4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais. De 22 a 26 de julho de 2013.



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Transcrição:

4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais De 22 a 26 de julho de 2013. A Solidariedade Pragmática da Diplomacia Brasileira para o Entorno Regional - em busca do equilíbrio e da legitimidade no século XXI PE Política Externa Trabalho Avulso Mariana Kalil INEST/UFF Felipe Cordeiro de Almeida Faculdade Anglo-Americano/UDC,FAA-UDC Belo Horizonte 2013

Mariana Kalil Felipe Cordeiro de Almeida A Solidariedade Pragmática da Diplomacia Brasileira para o Entorno Regional - em busca do equilíbrio e da legitimidade no século XXI Trabalho submetido e apresentado no 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais ABRI. Belo Horizonte 2013

RESUMO A narrativa da política externa brasileira reconhece variações da percepção do entorno regional sul-americano em relação à presença do Brasil como ameaça ou como oportunidade. Se, ao longo do século XIX e de parte do século XX, os sul-americanos, em especial a vizinhança platina, compreendiam o Brasil como uma potência insatisfeita, o que resultou em nomenclaturas como o subimperialismo tupiniquim; na primeira década do século XXI, a diplomacia brasileira desenvolve narrativa que destaca sua Solidariedade Pragmática como capaz de dirimir desconfianças e de estabelecer uma cordialidade oficial que conquistaria corações e mentes, sem descuidar do interesse nacional. A partir de 2003, a retórica diplomática brasileira passou a refletir de maneira mais protuberante o discurso doméstico de erradicação da pobreza e de promoção do desenvolvimento. Formou-se, então, uma estratégia de Solidariedade Pragmática que compõe a identidade solidária do país com a realização do interesse nacional. No entorno regional, a herança histórica de desconfianças dificultaria a aceitação desse paradigma, embora a política externa brasileira busque concretizar essa narrativa, por meio de ações em fóruns como a UNASUL e o MERCOSUL. O objetivo deste artigo é compreender a mudança da retórica da política externa brasileira a partir do governo Lula e as atividades desenvolvidas pelo Brasil, sobretudo durante as presidências pro tempore do Conselho do Mercado Comum (MERCOSUL), com o intuito de verificar o tom solidário de uma diplomacia que visaria, ademais, a racionalizar a dominância de sua ascensão como global player. Palavras Chave Diplomacia; Brasil; Mercosul; Solidariedade; Pragmatismo

INTRODUÇÃO O objetivo geral deste artigo é testar o conceito de Solidariedade Pragmática, lançado pela autora Mariana Kalil, em The four dimensions of the Brazilian Foreign Policy towards Africa and the Chinese challenge, apresentado na Conferência Anual da International Studies Association (ISA), a partir do trabalho desenvolvido pelo Professor Felipe Cordeiro de Almeida a respeito da integração regional mercosulina. Para tanto, será perseguido o objetivo específico de compreender a mudança da retórica da diplomacia brasileira a partir do governo Lula, testando sua efetividade, por meio da análise das atividades desenvolvidas pelo Brasil. É mister, dessa maneira, que se inicie a verificação, a partir de uma análise da compatibilidade entre pragmatismo e solidariedade, bem como acerca da abordagem dessa interação auferida pela autora, quando propôs tal conceito como a grand strategy brasileira no século XXI. Posteriormente, serão compreendidas as ações do Brasil no comitê político do MERCOSUL, na tentativa de buscar sinais de solidariedade e de pragmatismo, como compreendido pela tradição racionalista das Relações Internacionais, e de testar, de maneira algo arriscada, as intenções e as consequências do comportamento brasileiro em suas relações com a vizinhança platina que, atualmente, conta, também, com a presença do vizinho setentrional bolivariano do Orinoco. Os artífices da diplomacia brasileira, ao longo do governo Lula, não hesitaram em utilizar-se da nomenclatura diplomacia solidária para referir-se ao comportamento brasileiro em esferas multilaterais, em que se busca maximizar não só os próprios ganhos, mas também democratizar estruturas para permitir a diminuição da assimetria do desenvolvimento entre os países e para ampliar a representatividade e a legitimidade do sistema internacional; e, ainda, para salientar a retórica e a prática regional, trilateral e bilateral, em interações nas quais o Brasil não economiza discursos a respeito de relações horizontais, além de fundos para investir, por exemplo, em assistência para o desenvolvimento, mobilizando recursos na magnitude daqueles oferecidos por países como Alemanha e Suécia (KENKEL, 2013). A solidariedade, nas Relações Internacionais, no entanto, não goza de reputação lisonjeira.

O ditado estadunidense que enfatiza que a estrada para o inferno está pavimentada por boas intenções exemplificaria, de maneira satisfatória, a percepção das Relações Internacionais a respeito da solidariedade, que é acusada de idealismo ou hipocrisia ou, mesmo, de ambos. É razoável interpretar como idealista uma estratégia solidária que se baseie na compreensão do senso comum a respeito da solidariedade, sobretudo, em uma disciplina em que a dinâmica de política de poder, como construída por racionalistas realistas, é a regra, o que garante à acusação de hipocrisia verossimilhança considerável. Pode-se demarcar o nascimento da lógica moderna, dissociada de questões religiosas, a respeito da solidariedade nos ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade. As consequências da perspectiva iluminista, no entanto, distanciam-se, claramente, do real espírito da Revolução Francesa seria suficiente recordar os desacordos entre Robespierre e Babeuf, na esquerda do movimento revolucionário, e entre alas moderadas, mais associadas à burguesia nascente. Assumidas, pela burguesia, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, a solidariedade inerente à dinâmica entre os três dogmas esvaiu-se em Estados Nacionais burgueses, de cujo imperialismo e nacionalismo resultaram as duas grandes guerras do século XX. Solidariedade era o cerne do fardo do homem branco que colonizou o continente africano, além de ser a bandeira de ambos os Estados Unidos e a União Soviética, para estabelecer e garantir áreas de influência, ao longo da Guerra Fria, o que levou à terceirização do conflito para a periferia do mundo. Após a Guerra Fria, a solidariedade baseou a exportação de democracia, no âmbito da lógica da Paz Democrática, enquanto sua operacionalização era transferida para mecanismos multilaterais que lidavam com meio ambiente, direitos humanos, dentre outros. Ruanda, Srebrenica e Timor Leste demonstram o débâcle da tentativa de institucionalização da solidariedade, sobretudo no âmbito das Nações Unidas, e o conceito entra o século XXI deveras desacreditado. Contudo, a ascensão de potências médias emergentes ensejou o questionamento da interpretação a respeito do comportamento dos Estados no cenário internacional, o que veio acompanhado da multiplicação de tendências metateóricas nas Relações Internacionais. Dessa maneira, a solidariedade já proclamada entre países do Movimento Não Alinhado, embora, naquele escopo, também duvidosa, já que dela

decorreu, por exemplo, a ocupação de Dili pela Indonésia, voltou ao palco da política internacional, por meio da ênfase na cooperação Sul-Sul e na exportação de desenvolvimento, ao invés de democracia, paradigma avançado, implicitamente, por países como o Brasil, conquanto a construção da paz, por meio de estabelecimento de arcabouços jurídicos semelhantes àqueles ocidentais cristãos não se distancie do modelo de democracia perseguido pelas grandes potências tradicionais. O MERCOSUL E A SOLIDARIEDADE PRAGMÁTICA A análise deste artigo será calcada nas estratégias brasileiras de relacionamento com os países do MERCOSUL, especialmente, nos momentos de sua presidência no CMC, visando a buscar iniciativas que verifiquem a solidariedade autoproclamada pela diplomacia brasileira. Todavia, o conceito proposto utiliza, ainda, o adjetivo pragmática, que, sintaticamente, modificaria o substantivo solidariedade. Trabalhos de autores como Bellamy e Rorty apontam a dificuldade em compatibilizar dois conceitos tão díspares, se baseados na interpretação tradicional. Nesse sentido, Bellamy (2002) trava longo debate a respeito da possibilidade de existência de uma Solidariedade Pragmática nas intervenções humanitárias, concluindo, no entanto, que atos solidários enraizados em objetivos pragmáticos não seriam compatíveis com uma solidariedade real. A primeira distinção que se faz neste artigo é entre solidariedade e altruísmo. A solidariedade, aqui, trata de ações que levem em consideração, primordialmente, as demandas, as necessidades e as características do outro. Entretanto, solidariedade não significa, necessariamente, deixar de obter ganhos ou seja, não significa, essencialmente, ser altruísta. Atos de solidariedade podem gerar ganhos que levem as intenções solidárias a se fortalecerem, uma vez que o bem-estar mútuo é avançado e consolidado. Esses ganhos das práticas solidárias não se relacionam, necessariamente, a estratégias de ampliação de mercados ou de aumento de influência política, embora resultem, eventualmente, nesses elementos. A leitura tradicional, nas Relações Internacionais, desses ganhos como decorrentes de pragmatismo ou de instrumentalização levaram a autora a nomear a estratégia brasileira contemporânea como Solidariedade Pragmática, já que, inclusive, a política externa do país preocupa-se

com a ênfase nos ganhos da solidariedade, com o objetivo de legitimá-la domesticamente. A segunda distinção feita neste artigo, portanto, é entre intenções pragmáticas e ganhos indiretos que são interpretados como pragmatismo por uma literatura que insiste em utilizar-se do léxico racionalista das Relações Internacionais. No entanto, a política externa brasileira contemporânea transcenderia essas práticas tradicionais, promovendo, no Sistema Internacional, novos comportamentos. Em World of Our Making, Nicholas Onuf (1989) enfatiza comportamentos como estabelecimento de regras que influenciam a estrutura e, também, os demais agentes, em um processo de co-constituição. O autor salienta, ainda, a utilização da linguagem como componente de mudança. Nesse sentido, uma leitura diferente acerca da solidariedade e do pragmatismo, bem como de sua interação é um dos elementos de mudança trazidos pelo reconhecimento, razoavelmente consensual, da relevância brasileira no cenário internacional, como potência média emergente. O histórico de formação de uma narrativa coerente a respeito da interação entre solidariedade e pragmatismo na política externa brasileira decorre da evolução, na diplomacia do país, dos conceitos de promoção do desenvolvimento e cordialidade oficial (DORATIOTO, 2000; CERVO, 2008; CERVO, 2011). O ápice dessa narrativa foi a chegada à Presidência da República de um governo cuja prioridade doméstica era de erradicar a fome e a pobreza e de democratizar o bem-estar, objetivos que, diante da coincidência entre o amadurecimento das relações entre solidariedade e pragmatismo no histórico da política externa do país e as idiossincrasias tanto do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, quanto do Chanceler Celso Amorim, levaram à construção oficial de conceitos como a não indiferença, no sentido de priorizar a demanda por desenvolvimento de países menos desenvolvidos, que compõem a Solidariedade Pragmática. No artigo apresentado na referida conferência da ISA, verificou-se as relações entre Brasil e África no escopo da Solidariedade Pragmática avançada pelo país, principalmente, a partir do Governo Lula embora se possa estabelecer o ano de 1996 como marco de verbalização da solidariedade em relação à África, quando o Brasil participou ativamente da institucionalização da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Cabe, neste artigo, avançar na verificação do conceito, no sentido de aplicá-

lo às relações do Brasil com o MERCOSUL, região considerada prioritária para a diplomacia brasileira. As origens do Mercorsul remontam ao desafio da aproximação entre as jovens democracias Brasileira e Argentina nos anos 1980. Essa aproximação construiu-se sob a perspectiva política de que os dois vizinhos compartilhariam um futuro em comum. Essa perspectiva de futuro estaria ligada à necessidade de consolidar-se o regime democrático e recuperar as economias estagnadas em plena década perdida. Portanto, o processo de integração regional iniciado na década de 1980, e, conduzido durante os anos 1990, possui um forte viés político-econômico originário do interesse dos maiores sócios em vencer os desafios do mundo em transformação da globalização econômica e do fim da Guerra Fria. Podemos destacar o movimento de regionalismo econômico tido como alternativa às difíceis negociações multilaterais de comércio do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) como uma importante motivação ao desenvolvimento de um projeto de integração regional no cone-sul. O Mercosul reflete essa tendência caracterizada pelo fortalecimento do projeto europeu e pela criação do NAFTA (Área de Livre-Comércio da América do Norte) (Vaz, 2002). A inclusão dos dois vizinhos menores, Paraguai e Uruguai, foi de grande importância para dar contornos regionalistas à associação entre os dois parceiros maiores. Houve assim, a transformação da aproximação bilateral entre os antigos rivais para um ambicioso, porém cauteloso, projeto de integração regional de olhos voltados à formação de um mercado comum em um futuro de médio prazo. A entusiasmada participação do Uruguai no processo de integração regional deu-se principalmente por uma crença de que uma associação entre Brasil e Argentina poderia isolar econômica e politicamente o país. A dependência paraguaia das economias brasileira e argentina foi decisiva na participação do outro sócio menor. A garantia e reforço dado ao processo de integração regional conferido pelas diplomacias presidenciais foi dado de maneira não-linear, intergovernamental e relativamente cautelosa. Ricardo Seintenfus (1992), a época da criação do Mercosul, destacou a preocupação dos operadores iniciais do projeto de integração de evitar-se os erros cometidos pelos projetos latino-americanos de integração regional. Segundo o autor, esses ambiciosos projetos resultaram e grandes decepções devido aos seus

excessivamente ousados objetivos de integração, como a Associação Latinoamericana de Integração (ALADI) e a Comunidade Andina de Nações (ou Pacto Andino). Desde a sua criação, um desafio de grandes proporções apresentava-se ao Mercosul: reduzir as disparidades entre os sócios menores e maiores. Ou seja, os países maiores deveriam arcar com os custos da convergência econômica por meio do investimento e de concessões no processo liberalização comercial. Neste momento, diante da ideia de convergência e redução de disparidades característica dos processos de integração regional, está o embrião do que podemos chamar de Solidariedade Pragmática do Brasil com seus parceiros menores (em especial Uruguai e Paraguai) do Mercosul. Entretanto, é difícil caracterizar a ação brasileira em termos de solidariedade pragmática nos anos 1990 em relação ao Mercosul por diversas razões. Primeiramente, a dificuldade brasileira em converter o compromisso de redução de disparidades em ação política, comercial e financeira por conta da delicada condição financeira do Estado Brasileiro e sua tímida autoimagem como país em desenvolvimento relativamente desprovido de recursos. Em segundo lugar, a prioridade em aprofundar a liberalização comercial, em especial, com o sócio de condições equivalentes, a Argentina, não na redução de disparidades. Ou seja, a ação brasileira nos primeiros anos de Mercosul não possuía componentes de solidariedade que fossem além do discurso e das poucas ações no sentido de reduzir as disparidades entre os sócios maiores e mais desenvolvidos, e os menores e menos desenvolvidos. As economias de Brasil e Argentina, apesar de possuírem grande potencialidade de integração produtiva, são economias industrializadas relativamente fechadas e com grandes dificuldades em incrementar sua competitividade e de integrar-se às cadeias transnacionais de produção. Apesar disso, os esforços dos anos 1990 geraram uma crescente circulação de mercadorias, bem como o desenvolvimento de uma incipiente integração produtiva, principalmente no vital setor automobilístico (Machado, 2006), nos leva a crer no sucesso de parte dos objetivos manifestados na origem do Mercosul. Como vimos anteriormente, até a crise argentina do início da década de 2000, não poderíamos falar em solidariedade pragmática do Brasil com relação aos seus

parceiros do Mercosul. Em primeiro lugar, devido à posição de paymasters em pé de igualdade de Brasil e Argentina no processo de integração regional. Em segundo lugar, pelas tímidas ações de promoção ao desenvolvimento dos países vizinhos por parte do Brasil. O Brasil apenas assumiria um compromisso com o desenvolvimento de seus vizinhos nos anos 2000. A crise argentina e o evidenciamento de crescentes disparidades entre Brasil e o seu principal sócio colocaram em cheque a posição tímida do Brasil como principal artífice da integração na virada do milênio. A culpabilização do Brasil pela crise argentina somou-se aos sentimentos antibrasileiros por parte dos seus vizinhos pelo histórico imperialista como aponta Luiz A. Moniz Bandeira (2012). Dentre os seus vizinhos, destaca-se o Paraguai, no qual a Guerra do Paraguai ou Guerra da Tríplice Aliança ainda possui importante apelo político. A alteração do panorama político-econômico no cone-sul coincidiu com a estratégia do Governo Lula (2003-2010) de acelerar o processo de alteração do perfil do Brasil como líder regional e potência de expressão global. A solidariedade pragmática desenvolvida pelo Estado brasileiro nas suas relações com o mundo em desenvolvimento manifestou-se de maneira evidente com a África e com seus vizinhos sul-americanos, em especial mercosulinos. Podemos destacar algumas estratégias de grande importância: o incremento dos mecanismos de cooperação internacional e de financiamento tanto às atividades privadas quanto aos projetos públicos dos países vizinhos; a concessão de vantagens aduaneiras aos países do Mercosul sob a justificativa de ajuste de competitividade, em especial, no caso da indústria argentina; o incentivo e o financiamento de investimentos brasileiros privados; o investimento de empresas públicas ou de capital misto como Petrobrás, Vale do Rio Doce e Itaipu Binacional. O Brasil passou a utilizar suas capacidades, diante de um cenário menos adverso em termos econômicos e financeiros, para promover sua posição de líder regional e de potência emergente no plano global. A intensificação das atividades de organizações públicas, em especial, ministérios e empresas públicas federais no desenvolvimento de projetos de cooperação internacional foi fundamental a essa estratégia. Políticas públicas como o programa Bolsa-Família, passaram a servir como exemplo aos governos dos países vizinhos como uma tecnologia de assistência social. Um programa

social inspirado pelo Bolsa-família fora implementado, por exemplo, na Argentina em 2009. A criação do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) em Decisão do Conselho do Mercado Comum de 2004 (Decisão CMC/DEC 44/04) foi um importante passo no sentido de construir políticas de solidariedade pragmática. O fundo, financiado majoritariamente pelo Brasil (70% dos recursos aportados, enquanto 27% da Argentina, 2% do Uruguai e 1% Paraguai), possui o objetivo de financiar projetos para o desenvolvimento da região, em especial suas regiões mais pobres é uma importante demonstração do Brasil no sentido de responsabilizar-se pela maior parte do custos da integração e da redução das disparidades econômicas. Inspirado nos fundos estruturais europeus, o FOCEM destaca-se pela predominância do financiamento por parte do Brasil e pela destinação prioritária aos projetos de convergência estrutural e integração econômica. O fundo por não ser reembolsável, e, de acordo com regulamentação do Conselho do Mercado Comum (Decisão CMC/DEC 24/05) ter 80% dos seus recursos destinados aos sócios menores, caracteriza-se como uma importante forma de financiamento ao desenvolvimento dos países menores do bloco. Outra iniciativa no âmbito do financiamento à infraestrutura e desenvolvimento econômico é os investimentos da Itaipu Binacional na construção de linhas de energia para a universalização do acesso à energia elétrica no Paraguai. Essa iniciativa, ainda mais importante a partir da revisão do Tratado de Itaipu, faz parte de um conjunto de medidas que visaram à acomodação dos interesses paraguaios de aumentar a renda advinda da venda de energia da usina ao Brasil e investimentos no setor elétrico paraguaio. Outra importante forma de cooperação em investimentos, além do FOCEM e das iniciativas de Itaipu binacional, destaca-se as ações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O financiamento de empreendimentos nos países do Mercosul tem sido de grande importância para o desenvolvimento de projetos infraestrutura e para o reequipamento das indústrias na região. Importante destacar, entretanto, que de acordo com as regras do banco de financiamento, só podem ser financiados projetos que se utilizem de insumos, tecnologias ou serviços de empresas brasileiras. Outra possibilidade é o financiamento a empresas do Mercosul que

importem produtos brasileiros. Entretanto, diante da própria lógica de ampliação das vantagens às empresas que se instalem nos países do Mercosul, incluindo-se aí subsidiárias ou sócias de empresas nacionais, o BNDES tem flexibilizado desde 2006 suas regras para financiar a compra de produtos e insumos produzidos em outros países sul-americanos. A primeira medida foi tomada em relação à indústria automobilística, não por coincidência, o setore de maior integração produtiva do Mercosul. A própria estruturação do regime de origem do Mercosul tem como foco a promoção da integração produtiva como nas Decisões do Conselho do Mercado Comum de 2004 (Decisão CMC/DEC 01/04, Decisão CMC/DEC 02/04, Decisão CMC/DEC 14/07, Decisão CMC/DEC 16/07). A atuação do BNDES é fundamental na Argentina, tendo em vista a escassez crônica de crédito com a qual o país vive desde a reestruturação da sua dívida soberana nos anos 2000. Diante das disparidades entre o desenvolvimento industrial brasileiro e argentino frente a Uruguai e Paraguai, foram desenvolvidos instrumentos de salvaguardas para produtodos originários e não-originários do Mercosul, como por exemplo, os instrumentos apontados na Decisão 17 do CMC de 1996 (Decisão CMC/DEC 17/96), bem como os regimes especiais de importação como na decisão de 2007 (Decisão CMC/DEC 16/07). As principais razões para tais decisões são concessões brasileiras em relação às exceções nas regras de união aduaneira e de livre comércio do Mercosul, por conta de pressões de Paraguai e Argentina. Ambos os países pedem salvaguardas, cotas e exceções ao livre comércio e à união aduaneira em prejuízo aos interesses comerciais brasileiros imediatos. O argumento central em torno da concordância brasileira em relação a essas solicitações e pressões está pautado na noção de que essa generosidade com os países vizinhos compensa pelo seu desenvolvimento e pela garantia de uma aproximação e amizade a longo prazo. Podemos afirmar que há muito de solidariedade pragmática nessa ações. BIBLIOGRAFIA

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