CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA Boa Governação-Transparência-Integridade

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Transcrição:

CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA Boa Governação-Transparência-Integridade Urgente clarificar aspectos legais do combate à corrupção em Moçambique Pode ou não o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) acusar os casos de corrupção que investiga? Terá o GCCC poderes para exercer a acção penal? Será ou não o desvio de fundos um crime de corrupção? Qual é o tratamento que a Justiça moçambicana dá às Convenções Internacionais que o Estado ractifica? (4-7-2007) A recusa recente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo (TJCM) em julgar um caso de corrupção acusado pelo Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) veio mostrar mais um bloqueio na luta contra a corrupção em Moçambique - um bloqueio que resulta da interpretação diversa que alguns juízes têm feito sobre o papel do GCCC (enquanto entidade com poderes de acusação de casos de corrupção) e sobre determinados tipos de crimes (como o desvio de fundos e o branqueamento de capitais). O episódio mostrou também que o Ministério Público e a Magistratura Judicial ainda não estão no mesmo barco no que concerne ao tratamento de casos de corrupção. O caso de um administrador do Fundo de Fomento Pesqueiro Um administrador financeiro do Fundo de Fomento Pesqueiro esteve detido até bem pouco tempo sob acusação de corrupção. Acusação: desvio de fundos, falsificação de documentos e burla por defraudação. O administrador viria a ser liberto sob caução, no valor de 900 mil MTn, aguardando julgamento. O julgamento tinha sido marcado para o passado dia 16 de Junho de 2007. Nesta data, o juíz da causa, de nome Paulo Cinco Reis, suspendeu a audiência alegando que o GCCC não tinha poderes para acusar um caso de corrupção e que o crime de desvio de fundos, falsificação de documentos e burla por defraudação não era um crime que se integra nos delitos de corrupção. A notícia veio publicada no jornal Zambeze, edição de 21 de Junho de 2007. Segundo o jornal, o juiz da causa esgrimiu dois argumentos para não proceder o julgamento do caso: O réu foi acusado por crimes que não se configuram como sendo actos de corrupção e, neste sentido, o GCCC não tinha competência legal para investigar e acusar o caso; este órgão apenas pode investigar e instruir processos relativos a crimes de corrupção e participação económica ilícita nos termos da Lei 6/2004 de 17 de Junho ( Lei Anti-Corrupção, que introduz mecanismos complementares de combate à corrupção e participação económica ilícita). Tendo em conta as competências do GCCC, este órgão só pode confinar-se à investigação de delitos de corrupção, não podendo deduzir, por isso, a acusação naquele caso. Av. Amilcar Cabral 903. 1º andar Tel: +258 21 327661 - Fax: +258 21 327661- Mobile: + 258 82 3016391 Caixa Postal (PO Box): 3266 E-mail: cipmoz@tvcabo.co.mz / cipmoz@gmail.com Maputo Moçambique www.integridadepublica.org.mz

Os argumentos do juiz giram em torno de matérias que têm gerado controvérsias e debates na opinião pública, colocando-se agora a questão de se saber se o Estado moçambicano está preparado para reagir judicialmente contra a corrupção ou se o GCCC é apenas um órgão cosmético sem poderes concretos. Duas grandes questões se colocam, na sequência do caso. Ei-las: Será que o GCCC não tem, de facto, poderes de acusar casos de corrupção? Será que o crime de desvio de fundos não é um crime de corrupção? O CIP apresenta alguns comentários sobre estes dois aspectos. O GCCC tem ou não poderes de acusação? Um dos argumentos apresentados pelo juiz Cinco Reis para rejeitar uma acusação do GCCC é o de que este gabinete não tem poderes de acusação; que as competências do GCCC são apenas as de investigação e instrução processual, devendo qualquer acusação formal ser deduzida pelo Ministério Público. Será esta a interpretação correcta? Ou haverá outros mecanismos legais que dão ao GCCC poderes de acção penal? Esta discussão, que parece ganhar agora grande relevância com este caso, tem um precedente. Há poucos anos, o Tribunal Supremo recusou julgar um caso investigado pela antiga Unidade Anti-Corrupção alegando que a UAC, dirigida na altura pela Drª Isabel Rupia, não tinha poderes para deduzir acusações. O caso envolvia um consultor estrangeiro, que até passara meses em prisão preventiva sob ordens da então UAC. Eventualmente, tanto neste como noutro caso, os juízes fizeram uma interpretação literal da Lei 6/2004 de 17 de Junho, a qual não atribui expressamente competências ao GCCC para exercer aquilo a que se chama de acção penal; essa competência, como estabelece o Código do Processo Penal, é conferida ao Ministério Público. Se for esta a interpretação que vingar, e dado que as decisões do Tribunal Supremo criam jurisprudência isto é informam sobre as práticas recomendáveis no tratamento de determinados casos e inspiram os juízes de instâncias inferiores - então o GCCC fica completamente amputado. Fica a resumir-se a uma instituição que se limita a investigar casos de corrupção, a fazer sindicâncias e inquéritos, a instruir processos, mas sem acusar. Por esta via, não teremos julgamentos de casos de corrupção e a Estratégia Anti-Corrupção do Governo ficará amputada dado que ela assenta tamém na ideia de tolerância zero, a qual implica a responsabilização de casos de corrupção devidamente investigados. Mas não é esta a única interpretação que se pode fazer da Lei Anti-Corrupção e dos mecanismos processuais da Justiça e, no caso concreto, dos poderes do GCCC. Alguns actores relevantes do sector da Justiça defendem que o GCCC não só tem competências para investigar e instruir processos de corrupção como também pode exercer a acção penal. Dois argumentos são tomados em consideração. Em primeiro lugar, o GCCC é composto, entre outros, por Magistrados do Ministério Público nos termos do nº2 do artigo 12 do Regulamento da Lei Anti-corrupção (Decreto 22/2005, de 22 de Junho); sendo magistrados do Ministério Público eles gozam da capacidade legal de deduzirem a acusação dos crimes que instruíram. Em segundo lugar, o facto de o GCCC estar integrado no Ministério Público, e directamente subordinado ao Procurador Geral da República, confere aos seus magistrados esse poder de acção penal. É tendo em conta estes dois considerandos que o GCCC tem vindo a exercer esses poderes de acusação, indespensáveis para que a acção penal contra a corrupção tenha sucesso em Moçambique. 2

Alguns exemplos de fora de Moçambique O facto de o legislador não ter conferido, explicitamente, poderes de acção penal ao GCCC é o pior defeito que se pode encontrar na Lei Anti-Corrupção. Segundo com a Lei, o GCCC tem, explicitamente, e de acordo com o nº 2 do seu artigo 19, apenas competências para investigar e promover a instrução preparatória dos crimes de corrupção. Tal como está, a nossa Lei parece não permitir uma clareza na actuação do GCCC. E, por isso, o nosso GCCC deve ser, no panorama internacional, um dos poucos que não tem poderes de acusação explicitamente conferidos por Lei. A experiência internacional mostra que a maioria da agências anti-corrupção tem poderes concretos de acusação. Desde 1990, mais de 30 países estabeleceram ACAs ( Anti Corruption Agencies), as quais, na sua maioria, são órgãos públicos independentes do Governo, com missão específica de combate à corrupção e redução das suas estruturas de oportunidades, através de estratégias de prevenção e repressão. Essas agências tem não só competências de investigar mas também de acusar delitos de corrupção. Dois exemplos de referência mundial (e de sucesso) são a Independent Commission Against Corruption (ICAC) de Hong Kong e a Corruption Practice Investigation Bureau (CPIB) de Singapura. Sobre desvio de fundos vs corrupção A qualificação do desvio de fundos como um crime de corrupção é um aspecto ainda não pacífico no seio de académicos e juristas nacionais. Uma corrente de opinião entende que o desvio de fundos integra o crime de corrupção e, nesse sentido, o GCCC tem competência legal para investigar e instruir este tipo legal de crime. Outra corrente considera que o desvio de fundos não é um acto de corrupção e, como tal, o GCCC não tem competências para investigar este crime. O debate ainda é incipiente, mas esta é uma oportunidade para alargá-lo. Um aspecto fundamental a ter em conta é que estamos a falar apenas no domínio da definição legal-penal de corrupção. Em termos estritamente legais, a definção do que é corrupção tem de, obrigatoriamente, ser apresentada por Lei. No caso em apreço, a Lei 6/2004 de 17 de Junho define corrupção em dois sentidos: primeiro, a corrupção passiva como sendo a solitação de vantagem patrimonial ou não patrimonial por funcionário ou agente do Estado para realizar ou omitir acto contrátio ou não contrário ao dever do seu cargo; e corrupção activa como sendo o oferecimento de vantagem patrimonial ou não patrimonial a funcionário ou agente do Estado para realizar um acto contrário aos deveres do seu cargo. O primeiro aspecto decorrente desta definição legal é o de colocar a corrupção como uma troca entre dois ou mais actores, com a finalidade de ganhos privados; o segundo é o de colar a corrupção com o um desvio em relação a deveres conferidos ao agente do Estado. As formas de corrupção patentes nesta definição são a solicitação e o oferecimento de suborno. Como vemos, nesta definição não cabe a figura do desvio de fundos, tráfico de influências, enriquecimento ilícito e branqueamento dos proventos da corrupção. Mas é preciso ter em conta que a Lei 6/2004 apenas veio introduzir mecanismos complementares ao combate à corrupção. Isto quer dizer que a legislação moçambicana já continha disposições legais que podiam ter sido usados para julgar casos de corrupção mesmo antes da aprovação da Lei 6/2004 e do estabelecimento do GCCC. Com efeito, o desvio de fundos é punido como peculato nos termos do artigo 313 do Código Penal. Também podemos fazer referência à Lei 9/87 de 19 de Setembro (Lei de Defesa da Economia), cuja revogação ainda não foi promulgada pelo Presidente da República na nossa opinião essa revogação vai abrir um tremendo vazio legal. Esta Lei, no capítulo IV, artigo 16, relativo à corrupção, refere-se ao crime de abuso de cargo ou de funções, o qual se materializa quando alguém exerce funções inerentes ao seu cargo, de modo contrário à Lei, com intuito de obter para si ou para outrem beneficio ilícito. 3

A mesma Lei 9/87 inclui a fraude no capítulo dos crimes de corrupção, sendo que esta materializa-se quando alguém com intenção de obter proveito ilícito induz em erro uma determinada entidade, para decidir qualquer pretensão de modo a causar prejuízo ao Estado. Em segundo lugar, o próprio legislador penal nem sempre usa de forma rigorosa o termo corrupção como sendo uma troca, isto é, como sendo solicitação e ofertas de favores (transacção entre actores do sector público e privado). O legislador usa o termo corrupção para tipificar práticas que rigorosamente não se enquadram na boa governação, como é o caso do crime de corrupção de menores e lenocínio, previsto nos artigos 405 e 406 do Código Penal em atenção às alterações introduzidas pela Lei 8/2002 de 05 de Fevereiro - sendo o termo corrupção usado em sentido lato para manifestar a ideia de prevaricação que a mesma encerra. O desvio de fundos é também uma infracção financeira nos termos dos artigos 12 e 13 da Lei 16/97 de 10 de Julho (regimento relativo à Organização, Funcionamento e Processo da 3ª Secção do Tribunal Administrativo). Por outro lado, sendo o desvio de fundos uma violação da legalidade orçamental, este é punível nos termos do artigo 9 da Lei 7/98 de 15 de Junho (Normas de Conduta Aplicáveis aos Titulares de Cargos Públicos). Também há que ter em conta o facto de Moçambique ter ratificado Convenções Internacionais que estabelecem o desvio de fundos como um acto de corrupção e, nos termos do nº 2 do artigo 18 da Constituição da República, os instrumentos jurídicos internacionais têm o valor jurídico dos actos normativos emanados da Assembleia da República e do Governo. Ou seja, as Convenções Internacionais, desde que ractificadas, fazem automaticamente parte das leis internas. No caso vertente, tanto o Protocolo da SADC contra a Corrupção, ratificado pelo Conselho de Ministros pela resolução 33/2004 de 9 de Julho, como a Convenção da União Africana Contra a Corrupção, ratificada pela Assembleia de República pela resolução 30/2006 de 2 de Agosto, consideram o desvio de fundos como sendo um acto de corrupção. No mesmo sentido vai a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, que no seu artigo 17 prevê o desvio de fundos como sendo um acto de corrupção. Perante este cenário entendemos que o desvio de fundos é claramente um crime de corrupção, pois esta prática consubstancia-se num acto de mal-administração e corrosivo de uma governação íntegra e transparente. Que alternativas? Sobre os poderes do GCCC Nestes três anos de vigência da Lei, nunca a questão dos poderes do GCCC tinha sido tomada como de extrema importância, incluindo nos relatórios anuais do Procurador Geral da República, Joaquim Madeira. Mas o facto de a Lei omitir a prerrogativa de o GCCC acusar abre portas para interpretações diversas e para potenciais prevaricadores esfregarem as mãos de contente - consta que o GCCC está a receber recados segundo os quais também não tem poderes para investigar e acusar crimes de branqueamento de capitais. Que saídas? Quanto a nós, algumas alternativas se consideram. No sector da Justiça há quem pense que o GCCC não se deve preocupar demasiado com esta aparente limitação dos seus poderes, dado que, para contorná-la, os seus magistrados podem usar qualquer procurador afecto num qualquer Tribunal para que este deduza a acusação dos casos que os magistrados do GCCC investigam. Esta é uma via que o GCCC pode usar para contornar as rejeição das suas acusações pelos tribunais. Mas ela contém riscos: nem todos os procuradores afectos aos tribunais tem o conhecimento específico que envolve a investigação da corrupção; esses procuradores também não teriam domínio suficiente de um caso investigado por outro colega, fragilizando a sua posição em julgamento. 4

A decisão do TJCM ao recusar uma acusação do GCCC sugere que se faça uma avaliação urgente para que se defina se temos em Moçambique um quadro legal e prático que viabilize a reacção judicial contra a corrupção. Ou seja, é urgente que se clarifique quais são os mecanismos processuais, dentro do actual quadro legal, que podem ser usados para que as acusações de crimes de corrupção provenientes do GCCC sejam tomadas em consideração pelos tribunais. Se estes mecanismos não estiverem previstos ou não forem suscitados, então é urgente a revisão da Lei Anti-Corrupção. Essas é uma das saídas e é uma solução mais definitiva: o Governo viabilizar com urgência uma revisão pontual da Lei 6/2004 para que o GCCC tenha poderes expressos de acusação. Havendo um consenso formal no sentido do combate à corrupção em Moçambique e tendo o Governo uma Estratégia Anti-Corrupção que tem como um dos pilares a repressão judicial (tolerância zero), a reforma da Lei é indispensável. Caso não, a Estratégia Anti-Corrupção deixa de fazer sentido. Outra saída é o Tribunal Supremo suscitar, em sessão plenária, a fixação de doutrina com força obrigatória geral sobre como os tribunais de instância inferior (e ele próprio) podem agir em face de casos similares. Seria uma forma de criar jurisprudência para este casos. Sobre o desvio de fundos e convenções Há igualmente uma urgência de clarificação sobre até que ponto, no nosso quadro legal, os crimes de desvios de fundos são crimes de corrupção. Também nesta matéria é necessário que o Tribunal Supremo se pronuncie. Mas este é um assunto que pode ser resolvido com a simples aplicação da Lei. A Constituição da República é clara quando estabelece no seu artigo 18 (nº2) que as Convenções Internacionais das quais Moçambique é parte têm o valor jurídico dos actos normativos aprovados pela Assembleia da República e pelo Governo. No caso concreto, o Protocolo da SADC contra a Corrupção foi ratificado pelo Conselho de Ministros pela resolução 33/2004 de 9 de Julho e a Convenção da União Africana Contra a Corrupção foi ratificada pela Assembleia de República através da resolução 30/2006 de 2 de Agosto. Tanto o Protocolo da SADC como a Convenção da UA estabelecem o desvio de fundos como sendo um acto de corrupção. Em todo o caso, o Tribunal Supremo tem de clarificar até que ponto as Convenções Internacionais - que indiscutivelmente fazem parte do direito interno e estabelecem como actos de corrupção o desvio de fundos, o tráfico de influência, o enriquecimento ilícito, o branqueamento dos proventos da corrupção, a obstrução da justiça - são de per si aplicáveis a casos concretos. A clarificação impõe-se ainda mais dado que algumas convenções internacionais não apresentam as molduras penais para a punição dos casos de corrupção que tipificam. Uma das soluções encontradas noutros contextos é a criação de legislação interna específica que reflicta o sentido das convenções, resolvendo-se aqui os aspectos não previstos na legislação doméstica. A recusa do TJCM em julgar um caso de corrupção acusado pelo GCCC é um precedente que deve ser resolvido com a máxima urgência. Um dos grandes desafios da governação em Moçambique é a falta de responsabilização judicial das práticas de corrupção denunciadas ao GCCC ou detectadas por outras vias (inspecções pelo Inspecção Geral de Finanças e auditorias pelo Tribunal Administrativo). Em 4 anos de GCCC (que começou como Unidade Anti-Corrupção) ainda não conseguiu fazer condenar um único caso de corrupção. Há pois que avaliarmos qual deve ser o papel do GCCC e que poderes concretos este gabinete deve possuir. E, sobretudo, qual deve ser o papel dos Tribunais no tratamento de casos de corrupção.x xxxxxxxxx 5