1 AÇÕES AFIRMATIVAS PARA NEGROS, O ESTADO BRASILEIRO E A APLICAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DOS DIREITOS HUMANOS: um estudo sobre recepção do princípio da não-discriminação no direito positivo brasileiro Ellen Patrícia Braga Pantoja * RESUMO O presente trabalho tem por objeto de estudo a previsão constitucional das ações afirmativas para negros no Brasil, no que pertine à incorporação de tratados e convenções internacionais de direitos humanos em nosso ordenamento jurídico. A consagração do princípio da não-discriminação e a adoção de medidas compensatórias para as vítimas de preconceito racial exercem papel de destaque no debate sobre a legitimidade da aplicação de políticas de discriminação positiva para negros. Sob este enfoque, analisamse os principais instrumentos, de matriz internacional, garantidores da nãodiscriminação enquanto direito fundamental. Palavras-chave: ações afirmativas; direitos humanos; direito positivo brasileiro ABSTRACT The present work has as object of study the constitutional prevision of the affirmative actions for black people in Brazil, which concerns to the incorporation of international treaties and conventions of human rights in our juridical system. The consecration of the non-discrimination principle and the adoption of awardable measures for victims of racial prejudice exert role of prominence in the discussion about the legitimate of the application of positive discrimination policies for black people. Then, the main instruments of international source, which gives warranty to the non-discrimination as a fundamental right, are analyzed. Keywords: affirmative actions; human rights; Brazilian law 1 INTRODUCÃO A humanidade por diversas vezes seguiu trajetórias marcadas por experiências de indizível crueldade. As imensas atrocidades que marcaram sua história foram motivadas principalmente pela perseguição aos diversos grupos raciais, religiosos e políticos. Teorias racialistas construíram os pilares ideológicos de hierarquização racial sobre os quais se funda a intolerância frente ao diferente. Com o aval de teorias consideradas de rigor científico, realizaram-se perseguições e violações aos direitos fundamentais de seres humanos considerados indesejáveis. Com o advento da proteção internacional dos direitos humanos, passou-se a abominar a violência como único meio para obter o triunfo das próprias idéias. Os direitos * Bacharel em Direito pela UFMA, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação pela UFMA
2 humanos, universalizados ao final da Segunda Guerra Mundial, consagraram a nãodiscriminação como princípio fundamental a ser incorporado pelas nações. A internacionalização dos direitos humanos foi fundamental para que nações oprimidas, como as da África e da Ásia recém libertadas do neocolonialismo, denunciassem e pleiteassem o fim dos hediondos regimes racistas perante as organizações internacionais e em cortes internacionais. Em razão das tantas violações de direitos humanos praticadas contra segmentos étnicos não-dominantes, fez-se necessária a criação de instrumentos específicos de proteção a estas minorias étnicas. Adentrava-se, portanto, na perspectiva de direitos humanos de Arendt (1981), o direito a ter direitos, expresso enquanto o poder do indivíduo de exigir do Estado a proteção às suas diferenças raciais, culturais e religiosas. A postura do Estado brasileiro, nesse contexto, tem sido no sentido de promulgar os instrumentos internacionais, por meio de decretos presidenciais e da ratificação 1 dos tratados após a aprovação do Congresso Nacional. Incontestável é a importância da incorporação dos tratados, convenções e pactos internacionais à ordem jurídica interna do Brasil. Tais instrumentos que contêm direitos fundamentais internacionais servem para consolidar parâmetros internacionais mínimos referentes à proteção da dignidade humana, bem como assegurar uma instância internacional de proteção de direitos, sempre que os Estados membros da comunidade internacional mostrarem-se falhos ou omissos. 2 A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS À ORDEM JURÍDICA INTERNA DO BRASIL Depois de ratificados, os instrumentos de proteção internacional passam a ter aplicação obrigatória no território brasileiro, mediante o disposto no art. 5º, 2º da Constituição Federal de 1988 que prescreve que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e grande parte da jurisprudência e da doutrina entendiam que os tratados internacionais ingressavam no ordenamento jurídico brasileiro como norma infraconstitucional, fundamentando-se no fato de que, para que o tratado ingressasse no ordenamento jurídico, deveria estar assinado pelo Presidente da República 1 A ratificação é a fase mais importante do processo de conclusão dos tratados, visto que é a partir dela que os tratados passam a ser obrigatórios para o Estado contrante.
3 (art. 49, I, da CF/88) e regulamentado por decreto legislativo votado por maioria simples (art. 47 da CF/88). Assim, alegava-se que não poderia o tratado fazer parte de norma constitucional, tendo em vista não haver grande rigidez na sua introdução no ordenamento jurídico. Tal tese adotada na área do Direito Internacional dos Direitos Humanos, levou ao entendimento de que o texto constitucional brasileiro necessitava de um melhor tratamento no que se refere ao lugar ocupado pelos tratados e acordos internacionais na ordem jurídica interna. Tal carência dava ensejo a um certo descompromisso por parte dos operadores do Direito para com os instrumentos de proteção internacional dos direitos fundamentais, vindo a empobrecer o debate sobre a proteção dos direitos das minorias, além de inviabilizar o adensamento e efetividade dos direitos humanos entre o povo brasileiro. Com o advento da Emenda Constitucional nº 45, um importante passo foi dado para a resolução dessa questão. Ao artigo 5 o da Constituição Federal, foi incorporado o parágrafo 3 o, que explicitamente prima pelo respeito aos princípios consagrados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, elevando-os ao status de emenda constitucional: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3 / 5 dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às Emendas Constitucionais (Art. 5 o, parágrafo 3 o, Constituição Federal de 1988).(BRASIL, 1999). Desse modo, tratados e convenções internacionais assinadas pelo Brasil e que tratam sobre direitos humanos, deixam de ser entendidas como normas infraconstitucionais e passam a ter a mesma forca de uma norma formalmente prevista na Constituição. Isso traz grandes significações para a efetividade desses direitos fundamentais extraídos de tratados internacionais. Em primeiro lugar, incide sobre eles também o princípio da aplicabilidade direta destas normas pelos poderes públicos nacionais (art. 5 o, parágrafo 1 o, da CF). Em segundo lugar, tais direitos adquirem uma maior força jurídica em relação ao controle de constitucionalidade de suas normas (SARLET, 1998). 3 O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE MATRIZ INTERNACIONAL A princípio, os instrumentos internacionais de direitos fundamentais não possuíam nenhum preceito protetor dos direitos das minorias. Atualmente, além de disporem sobre o princípio da não-discriminação, diversos tratados internacionais também prevêem a adoção de políticas que promovem a igualdade de oportunidades.
4 Ao estimularem os Estados-partes a implementarem políticas promocionais para grupos ou indivíduos vulneráveis, esses tratados e convenções internacionais utilizam a expressão medidas especiais, ao invés do termo ações afirmativas. As normas por eles estabelecidas oferecem uma gama de princípios e regras a respaldar a adoção da ação afirmativa no Brasil. Dentre os instrumentos de proteção particularizada sobre racismo e discriminação racial ratificados pelo Brasil, tem-se: I) a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (27 de março de 1968); II) a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (19 de abril de 1968); III) a Convenção (nº 111) sobre Discriminação em Emprego e Profissão (26 de novembro de 1965). O primeiro instrumento a ser analisado será a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino. Tal Convenção, baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, afirma o princípio da não-discriminação e o direito de toda pessoa à educação, declarando-se: [...] consciente de que incumbe conseqüentemente à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, dentro do respeito da diversidade dos sistemas nacionais de educação, não só proscrever qualquer discriminação em matéria de ensino, mas igualmente promover a igualdade de oportunidade e tratamento para todos neste campo. Para os fins da referida Convenção, o termo discriminação abarca: [...] qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino (artigo 1). Nos termos do caput do artigo primeiro e nas suas alíneas, a discriminação constitui: a privação de qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos tipos ou graus de ensino; a limitação em nível inferior da educação de qualquer pessoa ou grupo; a instituição ou manutenção de sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos de pessoas e a imposição a qualquer pessoa ou grupo de pessoas a condições incompatíveis com a dignidade do homem. Para a Convenção, a palavra ensino refere-se aos diversos tipos e graus de ensino e compreende o acesso ao ensino, seu nível de qualidade e as condições em que é subministrado (art. 1, 2).
5 A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial é o segundo instrumento internacional a ser analisado. Seu objetivo maior está na proteção contra qualquer discriminação e contra qualquer incitamento à discriminação baseado em critérios raciais, expressando ainda seu repúdio a qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais. A Convenção ainda considera que tais doutrinas são cientificamente falsas, moralmente condenáveis, além de socialmente injustas e perigosas. De acordo com esta convenção, existem casos em que o tratamento jurídico diferenciado não constitui discriminação, ainda que se baseie em um dos critérios enumerados nas disposições dos instrumentos internacionais sobre discriminação. No item 4 do artigo 1º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial encontra-se o respaldo para as ações afirmativas a partir da negativa do que não constitui discriminação racial: Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos e indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos. Deste dispositivo, é possível destacar as principais características das ações afirmativas quais sejam a de que se trata de medida de caráter especial, com o objetivo de assegurar o progresso adequado de determinados grupos, de modo a não haver manutenções de direitos separados para os diferentes grupos raciais e que não perdurem no tempo após terem alcançado seus objetivos (MELO, 1998, p.95). Adotada na 42ª Sessão da Conferência, em Genebra, a Convenção nº 111, que trata da Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, conceitua a discriminação utilizando os mesmos termos dos demais instrumentos acima mencionados. A Convenção nº 111 preceitua ainda que práticas que visem a destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão serão consideradas violadoras dos direitos fundamentais internacionais. O art. 5º, alínea 1 da referida Convenção estabelece que as medidas especiais de proteção ou de assistência previstas em outras convenções ou recomendações adotadas pela Conferência Internacional do trabalho não são consideradas como discriminação. Os Estados-partes têm o compromisso de adotar medidas especiais que tenham por fim promover a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria (art. 2º).
6 Conforme referenciado anteriormente, o princípio da não-discriminação ocupa posição destacada no cenário do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TRINDADE, 2002, p. 55), constituindo parâmetro para a temática dos direitos econômicos, sociais e culturais, além de garantidor da igualdade. Articulado com a ação afirmativa, o referido princípio resulta em inclusão social. Trindade (2002), em consonância com tudo o que foi acima alinhavado, assevera que o princípio da não-discriminação está vinculado às políticas de ação afirmativa para grupos ou populações vulneráveis, ao declarar que as políticas de ação afirmativa para grupos vulneráveis encontram-se diretamente vinculadas à luta pela prevalência do princípio da não-discriminação (TRINDADE, 2002, p. 55). 3 CONCLUSÃO Diante do exposto, percebemos que, a partir da Emenda Constitucional nº 45, promulgada no final do ano de 2004, maior relevância passou a ser dada à recepção e à posição dos direitos fundamentais advindos de tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. O Brasil, estabelecendo um procedimento mais rígido de incorporação desses tratados, eleva os direitos fundamentais neles prescritos ao nível de normas constitucionais. Ao poder público resta, pois, o dever de observar essas normas na aplicação de suas políticas e no cumprimento de suas leis. Mediante a força adquirida perante o sistema jurídico brasileiro, os instrumentos internacionais que tratam do princípio da não-discriminação tornam-se agora explicitamente abarcados pela Constituição Federal de 1988. O mais importante ponto desta questão diz respeito ao fato de que as ações afirmativas, enquanto meio para a efetividade do princípio da não-discriminação, passam a ser também constitucionalmente reconhecidas, devido ao fato de constarem nestes instrumentos de matriz internacional, quais sejam a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino e a Convenção (nº 111) sobre Discriminação em Emprego e Profissão.
7 REFERÊNCIAS ABREU, S. Os descaminhos da tolerância: o afro-brasileiro e o princípio da isonomia e da igualdade no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. MELO, M. O princípio da igualdade à luz das ações afirmativas: o enfoque da discriminação positiva. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 6, n. 25, out./dez., 1998. PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo:: Max Limonad, 2002. SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. TRINDADE, A. A. C. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. v.. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro:: Renovar, 2002.