CONSCIENCIA E MUDANÇA SOCIAL: COMO PENSAM, O QUE SENTEM E COMO AGEM PARTICIPANTES DE UM ASSENTAMENTO



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Transcrição:

CONSCIENCIA E MUDANÇA SOCIAL: COMO PENSAM, O QUE SENTEM E COMO AGEM PARTICIPANTES DE UM ASSENTAMENTO Ed Carlos Corrêa de Faria Faculdade de Psicologia Centro de Ciências da Vida edc@puccamp.edu.br Resumo Esse estudo analisou os processos de tomada de consciência necessários à mudança social presentes na visão de trabalhadores que residem em ocupações rurais e atuam em movimentos por Reforma Agrária. Para tal análise se utilizou de uma abordagem materialista históricodialética inserida numa perspectiva qualitativa de pesquisa. Foram realizadas entrevistas com um roteiro previamente estruturado para atingir as dimensões a serem investigadas. Militantes trazem a tona uma consciência de sua atuação na realidade e seu senso de coletividade com base como resultante de sua atuação nos movimentos que se inserem. Palavras-chaves: processos de alienação, consciência, psicologia da libertação Área do Conhecimento: Ciências Humanas Psicologia Social CNPq. 1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa objetiva a investigação do nível de consciência que homens e mulheres têm de seus direitos fundamentais e busca compreender do porque comportamentos de alienação e fatalismo usualmente tem sido a resposta à uma realidade de opressão, injustiça, adversidade, violência e exclusão causados a uma determinada classe no sistema capitalista. Optou-se como sujeitos, por trabalhadores organizados em movimentos sociais. Essa escolha se deve pela compreensão de que a atividade política é um fazer coletivo, que coloca o indivíduo frente ao gênero humano, superando o fazer cotidiano e desenvolvendo um ser-para-si, em contraposição a um ser-em-si [8]. A luta dos militantes entrevistados neste estudo ergue um questionamento histórico: por que nos países da América Latina a Reforma Agrária não aconteceu, mesmo em fase de capitalismo desenvolvido? A América Latina, como afirmou Eduardo Galeano [5], existe para suprir Raquel Sousa Lobo Guzzo Avaliação e Intervenção Psicossocial: Prevenção Comunidade e Libertação Centro de Ciências da Vida rguzzo@puc-campinas.edu.br necessidades alheias, necessidades de quem está do lado privilegiado na Divisão Internacional do Trabalho Os fundamentos deste estudo sustentam uma análise da vida no capitalismo e compreende que, para tal, deve-se considerar a constituição histórica e social da personalidade. Para isso o profissional psicólogo é encarado com a responsabilidade de contribuir para o processo emancipatório, compreendendo que não há libertação individual numa sociedade opressora, e que a libertação só é possível se encarada como um projeto histórico de massas [7]. 1.1 As respostas psicossociais no Capitalismo No Capitalismo a vida social é marcada pela propriedade privada, os interesses da coletividade se submetem ao enriquecimento privado de uma minoria. Esse contexto histórico possibilitou que o individualismo burguês chegasse ao prejudicial patamar que chegou os interesses da minoria sobre os da coletividade, gerando acentuadas diferenças entre classes [10]. Um dos focos dessa pesquisa é o sofrimento gerado pelas condições de exploração e opressão, presentes na realidade e que tem como resultado respostas de violência, alienação, fatalismo e sentimentos de impotência. Martins [12] aponta que geralmente a personalidade humana é caracterizada de forma idealista como algo interior ao homem que somente pode se atualizar e mesmo assim em condições externas especiais. Sob essa perspectiva, dicotômica ao mundo, o homem não pode ser apreendido em sua totalidade concreta, pois nega a indissolúvel unidade entre o indivíduo e o gênero humano, tendo em vista que o homem somente se individualiza por meio do processo histórico-social. No desenvolvimento do presente projeto o fatalismo é visto como uma forma de resposta à um contexto de exploração e miséria. Borsoi [1], ao tratar a questão, dialoga com Martin-Baró para afirmar que,

no plano conceitual, o fatalismo é uma compreensão da existência segundo a qual o destino de todos está predeterminado, ou seja, para os homens a única opção possível é acatar seu destino e se submeter. Ainda para Borsoi [1], o fatalismo é uma atitude externa e objetiva, antes de ser interna e subjetiva, em outras palavras, o fatalismo é o resultado de um processo de apropriação de recursos e exploração. Os indivíduos de classes dominadas se encontram diante de uma realidade que não lhes oferece possibilidades de controlarem a própria existência, diante disso aderem a uma explicação naturalizante. Para os autores a dominação se torna ainda mais efetiva quando os indivíduos dominados a acolhem psicologicamente e creditam ao destino suas mazelas. Outro processo psicossocial importante para esse projeto é o de conscientização. Segundo Oliveira e Carvalho [14] o termo foi difundido por Paulo Freire e para ele se relaciona necessariamente com ação, relação entre o pensar e o atuar, e é o desvelar da razão de ser das coisas. A conscientização se dá mediante um movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação interior e a subseqüente ação no processo da luta libertadora [14]. Para Martin- Baró [11] conscientização não consiste em uma simples mudança de opinião sobre a realidade, uma mudança na subjetividade de cada indivíduo que deixa intacta a realidade, conscientização supõe que pessoas mudam no processo de. Paulo Freire parte da constatação do jogo dialético das relações homem-mundo para a reflexão sobre a conscientização. Para Freire é nesta ação dialética que a tomada de consciência se dá. Mais que isso, o homem toma consciência de si e do outro na práxis, no trabalho, na atividade. Dessa forma ele transforma o mundo e, dialeticamente, é transformado por ele. A tomada de consciência é fruto da confrontação do homem com o mundo, do sujeito com o objeto [14]. 1.2 O trabalho e a Reforma Agrária no Brasil Para este estudo o trabalho tem um papel imprescindível, Lessa [9] aponta que no momento da prévia-ideação o homem é capaz de confrontar passado, presente e futuro, ao se utilizar de sua experiência de vida para atender as necessidades presentes antevendo os fatos subseqüentes. Na práxis o homem ao objetivar, o plano idealizado adquire novos conhecimentos a respeito da realidade concreta e de suas capacidades, alem de desenvolver novas habilidades, esse é o ato que o diferencia dos demais animais e funda o homem enquanto ser social. Para Konder [6] o homem não pertence mais inteiramente à natureza, graças ao trabalho o ser humano pôde conquistar certa autonomia diante de natureza. Ainda como fundamento deste estudo, destaca-se a relação dialética entre sujeito e sociedade na compreensão do nível de consciência e envolvimento com os movimentos sociais. Lacerda e Guzzo [8] apontam que é preciso conhecer o contexto histórico e o desenvolvimento das condições singulares de vida e como as pessoas nela se inserem para se ter clareza de como se processa e se estabelece a consciência de classe necessária à transformação social. As pesquisas de Lacerda & Guzzo [8] e de Domingues [3], concordam que no contexto brasileiro alguns processos históricos impediram a Reforma Agrária. A começar que no país o capitalismo chega de forma tardia e é implementado por via colonial em respostas a necessidades de países imperialistas de se desenvolver, se manteve, por isso, o latifúndio no país. Ao fazer um levantamento histórico os autores citados no parágrafo acima afirmam que nos anos 50 e 60 a ampliação da indústria convive com uma mão-deobra de alto custo devido os preços da alimentação (mais-valia relativa), sendo que no campo o latifúndio era usado como reserva de valor. Concomitantemente as organizações de trabalhadores rurais, juntamente a organizações reformistas conquistaram direitos parciais como o Estatuto do Trabalhador Rural, que desembocou em uma expulsão dos trabalhadores do campo criando uma massa de desempregados nas cidades. Desde esse período até os anos 80, o Estado estimulou a industrialização do campo, que levou ao aumento da produção sem necessidade da Reforma Agrária, causando a redução da mão-de-obra agrícola e mantendo a lógica capitalista. Do início dos anos 90, no governo de Fernando Henrique Cardoso, até os dias de hoje prevalece uma opção por um modelo neoliberal, que na agricultura é representado pelo agronegócio, em detrimento da agricultura familiar segundo Lacerda & Guzzo [8] e Domingues [3]. É fácil compreender essa afirmação quando observamos que, segundo dados do último Censo Agropecuário [2], 14% do crédito rural oferecido pelo governo foram para os pequenos agricultores, ou camponeses, enquanto que 86% foi para os grandes e médios produtores, representantes do agronegócio. Deve-se pontuar que os pequenos agricultores têm

24% de todas as terras privadas divididas em 4 milhões e 360 mil estabelecimentos, enquanto que os médios e grandes proprietários possuem 76% das terras divididas em apenas 807 mil estabelecimentos. Dentre eles os latifundiários, classificados assim todos que possuem mais de 2 mil hectares, que somam somente 15 mil fazendeiros, detendo 98 milhões de hectares. Os camponeses produzem 40% da produção agropecuária do Brasil, apesar de serem possuidores de apenas 24% das terras, com sua produção alimentam 70% do que é consumido no mercado interno [2]. O estudo aqui apresentado encara, portanto, a necessidade da Reforma Agrária no Brasil como uma forma de superação de condições precárias de vida, como saída para as filas de desempregados, para o pouco acesso da maioria da população à necessidades que são básicas à vida, bem como para a super-população em grandes cidades, entre outros. Compreende que no contexto histórico que nos encontramos a descentralização das terras somente é possível combinada a um projeto de massas de libertação, processo esse que a Psicologia deve ter um papel em acompanhar e contribuir para sua promoção e é para esse horizonte que esse estudo pretende contribuir. 2. MÉTODO O materialismo histórico é o referencial teórico deste estudo. O que significa optar por uma posição epistemológica e ideológica frente ao dominante uso de referenciais teóricos positivistas na produção em Psicologia. Para Martins [12] adotar tal teoria, é justamente se instrumentalizar para os desafios ideológicos impostos pelo capitalismo neoliberal. Tonet [15], por sua vez, afirma que a fundamentação metodológica tem um significado ontológico, e a define como um conjunto de categorias que visa interpretar a realidade, pressupondo, pois, uma articulação entre o conhecer e o agir. Esse estudo leva em conta que sendo o seu objeto a consciência, para compreendê-la tomamos como referencial o materialismo dialético, segundo Martins [13] esse método parte do pressuposto de que a consciência dos indivíduos sobre sua vida se constitui a partir de experiências sociais e conduz à compreensão de unidades complexas relacionadas a ela. Daí a importância para a análise dos processos de libertação e emancipação, a dimensão da vontade e os obstáculos que se opõem à sua manifestação. Para o estudo de um objeto como a consciência, se faz necessário uma escolha metodológica que tenha condições de alcançar um fenômeno tal que se apresenta de forma particular e se dá de maneira processual na relação com o ambiente. 2.1 Contexto e cenário As entrevistas foram feitas em um congresso de cunho político em que se encontravam presentes diversos representantes de movimentos sociais. Entre eles alguns movimentos pela Reforma Agrária, como os que participam os dois entrevistados do presente estudo. Os entrevistados descreveram o cenário onde vivem com consideráveis coincidências, embora sejam de estados distintos. A entrevistada, também referida aqui como participante 1, por ter sido a primeira a responder o questionário, vive no estado de Minas Gerais, enquanto que o Participante 2, denominação análoga á anterior, vive no estado de Goiás. Ambos são contextos rurais, vivem em barracos de lona e os assentados de onde vivem não conseguiram ainda o subsídio que o governo deve ofertar à assentados rurais, afim de ser usado como investimento na produção. As entrevistas foram feitas em um só dia no hall do congresso, já referido anteriormente, sem intervenções externas, após se acomodarem entrevistador e entrevistado. 2.2 Participantes A entrevista número 1 foi feita com uma trabalhadora rural de 33 anos, mãe de duas crianças e que é filha de bóias-frias. Além de trabalhar na terra a entrevistada trabalha como dona de casa e afirma trabalhar como militante, apesar de não ser uma atividade remunerada. Vive na ocupação há 6 anos e é militante de movimento por Reforma Agrária a 8. No assentamento onde vive os assentados ainda não receberam o repasse do governo, destinado por lei, para produção, ainda assim a sua família tem com única fonte de renda a terra. Segundo ela a família tira em média R$ 200,00 por mês, porém consomem o que produzem na terra e por isso se alimentam bem. Quanto a renda, a entrevistada somente reclama da falta de acesso à produtos que a família não pode produzir, como as roupas para seus filhos e materiais escolares. O segundo entrevistado é um homem de 43 anos, trabalhador rural, ex-caminhoneiro casado e com

três filhos. Ele vive na terra, que hoje é tida como um pré-assentamento, há seis anos, foi o primeiro espaço de movimento por Reforma Agrária que participou. Sua família vive somente da terra hoje, ganham em média R$ 600,00 por mês com o que produzem e vendem, segundo ele. O participante diz que entrou para o movimento depois de ter passado por um assalto ao caminhão no qual trabalhava, no episódio ficou refém por dois dias deitado sem poder se virar. Segundo ele o trauma o fez reconhecer no movimento uma segurança, porque estaria entre muitas pessoas. Depois do ocorrido o entrevistado não conseguiu voltar a trabalhar como caminhoneiro, precisava de uma fonte de renda. Por ser filho de trabalhadores e gostar da atividade foi atraído para o movimento. 2.3 Fonte de coleta Para o desenvolvimento do projeto foi utilizado um roteiro de perguntas criado com base em roteiros gerados e usados anteriormente pelo grupo de pesquisa. O grupo visa com ele compreender o que o entrevistado pensa sobre sua realidade e, com isso, caracterizar sua consciência sobre suas necessidades e suas condições de vida. O roteiro é dividido em quatro dimensões: a primeira e a segunda são de perguntas fechadas e objetivam, respectivamente, colher dados de identificação e sobre a dimensão sócio-econômica dos sujeitos que respondem à entrevista. A terceira dimensão do roteiro trata do que pensa o participante sobre o seu movimento: que motivos o levaram a ingressar nele, quanto tempo participa desse e se participa de outros grupos políticos. A quarta e última dimensão diz respeito à vida do sujeito da pesquisa: trata dos seus prazeres e desprazeres, perspectivas de futuro, o que pensa de suas condições de vida, o que pensa da sociedade em que vive e o que, em sua opinião, seria necessário para que as pessoas se unissem em prol dessas mudanças. As perguntas foram utilizadas como disparadoras e deixou-se que os entrevistados falassem livremente, dessa maneira não foi feita em forma de entrevista semi-estruturada. 3. ANÁLISE DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram organizados quatro quadros com o material coletado nas entrevistas. Os participantes discorreram sobre a importância de se pensar no coletivo e se preocupar em tomar parte e atuar para a mudança (Quadro 1). Devemos, porém, levar em consideração o contexto em que foi realizada a entrevista, um congresso em que os participantes representam os movimentos sociais em que militam. Essa consideração deve fazer emergir dois aspectos importantes que interferem em seus discursos: o primeiro é que, muito provavelmente, ambos são referências em militância nos movimentos que atuam, por esse motivo foram eleitos para representar suas respectivas organizações no evento, portanto deve-se analisar seus discursos não como simples assentados e poder cair no risco de generalizar os militantes desse movimento, mas como figuras condutoras de seus movimentos. O segundo aspecto a se considerar é que seus discursos estão influenciados pelo fato de estarem no congresso representando seus pares, representando um coletivo, somente não podemos afirmar em que nível essa influência se dá. Nos discursos de ambos os participantes podemos encontrar de forma consideravelmente relevante o senso de participação no coletivo e de atuação em suas realidades. Podemos perceber claramente esses aspectos na resposta de ambos à pergunta Que mudanças você deseja que aconteçam na sociedade? e Na sua opinião, o que impede as pessoas de se organizarem e lutarem por seus direitos?, nesse momento as respostas da participante 1 é de que deseja uma Revolução, e para isso a ampliação da conscientização e a superação do individualismo. As respostas do participante 2 à essas perguntas foram muito semelhantes a participante 1, ele afirmou que deseja que se supere o Capitalismo e o Neoliberalismo, que falta informação às pessoas para que elas possam lutar por seus direitos e que deseja que tenha fim a luta pelo poder. O que mais chama a atenção, porém, não é a resposta dos participantes às duas perguntas anteriormente referidas, mas sim o quanto o senso de coletividade e de atuação aparecem em questões que focariam mais em suas vidas individualmente, como por exemplo a pergunta que inicia a Dimensão 4, O que mais gosta de fazer na vida?, nessa questão a participante 1 falou sobre o prazer de estar com sua família e com seus companheiros do movimento, além de citar as conquistas do grupo. Na questão Quais são suas maiores preocupações? a participante 1 novamente citou seus companheiros de movimento e a educação dos filhos, preocupação a qual traz outro elemento sobre

sua atuação no seu espaço, isso porque a militante comenta que participa do colegiado da escola do filho. Tal aspecto também pode ser visto nas respostas do segundo participante, porém de forma menos freqüente, por exemplo na questão O que gostaria de mudar em sua vida? e O que espera para o futuro? o participante falou que deseja conquistar as bandeiras pelas quais luta, e sobre sua vontade de estudar mais, especialmente cursar graduação em Direito, para conhecer melhor os direitos que as pessoas tem para contribuir para reivindicá-los. Os participante não podem ser classificados como desconhecedores de seus direitos. Essa afirmação pode ser ilustrada com a defesa que os militantes entrevistados fazem do direito à terra que lhes é negado e pelo qual dedicam boa parte de seus dias lutando. O participante 2 reclama que o governo não faz sua parte quando perguntado sobre suas condições de vida, ele também discorre sobre a falta de condições de produção na maioria dos assentamentos por não receberem os subsídios para a produção e para a construção de casas. Os dois sujeitos das entrevistas, apontaram a miséria e exploração como formas motivo para que as pessoas não se unam para defender seus direitos, esse argumento parece incoerente quando tomamos como exemplo exatamente a vida dos dois entrevistados. Afinal os dois também se encontram em condições econômicas precárias, o que pode ser averiguado nos dados sócio-econômicos, situação identificada por eles, o que pode ser percebido na resposta que deram à pergunta: Como define suas condições de vida?. Porém essa aparente incoerência deixa de existir quando é levado em conta o outro determinante para a desunião que relatam os entrevistados: informação e conscientização. Nesse aspecto devemos levar em conta, para compreender o nível de consciência dos participantes, o espaço no movimento em que militam. Ambos os entrevistados afirmaram ser a organização a que pertencem, com materiais e por meio de outros militantes, uma das suas fontes de informação, ao lado da TV. Outro aspecto importante para a o desenvolvimento de uma consciência menos reificada nos participantes dessa pesquisa está em sua atividade, retomando o fato que na atividade os homens se desenvolvem quanto a sua personalidade e modo de ser. Na atividade da militância esses sujeitos encontram relações diferenciadas, posto que contestam a lógica dominante, além disso são colocados, cotidianamente, na situação de fazer escolhas coletivas e lutar por mudanças que tocam o gênero humano, o desenvolvimento da sociedade, como é a Reforma Agrária. O movimento social o qual pertencem relaciona a demanda imediata desses indivíduos, ter melhores condições de vida e uma terra para plantar, com o desenvolvimento da sociedade, a distribuição da riqueza material. Deve-se ponderar que não é inerente a um movimento social a articulação humano-genérico, como a que, em algum nível, ocorre nos grupos os quais os dois militantes entrevistados fazem parte. Porém, tendo em vista que os indivíduos da pesquisa trazem essa característica em seus discursos, podemos inferir que isso se deve a participação mais ativa dentro da organização, quando se comparada a da maioria dos demais militantes ou que os movimentos do qual fazem parte são mais ativos. Quadro 1. Síntese da Dimensão 4 Participante 1 Participante 2 Como já disse espera que se amplie a consciência de classe e com ela venha a revolução. A entrevistada diz que não verá essa revolução acontecer, mas trabalha para que um dia ela aconteça. Sobre os impedimentos de se unir ela diz: O Capitalismo [impede a união], fomos colonizados de um jeito que as pessoas hoje são individualistas. Afirma também que os indivíduos são muito explorados e sofrem tanto que perdem as forças para se movimentar e conclui: nosso povo não é preguiçoso, mas foi meio que treinado para isso. Dobrar o Capitalismo e o Neoliberalismo, ter um mundo mais humano. Hoje vivemos como animais, acrescenta que somos como animais que devoram uns aos outros, dá o exemplo dos porcos, que o maior pega toda a comida dos menores e deixam eles passando fome. O entrevistado espera que essa luta pelo poder que existe entre os homens acabe. Quer que as leis sejam por nós e não contra nós como afirma ser hoje. Para ele o que impede as pessoas de se unirem são as dificuldades financeiras: Nos vencem em cima de nossas dificuldades. Somase isso com o fato de as pessoas não terem informação, segundo o entrevistado se tivessem (informações) lutariam!.

AGRADECIMENTOS À FAPIC. REFERÊNCIAS [1] Borsoi, I. C. F. Acidente de trabalho, morte e fatalismo. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 17, n. 1, Apr. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artte xt&pid=s0102-71822005000100004&lng=en&nrm=iso>. access on 15 Aug. 2010. doi: 10.1590/S0102-71822005000100004. [2] Censo Agropecuário do IBGE 2006 recuperado em 12 de fevereiro em : http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/econom ia/agropecuaria/censoagro/2006/default.shtm. [3] Domingues, E. (2007) Vinte anos do MST: a psicologia nesta história. Psicol. estud., Maringá, v. 12, n. 3, Dec. 2007. Recuperado em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artte xt&pid=s1413-73722007000300014&lng=en&nrm=iso>. access on 10 Nov. 2009. doi: 10.1590/S1413-73722007000300014. [4] Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire (Trad. K. d. M. e. Silva, 3a ed.). São Paulo: Editora Moraes. [5] Galeano, E. (1996) As Veias Abertas da América Latina. (37ª ed.). Rio de Janeiro, Paz e Terra. [6] Konder, L. (2004). O que é Dialética?(28ªed.). São Paulo: Brasiliense. [7] Lacerda Jr, F. & Guzzo, R. S. L. (2009) Psicologia Social Para a América Latina (1º ed.). Campinas, SP: Editora Alínea. [8] Lacerda Jr, F. & Guzzo, R. S.L. (2006) MST e consciência de classe: estudo a partir da trajetória de um militante. Psicologia Política, vol 6 ( 12) p 289-335. [9] Lessa, S.(2007). Para Compreender a Ontologia de Lukács (3ª ed.). Ijuí, RS: Unijuí. [10] Lessa, S. & Tonet, I.(2008) Introdução à Filosofia de Marx (1ª ed.). São Paulo: Expressão Popular. [11] Martín-Baró (1996) O Papel do Psicólogo in Estudos de Psicologia 2(1). UFRN [12] Martins, L. M. (2004) A natureza histórico-social da personalidade. Cad. CEDES [online]. 2004, vol.24, n.62 [citado 2010-08-14], pp. 82-99. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex t&pid=s0101-32622004000100006&lng=pt&nrm=iso. ISSN 0101-3262. doi: 10.1590/S0101-32622004000100006. [13] Martins, L.M (2006) As aparências enganam: Divergências entre o Materialismo Histórico Dialético e as abordagens qualitativas de pesquisa. In: 29ª. Reunião Anual da ANPED, 2006. Cultura e Conhecimento. Disponível em www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trab alho/gt17 2042.Int.pdf. [14] Oliveira, P. C. & Carvalho, P. A intencionalidade da consciência no processo educativo segundo Paulo Freire. Paidéia (Ribeirão Preto) [online]. 2007, vol.17, n.37 [citado 2010-08-14], pp. 219-230. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex t&pid=s0103-863x2007000200006&lng=pt&nrm=iso. ISSN 0103-863X. doi: 10.1590/S0103-863X2007000200006. [15] Tonet, I. (2009) A Questão dos Fundamentos Metodológicos in Marxismo e Educação. Disponível em http://www.ivotonet.xpg.com.br/arquivos/marxi SMO_E_EDUCACAO.pdf