PROBLEMAS DE QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO



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Transcrição:

VII COLÓQUIO SOBRE DIREITO DO TRABALHO PROBLEMAS DE QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO O CASO DAS RELAÇÕES ESTABELECIDAS NO CONTEXTO DA ECONOMIA ON DEMAND ENTRE PRESTADORES INDEPENDENTES (?) DE SERVIÇOS E EMPRESAS TECNOLÓGICAS INTERMEDIÁRIAS (?) NO MERCADO Joana Vasconcelos 1. A questão 2. Traços essenciais do modelo vigente de qualificação do contrato de trabalho 3. Requalificação como contrato de trabalho das relações estabelecidas no contexto da economia on demand: prováveis argumentos e previsíveis dificuldades 4. Necessidade de um novo e adequado elenco de indícios de subordinação 1. Porque a latitude do tema que me foi atribuído - Problemas de Qualificação do Contrato de Trabalho - me confere uma estimulante margem de escolha das questões a tratar, decidi trazer-vos um novo desafio que nesta matéria se coloca a magistrados, advogados e académicos - a qualificação, laboral ou não, das relações surgidas no contexto da chamada economia on demand, um conjunto de situações cuja natureza, enquadramento jurídico e tutela associada estão longe de ser evidentes e às quais o Direito do Trabalho, entre nós, como por esse mundo fora, mais cedo do que tarde, será chamado a dar resposta. Designa-se on demand (ou colaborativa) a actividade económica levada a cabo por empresas tecnológicas que respondem às necessidades dos consumidores O texto que agora se disponibiliza para publicação online corresponde ao essencial da nossa intervenção no VII Colóquio sobre Direito do Trabalho, que decorreu no Supremo Tribunal de Justiça no dia 21-10-2015, organizado pela Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça e pela Associação Portuguesa de Direito do Trabalho (APODIT). Na revisão do mesmo a que procedemos para este efeito, limitámo-nos a introduzir-lhe as indispensáveis correcções formais e, bem assim, a completar indicações bibliográficas e jurisprudenciais. Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Escola de Lisboa. 1

através da imediata provisão de serviços contratados através de aplicações digitais ou de plataformas online por si concebidas e exploradas. Na sua ainda curta existência, a economia on demand - notoriamente representada pela UBER, criada em 2010 - tem crescido a um ritmo muito acelerado, expandindo-se, para lá dos transportes, a serviços tão variados como a tradução, as limpezas domésticas, as reparações de toda a ordem, o baby sitting, as compras (do supermercado aos medicamentos), a informática ou as artes gráficas. Tipicamente, as empresas on demand apresentam-se como meras intermediárias que num dado mercado promovem o encontro entre a oferta e a procura, i.e., entre os consumidores e os prestadores independentes de serviços, encontro esse que se dá necessariamente através da referida aplicação digital ou plataforma online, por si criada e gerida. Como contrapartida desta sua intermediação, as empresas on demand retêm uma percentagem sobre o valor do serviço prestado. O rápido crescimento da economia on demand, impulsionado em larga medida pelo seu êxito junto dos consumidores, que muito valorizam a resposta, que a mesma propicia, em tempo literalmente real, às suas necessidades e pedidos, tem-se deparado com alguns percalços e obstáculos de natureza essencialmente regulatória, que se o fizeram abrandar, não tiveram a virtualidade de o fazer parar. Mais complexo se afigura, contudo, o problema de que venho falar-vos e cujo desfecho - neste momento ainda em aberto - poderá pôr seriamente em causa ou, pelo menos, obrigar a reequacionar de forma radical todo o modelo de negócio subjacente à economia on demand. Refiro-me, evidentemente, à qualificação da relação entre o/s prestador/es de serviços e a empresa que detém e explora a aplicação que o/s põe em contacto com os consumidores. Tratar-se-á de uma mera prestação de serviço de intermediação, remunerada com uma comissão por cada negócio por tal modo obtido? Ou será, antes, uma verdadeira e própria relação laboral, envolvendo a prestação subordinada de actividade sob a autoridade e direcção do dono da plataforma, o qual dirige, controla e avalia o desempenho do prestador? 2

A questão ganhou uma particular premência nos últimos meses. A 17-6-2015, o Labor Commissioner da Califórnia decidiu que uma motorista era, na realidade, uma trabalhadora da UBER, condenando esta a reembolsá-la de várias despesas relativas ao seu automóvel (seguros e portagens, num total de 4000 dólares). Pouco depois, a 1-9-2015, um Federal Judge de São Francisco atribuiu o estatuto de class action a uma acção proposta por 3 ex-motoristas UBER, que exigem a sua qualificação como trabalhadores e o reconhecimento dos correspondentes direitos, estimando-se que tal class action possa vir a abarcar, só na Califórnia, 160.000 motoristas. Estes dois desenvolvimentos desencadearam fortes ondas de choque nos Estados Unidos da América, tendo precipitado, quer o encerramento de algumas empresas (caso da Homejoy, que operava no sector das limpezas domésticas e que fora demandada por diversas prestadoras que pretendiam ver-lhes reconhecida a natureza laboral dos seus vínculos), quer a incorporação, por outras, como seus trabalhadores em part-time, dos prestadores sobre cuja actividade assenta o respectivo negócio, no que terá implicado um aumento de custos na ordem dos 30% (caso da Instacart, que actua no sector das compras de supermercado). Na Europa aguarda-se com expectativa o desfecho do caso UBER 1 e antecipam-se desenvolvimentos, com base nos possíveis sentidos deste e tendo presentes os dados normativos e as orientações jurisprudenciais sobre a matéria. E é justamente nesta perspectiva que me proponho lançar algumas pistas de reflexão e, assim, contribuir para uma discussão que a todos nós vai, mais tarde ou mais cedo, interessar e envolver. Começo por algumas questões. Que resposta dá o nosso ordenamento a estas situações? Em que sentido apontam os indícios de subordinação que habitualmente lançam luz sobre os casos a apreciar neste contexto? Poderá a presunção de existência de contrato de trabalho, prevista no art. 12.º, n.º 1, do Código do Trabalho (CT) induzir ou, ao menos, facilitar a (re)qualificação laboral dos vínculos estabelecidos, no âmbito de actividades on demand, entre os donos das 1 Cujos desenvolvimentos podem ser seguidos em www.uberlawsuit.com. 3

aplicações e os prestadores de serviço? O que é que verdadeiramente poderá pesar na qualificação dos donos das aplicações como empregadores dos prestadores de serviços e não já como meros intermediários que através daquelas põem em contacto oferta e procura no respectivo mercado? 2. Justifica-se que comecemos por nos deter nos traços essenciais do modelo entre nós vigente. A qualificação como contrato de trabalho de um contrato formalmente configurado pelas partes como de prestação de serviço depende da alegação e prova, pelo prestador da actividade, nos termos gerais, dos termos subordinados em que esta é, na realidade, desempenhada. Ora, sendo a subordinação um conceito jurídico, como tal insusceptível de prova, tal demonstração terá de fazer-se através de factos que, evidenciando a forma como se configuram certos aspectos da relação de trabalho, indiciem a subordinação jurídica, enquanto especial modalidade em que é realizada a prestação do trabalho 2 : sob a autoridade e direcção do seu beneficiário, nas palavras do art. 1152.º do Código Civil, no âmbito de organização e sob a autoridade deste, como desde 2009 explicita o art. 11.º do CT. Há muito identificados e utilizados pela jurisprudência, analisados pela doutrina e mais recentemente acolhidos na lei, estes indícios de subordinação são, entre outros, a determinação pelo beneficiário do local onde é prestada a actividade, a fixação por este de um horário de trabalho, a remuneração paga periodicamente e calculada em função do tempo, a pertença dos instrumentos de trabalho ao beneficiário, o controlo por este da prestação de actividade em todas as suas fases (através de ordens, instruções e supervisão), a inserção na organização do beneficiário (expressa na sujeição às respectivas regras de 2 Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, 2.ª ed., Verbo-Babel, Lisboa, 2014, pág. 363. 4

organização e disciplina do trabalho), a impossibilidade de recurso a colaboradores e/ou de substituição na realização da prestação 3. É nalguns destes indícios que o art. 12.º, n.º 1, do CT baseia a presunção da existência de contrato de trabalho, a saber, os relativos ao lugar, horário de trabalho, instrumentos de trabalho, retribuição e inserção organizativa. Daí que para poder ter a seu favor a presunção de laboralidade, o prestador de actividade tenha de provar algumas das características da relação laboral apresentadas nas als. a) a e) do n.º 1 do art. 12.º. Sobre este ponto, constitui entendimento consolidado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores 4 e da doutrina 5 que algumas implica, pelo menos, duas das características legalmente enunciadas. A presunção de laboralidade faz recair sobre o beneficiário da actividade o risco da insuficiente demonstração da inexistência de um contrato de trabalho 6. Significa isto que em caso de dúvida quanto à qualificação do contrato, nomeadamente quando se mostre insuficiente ou inconclusiva (num ou noutro sentido) a prova produzida pelo prestador e pelo beneficiário, e desde que alguns (ou seja, pelo menos dois) dos factos requeridos pelo art. 12.º, n.º 1, do CT hajam sido demonstrados pelo primeiro, o juiz decidirá contra o segundo, dando como 3 Sobre esta matéria, mais detalhadamente, João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 84 segs.; Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Volume I Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 129 segs.; Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, pp. 325 segs.; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II Situações Laborais Individuais, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, pp. 43 segs.; Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, 2014 cit., pp. 349 e 362 segs.; 4 Na jurisprudência, v., entre muitos outros, os Acs. RP de 7-1-2013 (Proc. n.º 40/10, Maria José Costa Pinto), RC de 10-7-2013 (Proc. n.º 446/12, Azevedo Mendes), RP de 12-5-2014 (Proc. n.º 521/12, Maria José Costa Pinto), RP de 19-5-2014 (Proc. n.º 321/12, Maria José Costa Pinto), RC de 26-9-2014 (Proc. n.º 160/14, Ramalho Pinto), RP de 9-2-2015 (Proc. n.º 597/13, Maria José Costa Pinto), RL de 11-2-2015 (Proc. n.º 4113/10, Alda Martins), RC de 13-2-2015 (Proc. n.º 182/14, Azevedo Mendes), RP de 13-4-2015 (Proc. n.º 175/14, Paula Leal de Carvalho), RP de 11-5-2015 (Proc. n.º 299/14, Paula Leal de Carvalho), Ac. RC de 21-5-2015 (Proc. n.º 725/14, Azevedo Mendes) e STJ de 2-7-2015 (Proc. n.º 182/14, António Leones Dantas), todos acessíveis em www.dgsi.pt. 5 V., expressamente neste sentido, entre outros, João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 2014 cit., pág 89; Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2015 cit., pág. 330; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II Situações Laborais Individuais, 2014 cit., pág. 55. 6 Conforme nota Bernardo da Gama Lobo Xavier, tudo funcionará como se se tivesse invertido o ónus da prova, que se desloca do trabalhador para o empregador (Manual de Direito do Trabalho, 2014 cit., pág. 368). 5

preenchido o conceito jurídico - de subordinação - necessário para qualificar o contrato que os vincula como contrato de trabalho 7. Por aqui se queda, contudo, a função da presunção, a qual, em nosso entender, se facilita em certos termos a tarefa ao prestador de actividade, não implica uma simplificação do método indiciário tradicional, nem dispensa, como ponto de partida, o juiz de proceder a uma valoração global de todas as características pertinentes para a formulação de um juízo conclusivo sobre a subordinação 8. Bem pelo contrário, porque a presunção de laboralidade apenas dita o sentido da decisão do juiz em caso de dúvida acerca da qualificação do contrato, o prestador de actividade, longe de ficar dispensado ou isento de ulterior prova, terá de demonstrar todos os factos que, em seu entender evidenciem os termos subordinados em que tal actividade é realizada, estejam estes previstos, ou não, nas als. a) a e) do n.º 1 do art. 12.º do CT 9. Já quanto ao beneficiário, a presunção compele-o a demonstrar outros factos que provem em contrário, de modo a evitar a incerteza ou a dúvida que levarão a uma decisão nela baseada, de qualificação do contrato como de trabalho: factos que infirmem ou neutralizem o significado, enquanto indícios de subordinação, dos provados pelo prestador, bem como factos que evidenciem os termos autónomos do desempenho da actividade em causa 10. 3. Passando a antecipar os termos em que se desenrolará e as dificuldades com que se defrontará a (re)qualificação, segundo este modelo, dos vínculos que entre prestadores de serviços e detentores das aplicações e plataformas online se 7 Na palavras de Bernardo da Gama Lobo Xavier, cujo ensinamento seguimos quanto a este ponto, o que se passa é que, em face da fluidez das situações, a lei dá pontos de apoio ao juiz que o ajudam a qualificar a realidade existente como correspondendo ou não a um contrato de trabalho, em termos semelhantes a muitos outros casos em que as várias normas presumem ou dão como preenchido um conceito jurídico ou uma situação jurídica ( ) necessários para o desencadeamento de consequências jurídicas (Manual de Direito do Trabalho, 2014 cit., pp. 368-369). 8 É o que afirma João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 2014 cit., pág. 90. 9 Neste sentido, mais desenvolvidamente, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, 2014 cit., pp. 375-376. 10 V. sobre este ponto, com indicação de exemplos, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, 2014 cit., pp. 375-376. 6

estabelecem no contexto da economia on demand, uma primeira advertência se impõe. Sendo o modelo de negócio das empresas on demand, já descrito 11, tendencialmente uniforme, o mesmo sucede com as relações que no seu contexto se estabelecem entre prestadores de serviços e empresas intermediárias - daí que seja possível identificar e atentar em esquemas típicos. Ainda assim, e em pontos mais específicos, regista-se alguma variabilidade nos termos ajustados, a qual exige uma cuidadosa análise caso a caso. Dito isto, parece possível prever que os prestadores de serviços on demand irão, designadamente, basear as suas pretensões na alegação de que: - a sua remuneração é periodicamente paga (à semana) pelo dono da aplicação, que cobra directamente aos utilizadores do serviço o preço constante da tabela por si estabelecida e divulgada ao mercado (não tendo os prestadores qualquer papel na fixação de tais valores); - o dono da aplicação controla e avalia o desempenho dos prestadores (com base, desde logo, nas avaliações dos utilizadores da aplicação); - os prestadores de serviços estão sujeitos a um conjunto de regras impostas pelo dono da aplicação, que por tal modo organiza e dirige a respectiva actividade; tais regras versam aspectos tão diversos como os procedimentos a observar no desempenho e nos contactos com os clientes, a imposição de uniforme ou dress code ou a indicação de materiais ou equipamentos vedados; - o dono da aplicação tem prerrogativas disciplinares relativamente aos prestadores, aos quais pode, de novo segundo um conjunto de regras por si estabelecidas, recusar temporaria ou definitivamente, o acesso à mesma, em caso de queixas de clientes ou avaliações insatisfatórias, e após um apuramento e apreciação sumário dos factos por aquele. Por seu turno, os donos das aplicações ou plataformas online irão seguramente alegar, entre outros, que: 11 Cfr. supra o n.º 1. 7

- os prestadores não estão obrigados a assegurar um número determinado de horas, por dia, semana ou mês, nem estão sujeitos qualquer horário de trabalho pelo que trabalham se e quando querem; - os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem aos prestadores de serviços; - estes não estão exclusivamente vinculados à plataforma, podendo aceder ao mercado e prestar a respectiva actividade através de outras, concorrentes. Diante de tudo isto, afigura-se-nos muito duvidoso que os prestadores de serviços que desempenham a respectiva actividade ao abrigo do esquema típico da economia on demand venham a conseguir provar a existência, na sua relação com as plataformas online, de - pelo menos - duas das características enumeradas nas als. a) a e) do n.º 1 do art. 12.º do CT e que suportam a presunção legal de existência de contrato de trabalho 12. Ou seja, se e quando a questão da (re)qualificação do respectivo vínculo for submetida aos tribunais portugueses, não é expectável que os prestadores de serviços on demand venham a conseguir beneficiar da presunção legal de existência de contrato de trabalho. Em todo o caso, não cremos que esta impossibilidade de preencher os pressupostos da presunção - e de beneficiar da mesma - seja, só por si, reflexo da natureza não subordinada da relação entre prestador de serviços e dono da aplicação ou que, desde logo, suporte qualquer pré-juizo em tal sentido. Bem pelo contrário, tal impossibilidade unicamente evidencia o que alguma da nossa doutrina vem advertindo: que os índices de subordinação que sustentam a presunção legal se referem a um modelo clássico, tradicional - e pré-(r)evolução tecnológica -, de organização e prestação do trabalho 13, pelo que se mostram 12 Cfr. supra o n.º 2. 13 Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Volume I Relações Individuais de Trabalho, 2007 cit., pp. 131 segs.; Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2015 cit., pág. 325; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II Situações Laborais Individuais, 2014 cit., pág. 49. 8

desactualizados e desajustados para dar resposta adequada a novas questões, como as que são colocadas pela chamada economia on demand. Em síntese, dir-se-á que quando a questão se colocar, os prestadores de serviços on demand terão de invocar e provar todos os factos que, em seu entender, evidenciem que a sua actividade é desempenhada de forma subordinada, i.e., sob a autoridade e direcção dos donos das aplicações, cujo papel não se cinge, pois, à mera intermediação de cunho puramente tecnológico. E estes terão de questionar e de reverter tais alegações, demonstrando, através de indícios convergentes, a ausência de subordinação e a forma autónoma e independente como é organizada e levada a cabo a actividade daqueles. Mas, no limite, caberá ao juiz decidir, com base em toda a prova produzida - sendo certo que a não aplicabilidade da presunção irá, em caso de dúvida (e apenas neste), redundar numa decisão contrária às pretensões dos prestadores de serviços on demand. 4. Chegados a este ponto, é-nos possível concluir que ambas as partes da relação a (re)apreciar com vista à sua (re)qualificação terão necessariamente de trazer ao processo, com vista fazer prevalecer a sua posição, factos retirados da realidade daquela que evidenciem a subordinação ou a falta dela - factos esses que, diante dos singulares termos em que decorre a prestação de actividade, serão outros que não aqueles de que comumente se lança mão nestas lides. Nesse sentido, assumirão especial relevo, no que à demonstração da subordinação se refere - em lugar v.g., do local ou do horário de trabalho 14 - todos os indícios que, em linha com a noção de contrato de trabalho constante do art. 11.º do CT 15, apontem para a existência de um negócio que é organizado e controlado em todas as suas fases pelo dono da aplicação, negócio esse que se não cinge à mera disponibilização de uma plataforma tecnológica neutra para pôr em 14 V. sobre este ponto, sublinhando a crescente irrelevância destes indícios, Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Volume I Relações Individuais de Trabalho, 2007 cit., pp. 104 e 131-132. 15 Que define o trabalho objecto do contrato de trabalho como o prestado no âmbito de organização e sob a autoridade do empregador. 9

contacto a oferta e a procura num dado mercado, e no qual se integram os prestadores de serviço através do acesso que lhes é concedido à aplicação 16. Importa, pois, estabelecer os contornos dessa integração, já que a mesma poderá bem - na medida em que os factos provados indiciem a sujeição da prestação da actividade a regras de organização do trabalho e ao controlo e supervisão do desempenho - ser sinónimo de ausência de autodeterminação dos prestadores na organização e desempenho da mesma. E, bem assim, determinar os exactos termos do papel assumido pelo dono da aplicação relativamente ao serviço que através desta é prestado - em particular se, ao contrário do que proclama, não se esgota numa mera intermediação, antes se concretiza na conformação, direcção e controlo do desempenho dos prestadores, com vista a submetê-lo a padrões de serviço e de qualidade que, inapelavelmente, apontam ser outro o bem oferecido à clientela no mercado, sob marca e imagem próprias: a prestação de serviços no sector em causa (transporte, limpeza, etc.). Não se trata, pois, de questionar ou de redefinir a noção de subordinação, de modo a conter nela estes novos casos, mas de repensar e reequacionar a/s forma/s por que a mesma se pode, em certos casos, exprimir - no que poderá implicar uma reformulação do elenco tradicional de indícios de subordinação 17, tendo presente que neste, como noutros domínios, não se podem resolver problemas de hoje com soluções de ontem. 16 A relevância da inserção na organização empresarial enquanto indício de subordinação é sublinhada por Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2015 cit., pág. 327 e por Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II Situações Laborais Individuais, 2014 cit., pp. 34 e 42. 17 Conforme nota Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Volume I Relações Individuais de Trabalho, 2007 cit., pág. 131, não é tanto o método indiciário que se acha em crise, como antes alguns indícios tradicionais. No mesmo sentido, advertindo que a subordinação tem hoje novas manifestações, mas é igualmente intensa, pelos que os seus indícios devem ser apreciados e valorizados em consonância com esta evolução, Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II Situações Laborais Individuais, 2014 cit., pág. 49. 10