estranhos? Nada! Nada? Nada não. Só perguntamos o que era o aparelho em que haviam chegado. Eles perguntaram sobre nós? Não, não fizeram nenhuma pergunta, só pediram que os levássemos a alguém que pudesse ajudá-los. Bom. Isso é bom. Pai, gostaríamos de saber como eles chegaram aqui, quero dizer, de onde eles vieram? Uma vez que nos foi ensinado que não podemos sair do vale. Se sairmos, morreremos, pois o ar fora do vale é impróprio à vida humana; à vida animal, melhor dizendo, disse Marcelo, um dos jovens, ao Akira. Sim. É verdade! Nós vamos conversar com os estranhos para descobrirmos de onde eles vieram. Filho, por favor, é importante, nós pedimos a vocês que não conversem com os outros meninos sobre esse assunto. Tudo bem, mas quem são eles? Vieram de outro planeta? Pois

lucamacdoiss.com.br 11 nos foi ensinado que éramos os únicos, os últimos seres humanos da Terra. Pelo visto, nesse ponto, estávamos enganados. Deve haver outros seres humanos vivendo na Terra; outras pessoas devem ter sobrevivido à destruição do Ambiente Terrestre pelo Homem. Nós vamos descobrir, amanhã. Hoje, o melhor que vocês tem a fazer é irem cuidar de seus deveres escolares. * * * * * Simão e Tapajó deduziram que a chegada deles ao vale, à Fazenda Utopia, não era um fato desejado, tampouco fora previsto, mas as pessoas que ali viviam eram pessoas civilizadas, pessoas do bem; os dois não corriam nenhum risco por ali estarem. Sabiam, no entanto, que teriam de aguardar na casa até serem convidados a sair, provavelmente para a refeição da tarde o jantar, uma vez que ali não havia rede de energia elétrica; talvez, gerador. Simão havia visto suportes com tochas na frente das casas e dos galpões; provavelmente os dali conseguiam produzir algum combustível, provavelmente do milho. Pela janela, puderam ver que teriam no máximo mais duas horas de sol. Quem são eles? Boa pergunta. O que posso dizer é que: são pessoas de bom nível de instrução, provavelmente diplomados. Eles mostram uma preocupação com a educação das crianças e dos jovens que jamais vi em canto algum deste país. É, mas uma formação superior não é garantia de boa índole. Verdade, meu dileto amigo. Mas pela recepção que tivemos, tenho certeza de que são pessoas do bem. Descanse, esteja tranquilo, em breve você estará com a Lua e com os bacuris.

lucamacdoiss.com.br 12 Estou tranquilo, sei perceber um perigo de longe. Ah! O que significa utopia? Um sonho. Um desejo impossível, como o de eu ter novamente a minha vida de criança; pensando bem, como qualquer criança de hoje ter a minha vida de criança; sem televisão, sem computador, sem... Não há oh gente oh não, Luar como este do sertão, cantou o índio. (2) Você aprende rápido. Considerando que o Homem acabou com o sertão... com as matas, com as palmeiras... nem os sabiás terão onde cantar... sem palmeiras, sem sabiás, sem poetas. * * * * * A conversa entre os visitantes e os comunitários, a cada momento parecia mais fácil, menos necessária de ser uma longa e cansativa sessão de indagações e explicações; pois para uma pessoa inteligente e vivida, como Simão, cada descoberta de um hábito, cada palavra ouvida, cada interação entre as pessoas, o levava a deduzir, a conhecer como viviam aquelas pessoas. O jantar, então, muito esclarecedor, para conhecerem os hábitos de Utopia: à mesa todos os membros da sociedade, treze casais e vinte e seis filhos com idades entre seis e doze anos; apenas um jovem casal aparentava idade em torno de dezessete anos; jovens que, bem juntinhos, trocavam cúmplices olhares. A comida estava posta, quando os dois convidados chegaram: vegetais diversos; legumes crus e cozidos, variados; lasanha de brócolis; suco de laranja e um delicioso pudim de sobremesa tudo que um bom vegetariano tem direito. Antes de saborearem as iguarias, cada um dos adultos se apresentou. A sociedade era formada por três médicos, dois agrônomos, dois dentistas, dois engenheiros mecânicos, um engenheiro

lucamacdoiss.com.br 13 civil, três economistas, dois veterinários, dois professores, um técnico e- letrônico e donas de casa, melhor, ex-donas de casa conforme elas, com refinado humor, enfatizaram. Pessoas de diversas profissões e de diversas nacionalidades: italiana, alemã, espanhola, portuguesa, japonesa, inglesa e, a maioria, brasileira. Bem, mas fizeram questão de explicar que ali todos tinham iguais obrigações, que a formação profissional do passado não dava nenhum privilégio a quem quer que fosse, apenas indicava a função certa a ser desempenhada para o bom andamento da Fazenda. Mas, não há como esconder um fato: o Tapajó só gostou da lasanha, mesmo assim gostaria que nela houvesse uma cobertura de carne ou uma camada de presunto, onde já se viu? não comem carne, nem peixe!, comentário feito ao pé do ouvido de Simão. O que ficou evidente para os visitantes foi o bom humor que reinava à mesa; um bom humor resultante da felicidade de estarem aquelas pessoas ali, do prazer por compartilhar momentos com os amigos, com os iguais. Sorrisos, risos, gargalhadas, a- té, eram oferecidos de graça. * * * * * Porém, como alegria e dor andam de braços dados, voltemos no tempo: antes de os estrangeiros chegarem, uma conversa entre os adultos da comunidade mostrou a enorme preocupação que trazia a presença dos dois ali em Utopia. Estamos em uma sinuca de bico, não existe uma boa solução: temos de deixá-los partir e corrermos o risco de falarem sobre a existência de nossa comunidade; assim, com certeza, outros virão e será o fim de nosso sonho; nossos filhos vão querer conhecer o mundo exterior. Sem nossos filhos, Utopia perde o sentido de existir. O grande risco, o que de certa forma já ocorreu, é se eles fala-

lucamacdoiss.com.br 14 rem a respeito da vida deles, do mundo deles a nossos filhos. As crianças vão, um dia, querer ter a experiência de viver lá fora. Isso temos de evitar a todo custo. Nossos filhos não podem ouvir as histórias desses dois. É imperativo, nós não temos opção, vamos ajudá-los a partir o mais rápido possível. E, vamos contar a eles por que estamos aqui, no que acreditamos, o que buscamos com Utopia. Quem sabe, eles se sensibilizem com a nossa causa e prometam não contar a ninguém de nossa existência. Mas, por favor, Joseph e Fernando, vocês que vão conversar com eles, não mencionem a Caverna. A Caverna, a única passagem para fora do vale, um segredo dos adultos; desconhecida pelos filhos. Localizada no lado Sul do paredão, com um amplo salão, onde estavam escondidos os dois aviões da comunidade. * * * * * Após o jantar, noite formada então, Fernando e Joseph chamaram Simão e Tapajó para um passeio em frente às casas. A lua nova e as tochas acesas deixavam o ambiente com um aspecto de um lugarejo inglês da era medieval. Você quer dizer que a única saída deste vale é pelo alto, com o uso de uma aeronave ou escalando esses altos paredões? Sim. A boa nova é que o Fabiano e o Gilberto foram examinar o avião, e, eles acreditam que possam consertar o trem de pouso em poucos dias, dois ou três. Ótimo! Muito Obrigado. Queremos, não em troca, porque de qualquer forma nós os a-

lucamacdoiss.com.br 15 judaremos, mas gostaríamos da compreensão de vocês a um nosso pedido... Por favor, faremos o que vocês pedirem. Pedimos que não contem nada da vida fora deste vale, da vida de vocês, a nossos filhos, aos adolescentes, principalmente, e, tomem cuidado ao conversar com os três jovens que trouxeram vocês, pois esses estão muito curiosos. E, também, que não falem aos seus que vocês nos encontraram, que não contem de nossa existência, aqui, neste local. Vocês não querem que falemos de vocês. Mas pelo menos podemos saber a razão, do que vocês têm medo? O que vocês querem preservar? Embora o que vocês querem preservar eu já saiba, basta ver a vida que vocês levam, a vida saudável, física e social, e, mental, um dia aqui e minha mente está bem mais leve. É justo. Amanhã cedo contamos a vocês toda a história, com calma, agora já está ficando tarde, é melhor eu levá-los à casa em que estão hospedados, pois em meia hora as tochas serão apagadas. * * * * * Não que tenha sido uma surpresa a história ouvida, no dia seguinte, por Simão, pois, então, ele a tinha presumida, quase toda, mas a coragem de partir para uma vida desconhecida e, principalmente, de largar tudo, família e todos os bens materiais acumulados por anos, por gerações, até, era admirável. Quantos desfalecentes, velhos, à extremaunção, agonizantes, não conseguem renunciar ao que as mãos não podem mais reter? E, a iniciativa de fazer, de construir uma vida, um lar começando do zero, invejável. Abrir mão do luxo; dispensar a facilidade em ter alimentos, roupas, moradia, serviços domésticos, e tudo mais; virar as costas para a tecnologia, cinema, televisão, Internet, celular, I...anything:

lucamacdoiss.com.br 16 quantos que podem ter tudo o que querem bastando somente esfregar o cartão de crédito na fuça do capitalismo e ter algumas unidades monetárias abaixadas da astronômica conta bancária, sem se fazer notar, sem fazer cócegas põem calos nas mãos? Antes da história. Ao acordarem bem cedo, sete horas da manhã, Simão e Tapajó foram surpreendidos por Thomas, o inglês, que lhes trazia dois calções e duas batas, azuis: Vamos, meus amigos, vistam estas peças. Estamos esperando por vocês para nosso exercício de toda manhã, então, os hóspedes correram os olhos até a frente do galpão principal, e, lá estavam todos, adultos e filhos, fazendo exercícios de aquecimento, uma vida sadia começa com um corpo sadio. Os comunitários haviam acordado às cinco e àquela hora tinham todos os afazeres da manhã realizados. Foi no momento em que olhou para o relógio, que trazia no pulso, que Simão realizou que nenhum membro de Utopia usava relógio, nem joia alguma, nem uma simples bijuteria, nem um simples anel, nem um singelo colar. Nesse tempo todo ali não vira nenhum deles, nem nenhuma mulher, usando algum ornato, uma simples pedra que fosse. O relógio de Simão e o de Tapajó eram os únicos da Fazenda. Motivo, até, de risos escondidos das crianças, que sabiam o que eram aqueles objetos, por livros, por lições dos mestres, mas tinham aprendido que o ornamento individual fora um dos males da extinta humanidade; um sinal de exibição, de poder. Após uma boa caminhada e alguns exercícios em aparelhos diversos espalhados pelo percurso, um reforçado café da manhã os aguardava: pães, manteiga, iogurte e leite de cabra. Então, finalmente, a tão aguardada história.

lucamacdoiss.com.br 17 * * * * * Sem mais delongas, a prometida história, contada por Fernando e Estevão, um ex-paulistano, outro ex-carioca: Um grupo de amigos, e amigos dos amigos, por meses discutiram a respeito da qualidade de vida que tinham e as alternativas para melhorá-la: A vida nas grandes cidades: insuportável, tempo precioso de uma curta vida jogado fora todo dia; até em dias de fim de semana, quando o tempo de lazer é espremido entre horas perdidas em estradas e em cidades, com o pesado e arrastado trânsito. A sociedade: cada dia mais individualista, mais materialista, mais desigual, mais fechada, mais etiquetada, mais tudo, mas tudo de ruim. O poder norteando o Homem, o poder da riqueza material, o poder de ter o melhor e o melhor dos carros, a maior e a maior das mansões. As dez mais invejáveis personalidades são pessoas que conseguiram o primeiro bilhão antes dos trinta, as quais fazem parte do almejado, do invejável grupo dos UB Ultimate Being. Todo poder é medido em dinheiro. Uma sociedade com poucos majoritários que retiram dela os grandes lucros e uma multidão de minoritários que fica com o prejuízo. A política: a cada palavra do fazer para o povo, o Governo mais se distancia do povo, mais pisa o povo. A classe trabalhadora e os empresários cada dia têm de contribuir com uma quantia maior para um Governo cada dia maior, mais inchado, mais pesado. Uma política feita de egos inflados e interesses privados. A religião, a educação, a saúde, a segurança, o meio ambiente... bem doentes. A inveja, a vaidade, a ostentação, a corrupção, o consumo, a hipocrisia, o interesse privado... bem fortes. Sem saída, sem alternativa... começar do zero, em um lugar

lucamacdoiss.com.br 18 desconhecido, sem volta, sem contato com o mundo exterior: Utopia. Fazenda Utopia: Thomas havia sobrevoado esta área havia algum tempo, e ficado deslumbrado, disse Fernando. Vendemos tudo que tínhamos, compramos dois aviões e tudo que precisávamos para começar uma nova vida aqui. Vocês, pelo que percebo, formaram uma comunidade na qual todos têm obrigações e os mesmos direitos sobre os bens. E, leis? Existem leis a serem obedecidas, ou regras? Uma única regra rege Utopia: o respeito ao outro. Respeito que começa da abdicação de valores baseados no Orgulho. Orgulho, no sentido de ser um amor-próprio exagerado; orgulho pelo dinheiro que temos, pela qualidade de vida que temos... qualidade, melhor dizendo: qualidade de vida, entre aspas... resumindo, nossa única lei é a: abdicação da felicidade buscada pelo bem estar pessoal; a qual vem, quase sempre, com a infelicidade do outro... abdicação da felicidade baseada na ostentação... negação do Orgulho que divide a sociedade em castas, em classes. Em nossas discussões, ainda na fase de planejamento, continuou Estevão, quando não raramente varávamos a noite, pensamos em formar uma sociedade baseada nas famílias de imigrantes, quando da chegada ao país, que constituíram comunidades agrícolas. Elas se fixavam em um sítio, escolhiam algumas culturas frutas, verduras, legumes, e mantinham relações com a cidade, utilizavam as facilidades dela: comércio, escola, médico... Comunidades lideradas pelos patriarcas; mas os filhos não se mantiveram na comunidade; após a formação escolar básica, a maioria seguiu profissões não ligadas à terra e constituiu uma vida independente. E, a dependência da cidade seria frustrante para nós; não é o que queremos, continuou Fernando.

lucamacdoiss.com.br 19 Existem, ainda, algumas comunidades americanas que vivem fechadas, com contatos esporádicos com a cidade, com a civilização, mas que tem como base a crença, a religião e são norteadas por algum tipo de fanatismo. Bem, não era isso que, também, buscávamos, completou Estevão. Então, espero que estejam entendendo o que queremos proteger, por que pedimos que mantenham nossa comunidade em segredo. Talvez, no futuro, Utopia se torne uma pequena cidade. Talvez, alguns daqui partam, e levem um embrião, uma semente que germine outras comunidades, ou cidades voltadas para o bem social, para uma vida saudável, em harmonia com a natureza, inclusive com a natureza humana. É! vocês sabem realmente o que querem; mas, penso eu, a verdadeira felicidade depende, também, do desenvolvimento de nossas faculdades mentais: o pensamento, a inteligência voltada para as ciências, para as letras, melhor, para as artes. O que deve ser restrito aqui, limitado aos membros de Utopia, e às disponibilidades da Fazenda. Concordo. Existe aqui uma limitação de criação; embora tenhamos em nossa biblioteca todos os melhores livros do mundo, pelo menos, os essenciais de cada área; obviamente, temos os já escritos, não teremos as novidades, as inovações; mas, por outro lado, não teremos as inovações, que hoje são a maioria, que levam cada vez mais o Homem ao ponto que recusamos, ao desenvolvimento baseado na aparência, no dinheiro, no orgulho exagerado, no eu-próprio. Um círculo vicioso, o mais pelo mais, completou Estevão. É evidente a generosidade, a dignidade, a elevada entrega, a abdicação de vocês; mas, pergunto se todo o conhecimento de vocês o qual, provavelmente, da maioria daqui, veio de universidades públicas, pagas pelo dinheiro de impostos, pelo dinheiro do povo, se todo o ta-

lucamacdoiss.com.br 20 lento de vocês, juntos ou localizados por área de interesse, não seria relevante, proveitoso para melhorar a vida de nosso povo tão sofrido?... Se o emprego das habilidades, da filosofia de vida de vocês, talvez, como assessores, conselheiros, não diminuiria a ignorância de nossos políticos? Essa atitude seria, no meu ponto de vista, um total desprendimento de egoísmo. Não deixo de ficar lisonjeado com suas palavras, dileto debatedor, mas não posso, não podemos, falo por todos daqui, aceitar essa capacidade que nos atribui, e, mesmo que mil vezes a tivéssemos, não vejo como nossos talentos possam modificar, ou ajudar a modificar esse viciado e doente sistema, disse Fernando. Se alguém quiser que algo seja feito, seja esse alguém o que decide, não um conselheiro, um assessor. Mil conselhos não valem uma iluminada cagada. Desculpe-me a expressão baixa, mas de alta verdade, completou Estevão. Além do que, hoje, e todo o sempre, o mundo está cheio de ego inflado, de amor-próprio elevado, de espelho de um só rosto, de decisões de íntimo umbigo. Certa vez, continuou Fernando, um bom conselheiro, ministro eu acho, criou um imposto para a Saúde, injusto, em cascata; bilhões entraram para o cofre do governo; bilhões que seriam de grande benefício para o povo; bilhões que foram por necessidade desviados a outras áreas de maior urgência, disseram os mandantes; bilhões que engordaram os bolsos dos governistas, disseram os jornalistas. O bom político ganhou popularidade, e, portanto votos, com a adoção do imposto e com a derrubada do imposto. Votos!, voltou Estevão. Os populistas, por esperteza, por oportunismo ou por falta de competência, perpetuaram a pobreza com um programa de ajuda aos mais necessitados em vez de dar educação de qua-