O Homem: Ser-No-Mundo-Com-Os-Outros

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O Homem: Ser-No-Mundo-Com-Os-Outros Lenir Lopes Dettoni 1 Josenir Lopes Dettoni 2 Jovanir Lopes Dettoni 3 Resumo No presente artigo, propomo-nos seguir alguns passos do pensamento antropológico de Heidegger. Para ele, a compreensão fundamental sobre o homem está relacionada com a questão metafísica sobre o Ser, relegada desde a Escolástica. Seu intento é o de retomá-la, particularmente a partir de Aristóteles. O método que considera capaz de conduzir com eficácia os rumos deste intuito é o fenomenológico. Para uma adequada apresentação de seu posicionamento sobre o tema, acompanhamos Heidegger em três passos: no primeiro, o mundo; no segundo, a história e, no terceiro, o homem. Sobre o mundo, o pensador o entende como o ambiente existencial do homem, ambiente no qual está inserido, mas que é formado, projetado, ordenado pelo próprio homem através da linguagem. Assim, o homem é jogado no mundo, recebe o mundo já dado. Mas o mundo só é mundo para ele enquanto pode transformá-lo, assumi-lo, dar-lhe sentido, pelo seu projeto. Quanto à história, Heidegger sustenta que a dimensão espaço-temporal não é meramente física, mas existencial, isto é, recebe sentido do homem e para o homem. Este, apesar de também jogado no tempo, assume o tempo, o seu tempo, com o seu passado e o orienta para o futuro. A história é a possibilidade de o homem assumir-se e realizar o seu projeto e realizar-se como projeto. É na história e pela história que o homem se situa e se reporta ao Ser. Nesse sentido, o tempo é considerado como templo do Ser. Templo porque é no horizonte do tempo, nos limites do templo-tempo, que o homem pode se realizar. Já no que se refere ao homem, o filósofo aponta que, inserido (ou jogado) no mundo, o ser humano não vive só; vive rodeado de outros homens e de outros entes não-humanos. E é na relação dupla do homem com seus semelhantes e do homem com os não-humanos que o homem vive, desenvolve-se e se projeta. O caráter de coexistência, portanto, é caráter fundamental do homem. Com isso, o ser-no-mundocom-o-outro é a condição básica de humanização. Por fim, tecemos considerações sobre como a filosofia de Heidegger, apesar de sofrer consistentes críticas em nossos dias, de modo especial por seu caráter antropocêntrico, revela-se ainda importante para o pensamento contemporâneo e comporta interessantes categorias de análise fenomenológica acerca da existência humana. Palavras-Chave: Heidegger, Antropologia Filosófica, Filosofia Contemporânea. Man: Being-In-The-World-With-Others Abstract In this article, we seek to follow a few steps of Heidegger's anthropological thought. For him, the fundamental understanding of man is related to the metaphysical question of being relegated from Scholastic. His intent is to resume it, particularly from Aristotle. The method which can effectively lead the direction of this order is the phenomenological. For a fair presentation of its position on the issue, we follow Heidegger in three steps: first, the world; in the second, the history and the third, man. About the world, the thinker understands as man's existential environment, the environment in which he is inserted, but it is formed, designed, ordered by man himself through language. Thus, man is "thrown" onto the world, receives the world already 1 Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: jldettoni@hotmail.com 2 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: jldettoni@hotmail.com 3 Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: isclopes@yahoo.com.- br Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 103

given. But the world is one world for him while he can transform it, take over it, give it meaning, by his project. As for the story, Heidegger argues that the space-time dimension is not merely physical but existential, that is, receives sense by man and to man. This, though also "thrown at time," takes time, his time, with his past and guides him toward future. The history is the possibility of man assume and carry out their project and be carried out as a project. It is in history and through history that man is set and reports to the being. In this sense, time is considered as the temple of Being. Temple because it is the time horizon, the temple-time limits, that man can be held. Regarding to man, the philosopher points that inserted (or thrown) in the world, human being does not live on his own; he lives surrounded by other men and other nonhuman beings. And it is the dual relationship between man and his fellow man and with nonhumans that man lives, develops and designs himself. The coexistence character is, therefore fundamental character of man. Thus, the being-in-the-world-with-others is the basic condition of humanization. Finally, we weave considerations on the philosophy of Heidegger, despite suffering consistent criticism nowadays, especially for its anthropocentric character, still it proves to be important for contemporary thought and includes interesting phenomenological analysis categories about human existence. Key Words: Heidegger, Philosophical Anthropology, Contemporary Philosophy. Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 104

Introdução Será relevante um estudo sobre Heidegger, nos nossos dias, quando, para certas alas da Filosofia, o Existencialismo é considerado uma filosofia superada? Será, particularmente importante uma reflexão sobre o homem como ser no mundo em nossos dias impregnados de tecnologia e pragmatismo? A nosso ver, Heidegger, importante filósofo do século XX, desenvolveu uma análise sólida e profunda sobre o homem e seu significado no mundo e na história. Para responder às duas questões iniciais, parece-nos oportuno fazermos mais uma pergunta: deixará algum dia de ser importante questionar-se e aprofundar a questão sobre quem somos e qual o sentido de nossa existência no mundo? A resposta nos parece óbvia, mas deixamos claro que, a nosso ver, nunca esta questão deixará de ser importante e atual. Sob este prisma, Heidegger e sua temática filosófica não perderão sua atualidade. É baseado nisto que nos propomos seguir alguns passos heideggerianos para, acompanhando-o e escutando-o, possamos aprender um pouco do muito que ele tem a nos dizer sobre o homem como ser-com-o-outro, ainda que isso possa suscitar discordâncias e questionamentos. Seguiremos Heidegger em três passos: primeiro, o mundo; segundo, a história e, no terceiro, o homem: ser-no-mundo-com-os-outros. Heidegger e o homem como ser-no-mundo Heidegger, em seus estudos, percebeu que a questão central da Filosofia é a questão do Ser. Percebeu que é central desde os gregos. Percebeu que a Escolástica, julgando resolvida esta questão, colocou-a no esquecimento. E, assim, a questão do Ser, da Escolástica até hoje, ficou relegada. O seu intento é retomá-la. E o faz a partir dos gregos, particularmente a partir de Aristóteles. Percebe, ainda, que o caminho é pelo homem, o único ser capaz de se interrogar sobre o ser (JOLIVET, 1961, p. 88). O método que considera capaz de conduzir com eficácia este estudo é o método fenomenológico, o qual não pretende demonstrar (o que é impossível, pois o ser não se demonstra), mas, sim, mostrar. questão fundamental para Heidegger, portanto, é a metafísica. Metafísica sim, mas fun- Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 105 A

dada numa antropologia, num estudo do homem. Neste artigo, descreveremos algumas categorias deste ser-no-mundo. ISBN: 2359-1951 O Mundo Numa perspectiva heideggeriana, o homem se diferencia fundamentalmente dos outros entes por ser o único capaz de se perguntar sobre si e sobre os outros. Só ele teria um mundo, os outros entes seriam substâncias que permanecem individualmente, não mantendo o relacionamento necessário para a integração no mundo. Estão no mundo, mas não são nele, ou seja, não agem para modifica-lo, não se entrosam entre si (BEAINI, 1981, p. 30). Não têm consciência de sua existência. E, não tendo consciência de si, não podem ter consciência dos outros. São, por isso, puros dados, incapazes de serem sujeitos, incapazes de assumirem a si e aos outros seres. O seu modo de ser é totalmente diferente do modo humano de ser. Este, o ser humano, efetivamente existe no mundo. Mundo é mundo só para ele, pois pode assumi-lo, modificálo. Pela consciência, o homem (Dasein) está aberto a si mesmo, aos outros homens, aos outros entes, ao ser. E isto é mundo. Mundo, portanto, ainda sob esse prisma, seria esta abertura para o ser, só possível ao homem. E essa abertura é a possibilidade da linguagem. Possibilidade inexistente, segundo Heidegger, para os outros entes. Porque os vegetais e os animais, embora se achem numa tensão com seu ambiente, nunca estão postos livremente na clareira do Ser e só essa é mundo, por isso lhes falta a linguagem (HEIDEGGER, 1967, p. 44-45). Ser capaz de linguagem, falar, é consequência de sua abertura, de sua capacidade de pensar e, consequentemente, de perguntar. Esta abertura, expressa pela consciência de si e dos outros e efetivada pela linguagem, é a base da evolução do homem e de sua liberdade. Prova-lhe, ao mesmo tempo, sua incompletude. Os outros entes, de acordo com essa filosofia, na sua completude, são fechados, são coisas; o homem, na sua incompletude, na sua abertura, na sua liberdade, é pessoa, ser que fala e, pela fala, dá sentido ao mundo. O mundo é uma parte do homem (enquanto o significado, de cada ente e do próprio homem, depende do projeto em que está inserido) (BEAINI, 1981, p. 31). Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 106

O mundo, pois, é mundo só para o homem. E na medida em que o homem está nele, na medida em que é formado pelo homem. O mundo é o ambiente existencial do homem no qual o homem está inserido, mas que é formado, projetado, ordenado pelo homem através da linguagem. Os outros entes, dispersos por si mesmos, sem sentido, recebem significação do homem e formam o contexto mundano do homem. O mundo do homem, ser-no-mundo, pode ser autêntico ou inautêntico, de acordo com o seu assumir-se livre e responsavelmente ou seu não assumir-se, seu deixar-se ser, de certa forma decaído em neutralidade semi-responsável ou irresponsável. O modo autêntico de ser do homem é difícil, devido às circunstâncias ambientais de convivência que facilmente levam o homem a um nivelamento quase coisificante. O homem é jogado no mundo, recebe o mundo já dado. Mas o mundo só é mundo para ele enquanto pode transformá-lo, assumi-lo, dar-lhe sentido, pelo seu projeto. O homem está no mundo, depende do mundo pelas suas dimensões de espaço-tempo, mas, pela abertura do homem ao ser, pela sua disponibilidade ao dar-se do ser, confere sentido ao mundo pela linguagem. É pela sua transcendência ao mundo-dado que o homem faz do mundo-dado um mundo humano, mundo verdadeiramente mundo. Se dissermos que o homem está no mundo, podemos acrescentar que o mundo está no homem, pois que dele recebe sentido, pois é ele o único ente aberto ao ser. E aberto pela consciência. Consciência é sempre consciência de alguma coisa. Não deverá, portanto, haver uma entidade como um sujeito sem mundo, nem deverá haver mundo, tomado significativamente, ou no sentido fenomenológico, sem sujeito. Poder-se-ia dizer mesmo que os fundamentos do ser humano estão no estado de consciência, um estado de alerta, uma preocupação com o estar-no-mundo (MARTINS, 1983, p. 34). O Eigenwelt, o mundo pessoal, a consciência de si, o relacionamento consigo mesmo, não está desvinculado do Mitwelt, o mundo das pessoas ao redor, e nem do Uniwelt, o mundo das entidades que rodeiam os homens. Esses três tipos de mundos formam o mundo humano, como um todo, com um significado humano. Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 107

Heidegger, na sua obra, propôs-se a descrever a experiência humana como ela é vivida à medida em que o ser toma consciência do mundo. O binômio homem-mundo, na formulação de Heidegger, constitui a ideia básica do existir ou não existir (MARTINS, 1983, p. 39). Desta forma, uma coisa é certa: não é possível ser humano em condição de isolamento. À parte, ou num estado de separação, a potencialidade humana não se atualizará (MARTINS, 1983, p. 40). Ser e existir plenamente, portanto, para o homem, é ser-com-os-outros-no-mundo. História Segundo o pensamento heideggeriano, só o homem é um ser histórico, porque só ele seria um ser temporal, isto é, consciente de sua ligação com o passado, com o presente e com o futuro. Só ele, pela sua consciência e pela sua memória, forma a tradição e, pelo seu projeto, dirige os rumos do futuro. Pelo presente se liga ao passado e ao futuro. O homem, apesar de jogado no tempo, assume o tempo, o seu tempo, com o seu passado e o orienta para o futuro. Só o homem é histórico. Os outros entes vivem, mas, por não saberem que vivem, que viveram ou viverão, não vivem historicamente, não têm tradição nem projetos. São, para essa filosofia, meros dados, assumidos pelo homem. A história é a possibilidade de o homem assumir-se e realizar o seu projeto e realizar-se como projeto. Encontrar-se em situação e encontrar-se em sua dimensão histórica. É pela história que o homem pode ser. Por isso, o homem é conquista. Conquista de si mesmo como ser-no-mundo. É na história e pela história que o homem se situa e se reporta ao ser. O Eingenwelt, o Mitwelt e o Uniwelt tomam sentido ao longo da história. É pelo primeiro que os outros tomam sentido, mas, sem os outros, o primeiro também não existiria. Seria uma mera abstração, porque o homem só existe na história. Em oposição à ideia da primazia do conhecimento, a ideia da existência vivida é introduzida no aqui e no agora concretos, com dados originais mais do que como abstrações sobre o homem e sobre o mundo (MAR- TINS, 1983, p. 37). Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 108

A história é história humana e é autenticamente humana enquanto o homem se insere no seu tempo, nas suas circunstâncias históricas, assumindo-as como são e tentando dirigi-las sempre com a consciência desperta, sempre em estado de alerta. A história não é a história em abstrato, é esta história, a sua história em concreto do dia-a-dia. Dia-a-dia, porém, que não pode ser deixado na inautenticidade do inconsciente ou da inautenticidade do não assumir irresponsável. É na situação espaço-temporal que se concretiza a história. É no aqui e no agora, ou no entrecruzar-se, que o homem se situa e se descobre como indivíduo concreto, particular, independente do outro, na sua ecceidade. Sente-se lançado neste espaço-tempo. Descobre-se incapaz de estar em vários lugares ao mesmo tempo. É pela tomada de consciência de sua espaço-temporalidade que toma consciência de sua ecceidade, de ser ele mesmo e não outro, de estar aqui e não ali, de viver agora e não em outra época, de ser um eu concreto, este eu diferente e separado de qualquer outro eu. Se, por um lado, esta ecceidade lhe desvela sua pobreza, a pobreza de não ser mais do que ele mesmo, a pobreza de ser isso que descobre ser em suas limitações espaço-temporais, essa mesma ecceidade lhe desvela a riqueza de ser único, de ser especial, de ser irrepetível. O homem é um ser-no-mundo, enquanto dele participa, organizando, relacionando e dando sentido aos entes que estão a seu redor (BEAINI, 1981, p. 39). A dimensão espaço-temporal não é meramente física, mas existencial, isto é, recebe sentido do homem e para o homem. Qual das três dimensões caracteriza o tempo? O passado, o presente ou o futuro? Para Heidegger, parece ser o presente. Presente mal acabamos de nomeálo isoladamente, já pensamos em passado e futuro, o antes e o depois à diferença do agora (HEIDEGGER, 1973, p. 460). Assim, se necessitarmos caracterizar o tempo a partir do presente, compreendemos o presente como o agora à diferença do não-maisagora do passado e do ainda-não-agora do futuro (HEIDEGGER, 1973, p. 460). O presente é, portanto, um situar-se constantemente entre o passado e o futuro, dando sentido espaço-temporal ao mundo do e no aqui-agora. Contudo, antes de qualquer cálculo sobre o tempo e dele independente, é no iluminador alcançar-se recíproco do futuro, passado e presente que repousa o elemento próprio do espaço-de-tempo do tempo au- Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 109

têntico (HEIDEGGER, 1973, p. 462). Desvincular o presente do passado não é possível, nem o futuro do presente. ISBN: 2359-1951 O tempo é o horizonte da compreensão do ser (BEAINI, 1981, p. 41), porque é dentro do tempo que o homem vive seu horizonte final até a morte. O homem se compreende ao retomar seu passado para projetar-se no futuro; e se desconhece se desconhecer o seu passado (BEAINI, 1981, p. 42). É no tempo que o homem se realiza e é no tempo que o homem assume sua vocação (BEAINI, 1981, p. 43). Nesse sentido, o tempo é o templo de ser (STEIN, 1967, p. 222). Templo porque é no horizonte do tempo, nos limites do templo-tempo, que o homem pode se realizar. O Homem: ser-no-mundo-com-os-outros O homem, inserido (ou jogado) no mundo, não vive só; vive rodeado de outros homens e de outros entes não-humanos. E é na relação dupla do homem com seus semelhantes e do homem com os não-humanos que o homem vive, desenvolve-se e se projeta. O caráter de coexistência, portanto, é caráter fundamental do homem. O homem sem essas duas dimensões não passa de uma abstração. A minha existência implica a presença do outro, que me é semelhante na cultura, no aspecto físico, na linguagem e, particularmente, nas preocupações do cotidiano. Contudo, há a possibilidade da existência de uma dissimulação que cobre o meu eu e o eu do outro, não permitindo um conhecimento mútuo autêntico de mim mesmo e do outro e vice-versa. Nessa dissimulação e na tentativa de imitar o outro, que também é dissimulação, o homem se deixa levar por normas, costumes, moda etc. que não lhe são próprios. E, assim, caminha para uma vida impessoal, inautêntica. E nesse horizonte de inautenticidade, de impessoalidade, dilui-se e afoga-se a responsabilidade. Na verdade, essa estrutura existencial de ser-no-mundo-com-o-outro tem dupla possibilidade: se, por um lado, condiciona a inautenticidade, o impessoal e a irresponsabilidade, essa dimensão existencial possibilita o homem para a abertura para o outro e para si mesmo, revelando-se ao outro como ser de respeito e deixando o revelar-se do outro também como ser de respeito. Com isso, o ser-no-mundo-com-o-outro é Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 110

a condição básica de humanização, que contribui na edificação do ser mais homem de cada um (BEAINI, 1981, p. 45). A liberdade insere-se nessa possibilidade real de autenticidade e de inautenticidade. O mundo do homem é o mundo com os outros homens e com os outros seres e coisas. O meu mundo, portanto, na verdade, é nosso mundo. Se a preocupação, essa atenção ao mundo circundante (HEIDEGGER, 1965, p. 121), e a solicitude, essa atenção ao próximo como tal (HEIDEGGER, 1965, p. 121), podem levar o homem à indiferença em função de uma cotidianidade rotineira, as mesmas preocupações e solicitudes podem enriquecer o sujeito tornando-o mais humano. Se a dependência do eu com relação ao outro eu e à sociedade em geral comporta a possibilidade da irresponsabilidade e da inautenticidade pessoais, também pode gerar atitudes de colaboração e companheirismo. Se, ainda, o sentimento da situação originária pode me levar ao sentimento de abandono e me conduzir ao desespero, pode também me proporcionar vias de acesso a uma subjetividade madura e forte e à conquista de mim mesmo, já que eu sou, com efeito, projetado no mundo sem que de minha parte tenha havido qualquer escolha (JOLIVET, 1961, p. 106). Neste mundo, no qual fui jogado sem ter escolhido, contudo, através da minha consciência e das condições históricas em que vivo, sou livre. Diríamos limitadamente livre, porque sou livre dentro dos estritos limites de minha possibilidade. A liberdade, de fato, pertence ao existencial humano, mas uma liberdade restrita ao horizonte de minha possibilidade. E essa possibilidade é limitada pelas condições de espaço e de tempo. De espaço, dado que só posso estar num determinado lugar, e de tempo, porque sei que o horizonte da vida é muito limitado. Mas, se essas condições são limitadoras de minha liberdade, são também possibilitadoras da mesma liberdade. Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 111

Conclusão A metafísica, explícita ou implicitamente, sempre foi a questão central da Filosofia. O homem também, de uma forma ou de outra, sempre foi um problema para si mesmo. Heidegger, percebendo que a questão do ser foi, ao longo da história da Filosofia Ocidental, após os pré-socráticos, dada como resolvida e, por isso, posta de lado; retomou, como nenhum outro pensador contemporâneo, esta questão central da indagação filosófica. Soube, por outro lado, aliá-la magistralmente com a outra questão fundamental, que é o próprio homem. Assim, enceta e aprofunda uma meditação filosófica sobre o ser centrado no ser humano. As pesquisas heideggerianas vieram enriquecer grandemente a evolução do pensamento filosófico. Mesmo que, para certas correntes filosóficas, Heidegger e o existencialismo de modo geral sejam considerados expressões de uma filosofia já ultrapassada, este pensador alemão, tanto na sua vertente metafísica quanto na sua vertente poética, trouxe contribuições imorredouras para a História da Filosofia. Com efeito, tanto o pensamento de inspiração evolucionista quanto os avanços em estudos neurocientíficos tendem a por em cheque, por exemplo, o antropocentrismo da filosofia de Heidegger. No entanto, o estudo das categorias presentes no pensamento desse autor revela-se ainda importante, mesmo que para servir de base a contraposições e profundos questionamentos. Assim, Heidegger, pela sua obra, já conquistou certamente um lugar definitivo na galeria dos grandes pensadores. Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 112

Referências BEAINI, T. C. À Escuta do Silêncio. São Paulo: Cortez / Autores Associados, 1981. HEIDEGGER, M. L Être et le Temps (Zein und Zeit). Traduit par Rodolt Boehms et Alphouse de Waelhens. Paris: Gallimard, 1965. Carta sobre o Humanismo (Uber den Humanismus). Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores) JOLIVET, Régis. As Doutrinas Existencialistas. 3. ed. Porto: Tavares Martins, 1961. MARTINS, Joel; BICUDO, M. A. V. Estudos sobre Existencialismo, Fenomenologia e Educação. São Paulo: Moraes, 1983. STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Tese de Livre Docência. Porto Alegre: Ética Impressora, 1967. Volume 3 Número 2 Ago-Dez/2016 113