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Transcrição:

LANGDON, Esther Jean. La negociación de lo oculto: chamanismo, medicina y familia entre los siona del bajo putumayo. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014 Isabel Santana de Rose 1 Universidade Federal de Minas Gerais E-mail: belderose@gmail.com S e fizermos um sobrevoo no histórico das pesquisas antropológicas a respeito do xamanismo, veremos que até por volta da primeira metade do século XX as análises sobre esse tema tentavam encaixar esse fenômeno em categorias ocidentais pré-concebidas, resultando em discussões fragmentadas e que não davam conta da complexidade e da diversidade do fenômeno. Somado a isso, até este período, esse ainda era considerado um tema marginal na academia, já que existiam poucos trabalhos que se dedicavam especificamente a essa discussão. O revival dos estudos sobre esse tópico a partir dos anos de 1960 e 1970 foi estimulado por uma série de fatores que aconteciam tanto dentro quanto fora da academia, incluindo os movimentos contraculturais dos anos de 1960 que valorizavam as chamadas plantas de poder e a busca por estados alterados de consciência; e as pesquisas interdisciplinares dos anos de 1950 e 1960 sobre os potenciais terapêuticos de substâncias psicoativas como o LSD, entre outras (ver, entre outros, Langdon, 1996b e 2015). Como resultado dessa conjunção de fatores, a partir dos anos de 1980 as publicações e seminários dedicados a discutir o xamanismo começaram a se multiplicar. Nessa mesma época, em diferentes partes da América do Sul, grupos indígenas começaram a protagonizar processos de reinvenção e de revitalização de seus sistemas xamânicos (Langdon, 2015). Como aponta Jean-Pierre Chaumeil (1998), em muitos casos, essas respostas e novas versões 201

do xamanismo são surpreendentes e contrariam as imagens e as expectativas antropológicas. Esther Jean Langdon foi uma das pioneiras nesse revival das pesquisas sobre xamanismo, tendo feito parte de uma geração de antropólogos que conduziu seus trabalhos de campo nas Terras Baixas da América do Sul e que contribuiu de maneira decisiva para aumentar o conhecimento a respeito dos povos indígenas dessa região. Autores como Langdon (1988; 1994a; 1996b; Langdon e Baer 1992; Cipolleti e Langdon 1992, entre outros), e Chaumeil (1983) questionaram a inclusão do xamanismo nos debates clássicos sobre as fronteiras entre magia, religião e ciência. Em contrapartida a trabalhos realizados entre os anos de 1940 a 1960 que associavam xamanismo à mentalidade primitiva ou à patologia, ou ainda, a análises que abordavam o xamanismo como um fenômeno privado, marginal e extraordinário, como o trabalho de Mircea Eliade da década de 1950 (Eliade, 2002), os pesquisadores dessa geração ressaltaram o caráter público e o papel social dessa instituição, que é fundamental na organização tanto da vida tanto social quanto da individual dos povos indígenas das Américas. Chamando atenção para a complexidade e a diversidade dos xamanismos indígenas, tanto Langdon (1996b) quanto Chaumeil (1983) propuseram que o xamanismo fosse pensado como um sistema cosmológico que se relaciona com várias esferas da vida ao mesmo tempo política; cura, saúde e doença; aspectos estéticos; guerra, canibalismo e predação, organização social, etc. Outra discussão importante que aparece nessas etnografias pioneiras é a proposta de pensar xamanismos em movimento (Chaumeil, 1998), questionando as visões estáticas que costumavam marcar as análises antropológicas do período e apontando para os aspectos dinâmicos e criativos, e as constantes transformações e reinvenções, que se encontram entre as principais características dos xamanismos ameríndios (Carneiro da Cunha, 2009). Muitas dessas ideias aparecem no livro Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Organizada por Langdon e publicada em 1996, essa foi a primeira coletânea brasileira sobre o tema, chamando atenção para a relevância do xamanismo como tópico de estudo na antropologia e para a importância de produzir modelos teóricos adequados para 202

compreender o xamanismo como sistema, especialmente no que diz respeito ao seu caráter dinâmico e sua presença no mundo contemporâneo (Langdon, 1996). Entre as contribuições deste e de outros trabalhos clássicos de Langdon sobre esse tema, influenciados pelo seu diálogo com autores da antropologia simbólica norte-americana, principalmente Geertz e Turner, é possível encontrar a ênfase no xamanismo como sistema cosmológico; o destaque para as relações entre os sistemas xamânicos e as necessidades expressivas humanas (que seriam preenchidas por meio dos ritos, dos mitos, dos símbolos e das narrativas); com a busca humana por organizar o mundo e conferir sentido à experiência; e com questões estéticas ligadas a essa necessidade de expressão. Essa autora ressalta que, embora hajam elementos comuns entre os diversos xamanismos ameríndios, os sistemas xamânicos modificam-se ao longo do tempo e podem ser compreendidos de melhor forma dentro de seus contextos culturais. Essas preocupações também aparecem em La negociación de lo oculto. Chamanismo, medicina y familia entre los Siona del bajo Putumayo (2015), que consiste na tradução da tese de doutorado de Langdon, defendida na Tulane University of Louisiana em 1974. O trabalho é baseado em pesquisa de campo conduzida durante quase quatro anos na Terra Indígena de Buena Vista, localizada perto da cidade de Puerto Assis, na região do Putumayo na Amazônia colombiana 2, e inclui ainda o material de quatro visitas feitas ao Putumayo entre 1980 e 1992. Em todas essas visitas, Langdon dedicou-se a registrar as narrativas dos Siona, tendo coletado mais de 100 relatos na língua nativa, dos quais muitos tratam de temas como batalhas xamânicas, voos xamânicos em sonhos ou induzidos pelo consumo do yajé, 3 e enfermidades e mortes causadas por feitiçaria (Langdon, 2015, p. 12). Sua descrição do sistema cosmológico Siona está baseada principalmente em longas discussões com seis homens Siona mais velhos que detinham conhecimento xamânico. Entretanto, seu interlocutor central, tanto aqui quanto em outros trabalhos, é Ricardo Yaiguaje, 4 com quem a autora teve um prolongado diálogo e intercâmbio de narrativas e outros conhecimentos. Uma das principais motivações de La negociación de lo oculto é a tentativa de compreender a cosmologia Siona e suas relações com as enfermidades e com os itinerários terapêuticos, com base em uma 203

abordagem que propõe ver a doença como processo e como experiência, e que enfatiza a negociação dos significados; as ambiguidades e as contradições presentes nas interpretações sobre os episódios de enfermidade elaboradas por diferentes atores; e as ações concretas empreendidas na vida cotidiana (Langdon, 1994b; 2001; 2015, entre outros). O trabalho consiste, portanto, em uma etnografia sobre o sistema médico Siona, estabelecendo relações entre esse sistema, o sistema xamânico e o consumo do yajé (Langdon, 2015, p. 23). Uma das perguntas iniciais de Langdon neste livro é por que publicar um estudo antropológico sobre um grupo amazônico escrito há quase 40 anos (Langdon, 2015, p. 11). A autora indica que o mundo dos Siona mudou de muitas maneiras, e foi influenciado pela constituição colombiana de 1991 e as políticas públicas resultantes direcionadas para questões étnicas e identitárias; pelo impacto da violência ligada ao tráfico de drogas na região durante mais de duas décadas; e pela expansão da indústria do petróleo (Langdon, 2015, p. 20). Entretanto, apesar de todas essas transformações e dificuldades, houve uma revitalização do xamanismo Siona, ligada a um movimento ativo para fortalecer a língua e a cultura. Desse modo, em parte, a publicação do livro se justifica pelo próprio interesse dos Siona em recuperarem seu passado, sua memória, sua cultura e sua linguagem (Langdon, 2015, p. 21). Langdon também aponta que, apesar de ter sido escrito nos anos de 1970, esse livro chama atenção para a interação dinâmica entre conhecimento tradicional e experimentação e inovação, e para a constante reinvenção da tradição que caracteriza o sistema xamânico Siona. Uma das questões destacadas neste trabalho é que, durante o período da pesquisa de campo da autora, a situação era de xamanismo sem xamãs (Langdon, 2015, p. 258), pois não havia entre os Siona nenhum cacique curaca, isto é, a figura político-religiosa responsável pelo controle social nas suas comunidades (Langdon, 2015, p. 113) 5. Entretanto, apesar do desaparecimento dos caciques curacas e da redução dos rituais com o yajé, o sistema xamânico Siona e sua cosmologia característica persistiam ao mesmo tempo em que se transformavam para se adaptar a essa e a outras transformações. Segundo a autora, 204

o poder que os caciques curaca tradicionalmente detinham nas comunidades Siona estava ligado à influência da realidade invisível em todos os aspectos da vida cotidiana, que são afetados por um vasto mundo espiritual. Os caciques curacas obtinham o conhecimento para fazer a mediação entre os lados visível e invisível da realidade principalmente por meio da ingestão frequente de yajé e dos sonhos xamânicos. Como em outros sistemas xamânicos ameríndios, o sistema Siona é ambíguo e ambivalente, sendo que o poder do cacique curaca também tinha um outro lado : além de ser o protetor e o provedor da comunidade, ele podia ser capaz de causar enfermidades e infortúnios para seus inimigos. Desse modo, a ambiguidade do poder xamânico constituía um componente importante do controle sociopolítico empreendido pelos curacas (Langdon, 2015, p. 116). Ao discutir o tema das múltiplas realidades ou mundos, os múltiplos seres e povos ou gentes que compõem o cosmos Siona, e o papel de mediação desempenhado pelos caciques curacas, como outras etnografias dessa época, o trabalho de Langdon antecipa as discussões sintetizadas no conceito de perspectivismo ameríndio proposto por Viveiros de Castro no final dos anos de 1990 (Viveiros de Castro, 1996; 2002). A descrição feita por Langdon sobre esse tema inclui aspectos como a transformação interespecífica e as roupas que os seres podem vestir para se transformar em outros; os donos das plantas e das espécies animais; o caráter ambivalente do poder xamânico; e a predação como uma parte fundamental, embora não a única, do sistema xamânico Siona. Entretanto, no lugar de enfatizar os aspectos filosóficos presentes nos sistemas xamânicos, essa autora ressalta a dimensão da práxis, ou seja, a interação entre os modelos teóricos e ação, em uma abordagem que destaca a emergência dinâmica da cultura e a constante transformação dos xamanismos. Em uma reflexão autobiográfica, Langdon (2015, p. 11) argumenta que o histórico das pesquisas sobre xamanismo coincide com a própria história da antropologia, sendo que as preocupações, os conceitos empregados e as perguntas feitas pelos antropólogos nos anos de 1970 e hoje são completamente diferentes. Nesse sentido, embora quando iniciou seu trabalho de campo entre os Siona, ela tenha partido de uma visão da cultura como homogênea e uma unidade com 205

fronteiras claras e bem delimitadas, atualmente a autora considera que para compreender adequadamente o xamanismo ou qualquer outro fenômeno social, é preciso abandonar essa visão essencialista de cultura, bem como a voz monofônica das etnografias (Langdon, 2015, p. 255). No epílogo de La negociación de lo oculto, ela discute a revitalização do sistema xamânico Siona a partir dos anos de 1980, comentando que esse processo contrariou as previsões que tinha feito no final da sua pesquisa de campo em 1974. De acordo com Langdon (2015, p. 269), esse revival foi protagonizado por pessoas totalmente inesperadas e tomou direções surpreendentes que evidenciam tanto a inadequação do enfoque normativo sobre a cultura quanto a innegable fragmentación de la experiencia etnográfica, refletindo os temas, dilemas e mudanças na antropologia ao longo do tempo. O livro La negociacion de lo oculto traz, assim, tanto uma rica etnografia baseada em um trabalho de campo extenso e em uma ampla coleção de narrativas Siona, quanto reflexões produzidas por Langdon com base em sua trajetória de mais de 40 anos de pesquisas sobre xamanismo. Notas 1 Este trabalho contou com o apoio do CNPq via bolsa PDJ. 2 A comunidade de Buena Vista foi fundada nos anos 1930. Sua demarcação como terra indígena em 1967 foi um fator fundamental para assegurar a continuidade dos Siona no Putumayo, tendo em vista a crescente invasão dos seus territórios (Langdon, 2015, p. 57). Desse modo, nos anos de 1970, Buena Vista era a principal entre as comunidades Siona, sendo formada por uma população com aproximadamente 139 pessoas (28 famílias). 3 Os Siona também chamam o yajé de eco, termo cujo significado geral corresponde aos nossos termos medicina ou remédio (Langdon, 2015, p. 147). Esse termo é empregado para designar um conjunto amplo de substâncias e preparações (não necessariamente psicoativas) que podem ser usadas para combater enfermidades e produzir bem-estar. Entretanto, na perspectiva Siona, el yajé constituye la medicina por excelência, sendo empregado em todos os casos de infortúnio nos quais se suspeita da intervenção de entidades invisíveis (Langdon, 2015, p. 148). Somado a isso, o yajé também é a principal substância usada durante o aprendizado xamânico, com o objetivo de ensinar os aprendizes a contatar os espíritos e a lidar com as forças ocultas do universo (Langdon, 2015). A importância do yajé no âmbito da cosmologia e do sistema xamânico Siona encontra-se ligada ao fato de que essa bebida constitui a ponte entre este mundo e o outro lado da realidade, fazendo com que ele se torne visível (Langdon, 2015, p. 149-150). 4 Ricardo era o mais velho entre esses seis homens e foi o que recebeu o treinamento xamânico mais completo. Ele era filho de um reconhecido xamã Siona, Leônidas 206

Yaiguaje, e irmão de Arsenio, considerado como o último cacique curaca deste povo. Quando Arsenio morreu, todos esperavam que Ricardo ocupasse seu lugar. Entretanto, devido a sucessivas experiências ruins com o yajé e os ataques de feitiçaria que o levaram a perder seu poder xamânico, Ricardo não conseguiu obter o grau de conhecimento necessário para desempenhar o papel de cacique curaca (Langdon, 2015, p. 257-58). 5 O cacique curaca era a principal autoridade das comunidades Siona, reunindo as funções de liderança política e religiosa em um sistema no qual não havia separação entre o secular e o religioso (Langdon, 2015, p. 113-14) e no qual existem diferentes graus de conhecimento e de poder xamânico (Langdon, 2015, p. 154). Referências CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Xamanismo e tradução. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 101-115. CHAUMEIL, Jean-Pierre. Voir, savoir, pouvoir: le chamanisme chez les Yagua du nord-est péruvien. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1983. CHAUMEIL, Jean-Pierre. Prefacio a la edición en castellano. In: CHAUMEIL, Jean-Pierre. Ver, saber, poder: chamanismo de los Yagua de la Amazonía Peruana. Lima: Centro Amazónico de Antropología y Aplicación Práctica (CAAAP), 1998. p. 15-38. CIPOLLETTI, M. S.; LANGDON, E. J. (Org.). Concepciones de la muerte y el mas alla en las culturas indigenas latinoamericas. Quito: Abya- Yala, 1992. ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002. LANGDON, E. Jean. Religião, magia ou feitiçaria: o pensamento antropológico sobre o xamanismo. Trabalho apresentado para Concurso de Professor Adjunto na UFSC. Florianópolis, 1988. LANGDON, E. Jean. A negociação do oculto: xamanismo, família e medicina entre os Siona no contexto pluri-étnico. Trabalho apresentado para concurso de Professor Titular na UFSC. Florianópolis, 1994a. LANGDON, E. Jean. Representações de doença e itinerário terapêutico entre os Siona da Amazônia Colombiana. In: SANTOS, Ricardo; COIMBRA, Carlos (Org.). Saúde dos povos indígenas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994b. p. 115-142. LANGDON, E. Jean (Org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: Editora da UFSC, 1996a. 207

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