Implicações psicológicas da catástrofe natural na Madeira Leonor Sardinha Psicóloga O dia 20 de Fevereiro de 2010 começou cedo para muitos madeirenses que caminhavam em direcção às suas rotinas habituais, aos seus trabalhos, às suas lojas, aos seus afazeres profissionais ou até a momentos de lazer. Depois de uma noite chuvosa, acredito que muitos se tenham feito acompanhar de um bom casaco (graças às temperaturas amenas que a Madeira sempre nos habituou) e de uns sapatos à prova de água. Contudo, ninguém terá saído preparado para aquilo que vieram a encontrar. Não foi o fim do mundo, como algumas pessoas referem ter pensado no momento; foi sim o princípio de toda uma situação traumática, quer para quem vivenciou, quer para quem simplesmente assistiu através dos meios de comunicação social. E se às nove da manhã do dia 20 de Fevereiro de 2010 foi o início, falta-nos reflectir sobre o depois: que implicações psicológicas advêm da catástrofe natural na Madeira? Em primeiro lugar, teremos de delimitar o sentido desta pergunta: implicações psicológicas da catástrofe natural para quem? E recorrendo às sábias palavras de quem me orientou no início desta minha profissão (e a quem vou recorrer muitas vezes ao longo desta crónica), deveremos começar por considerar que as vítimas que podem advir destas situações não correspondem apenas aos indivíduos que estiveram directamente envolvidos no acontecimento. Algumas vezes, são constituídas pelos simples observadores da ocorrência ( ) (cit. A. Vaz-Serra). Num total de cerca de 250 mil madeirenses temos, por um lado, aqueles que estavam nesse dia em zonas que não foram afectadas pela tempestade e que apenas tomaram conhecimento da situação através dos meios de comunicação social. Estes terão sido testemunhas à distância da catástrofe (apesar de a terem sentido muito perto). Temos também todos os outros observadores, num qualquer ponto do país ou do mundo, que através da comunicação social tomaram conhecimento deste acontecimento. As implicações psicológicas para este grupo de pessoas não deverão ser ignoradas, tendo em conta que o impacto Todos os direitos reservados Reprodução proibida sem permissão do editor 1
que tem sobre as pessoas que não estiveram directamente envolvidas na circunstância depende da gravidade e do significado da ocorrência bem como da própria sensibilidade pessoal ( ). Conforme a sua intensidade e proporções um acontecimento traumático pode vir a ter um impacto local, regional, nacional ou mundial (cit. A. Vaz-Serra). 1 Por outro lado, temos aqueles que estavam no local errado à hora errada: aqueles que acordaram com a casa a ser invadida por uma torrente não identificada (que não fazia parte da mobília nem da decoração); aqueles que, ao subirem de carro uma das ruas da cidade, encontraram, paradoxalmente, o mar a descer a serra; aqueles que, nas suas lojas, se depararam com um cliente mal-educado, que não bateu à porta para entrar, não disse bom-dia, e que deixou um rasto de destruição, negro e aterrador. E temos ainda um terceiro grupo de pessoas que podem ter sido afectadas psicologicamente, e de quem nem sempre se fala: os bombeiros, os polícias, os políticos, os voluntários, os técnicos, todos aqueles que saíram à rua e arregaçaram as mangas para ajudar a resolver a situação, sendo que ( ) os que prestam socorro, são também susceptíveis de carecer de auxílio. Por um lado, podem estar submetidos a grande sobrecarga de trabalho que os leva quase à exaustão. Por outro lado, podem ainda estar expostos a acontecimentos críticos que os impressionem ( ) (cit. A. Vaz-Serra). De salientar que este grupo de pessoas é um grupo particular no sentido em que, estando com grande acumulação de tarefas e a trabalhar sob stress, poderão não ter tempo de integrar o acontecimento traumático e reagir a ele, o que faz com que as manifestações psicológicas surjam apenas mais tarde. Mas ao apontar os grupos de sujeitos potencialmente afectados, a nível psicológico, pela catástrofe natural da Madeira, não estou obviamente a esquecer que ( ) há seres humanos que ultrapassam acontecimentos traumáticos sem apresentarem posteriormente quaisquer transtornos físicos ou psicopatológicos de particular gravidade (cit. A. Vaz-Serra). quais? Levanta-se agora uma nova questão: implicações psicológicas da catástrofe natural na Madeira 1 Isto leva-nos a querer deixar uma pequena nota acerca do papel que os meios de comunicação social têm e tiveram, e a verificar que há um limite muito ténue entre o retratar a realidade objectiva e o dramatizar e catastrofizar a situação, massacrando e dissecando até ao mais ínfimo pormenor da dignidade humana. A notícia deve ser isenta e objectiva, sem cultivar os aspectos dramáticos ; A marca que um acontecimento pode deixar no observador deve levar a ter em conta que, se for muito publicitado, particularmente de forma cruenta e pormenorizada, o número de pessoas afectadas pode ir crescendo: a nível regional, nacional e internacional (cit. A. Vaz-Serra). Todos os direitos reservados Reprodução proibida sem permissão do editor 2
Aqui a resposta conduzir-me-à para termos mais técnicos. De facto, as ocorrências traumáticas, pelo inesperado e pela violência, deixam marca no ser humano, mesmo que a vítima directa sobreviva ao que lhe aconteceu. As consequências são, algumas vezes, de intensidade muito acentuada, em que fica comprometida a saúde física e psíquica do indivíduo; outras vezes têm repercussões menores, mas que não deixam de causar impressão (cit. A. Vaz-Serra). Em termos clínicos, poderei referir apenas alguns exemplos de marcas que poderão ter sido deixadas na Madeira após a catásfrofe. A Perturbação Aguda de Stress é um distúrbio que se desenvolve imediatamente ou poucos minutos após o aparecimento de uma ocorrência traumática. Regra geral, atenua-se e desaparece no período de horas ou de poucos dias (mínimo dois dias e máximo 4 semanas), devendo ocorrer dentro das primeiras quatro semanas após o acontecimento traumático. Relativamente à denominada Perturbação de Stress Pós-Traumático, esta surge como uma resposta adiada a um acontecimento traumático de particular gravidade, que é admissível ser perturbador para qualquer pessoa. A DSM-IV-TR salienta que o diagnóstico só deve ser feito quando os sintomas (e.g. reexperiência do acontecimento traumático; evitamento persistente de estímulos associados com o trauma e hiperactivação fisiológica persistente, que não se verificava antes do acontecimento desencadeador ter ocorrido) têm a duração mínima de um mês. Saliento ainda, tendo em conta as vítimas mortais desta catástrofe, aqueles que entrarão em Processo de Luto, processo este que se pode tornar complicado por diversas razões: casos de múltiplas mortes na mesma família (o que implica múltiplos lutos a resolver); casos de mortes em etapas inesperadas do ciclo de vida (nomeadamente no que se refere às mortes de crianças); casos de corpos desaparecidos; e ainda o facto de a maior parte dos casos se caracterizarem por terem sido mortes traumáticas. Sociologicamente, parece-me que, como madeirenses, fomos todos afectados. Não raras vezes a Madeira era referida como o cantinho do céu, quer em termos climatéricos quer ao nível de segurança. Alguns de nós procuraram (e ainda procuram quase obsessivamente, tanto nos meios de comunicação social como presencialmente) as imagens dos nossos locais, alteradas, como forma de as inserirmos no nosso consciente e de acreditarmos que tudo foi real e que estava a acontecer-nos a nós (e não aos outros). Outros fugiram dessas imagens, entrando num processo de evitamento cognitivo e emocional (pouco eficaz) daquilo que causa sofrimento. Fomos feridos no orgulho característico de quem é madeirense. A catástrofe mudou a nossa visão do mundo, mas mudou sobretudo a nossa visão da Ilha impenetrável. Estamos em estado de alerta. Os acontecimentos traumáticos, mais do que qualquer outra circunstância, mostram ao in- Todos os direitos reservados Reprodução proibida sem permissão do editor 3
divíduo a sua vulnerabilidade e alteram-lhe a concepção que tem do mundo como um lugar seguro (cit. A. Vaz-Serra). Neste continuum de marcas deixadas pela catástrofe pode-se certamente encontrar o outro ponto extremo, sendo que ( ) há ainda pessoas para quem uma situação traumática estimula o amadurecimento psicológico. A variedade das reacções é, por conseguinte, muito vasta, determinada por factores de natureza biológica, psicológica e social (cit. A. Vaz-Serra). Não posso deixar de referir, a este respeito, aqueles em que esta catástrofe despoletou o sentido humanitário, o altruísmo, até o perdão. Surgiu em muitos a vontade de fazer parte da reconstrução, de estar com o outro (nem que fosse através de um sorriso e um olhar), procurando dizer (mas sem encontrar as palavras certas) algo de reconfortante. Após um indivíduo ter confrontado um acontecimento traumático podem algumas vezes ocorrer algumas mudanças positivas. ( ) O crescimento pós-traumático tem sido observado em cinco domínios diferentes, que podem não ocorrer necessariamente de forma paralela. São relativos ao: relacionamento interpessoal; um maior apreço pela vida; a abertura a novas possibilidades de viver; desenvolvimento espiritual e um maior sentido de força pessoal (cit. A. Vaz-Serra). E são exemplo as atitudes tomadas na esfera política, que surpreenderam (ou não) aqueles que costumam observá-la. Porque as implicações psicológicas da catástrofe natural na Madeira não foram todas negativas Porque é possível o crescimento pós-traumático. De seguida, impõe-se outra pergunta: implicações psicológicas da catástrofe natural na Madeira que intervenção? Em relação a esta questão, começo por louvar os esforços evidentes que foram feitos a este nível, comprovando que, na sociedade em que vivemos, o papel da Psiquiatria da Psicologia é cada vez mais valorizado e colocado ao nível de todas as outras necessidades do ser humano. Foram mobilizadas equipas multidisciplinares para o terreno, desde médicos psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais aos voluntários; foram colocados em acção os técnicos do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira, do Centro de Segurança Social da Madeira, das Instituições de Solidariedade Social; e até houve tempo para realizar formações na área da catástrofe, no sentido de melhor apetrechar todos Todos os direitos reservados Reprodução proibida sem permissão do editor 4
estes profissionais e voluntários, com as ferramentas necessárias para fornecer uma ajuda eficaz e eficiente aos que dela precisavam. Assim, apesar de um cenário caótico, foi possível pensar a frio e organizar uma intervenção que se espera eficaz. Já A. Vaz-Serra nos tinha dito o que fazer imediatamente a seguir a um acontecimento traumático: a) Dar segurança às vítimas; b) Cuidar das lesões físicas; c) Afastar o ser humano das situações que constituam ameaça para a sua vida; d) Estabelecer uma relação terapêutica adequada com as vítimas de forma a dar-lhes possibilidade de explicarem o que sentem; e) Tentar identificar os que estão carenciados de auxílio psicológico e psiquiátrico; f) Cuidar dos familiares das vítimas, que igualmente sofreram um impacto emocional com o acontecimento; g) Estar atentos aos que prestam socorro, pois podem enfrentar situações que os debilitem num sentido físico e psicológico. E os madeirenses cumpriram, na medida do possível. A este respeito, não posso deixar de relatar a minha experiência como voluntária junto de um grupo de desalojados que esperavam uma solução para cada um dos seus casos. Um grupo de pessoas com personalidades, percursos, idades e classes sociais diferentes umas das outras, mas que se encontravam unidas na vivência de uma mesma experiência traumática. E se atrás referi o papel importante da Psicologia nestas situações, que não se entenda que todas estas pessoas precisam ou querem estar com um psicólogo nestes momentos. Senti que, por vezes, teria de ser apenas cidadã, e esquecer a minha formação em Psicologia, tão simplesmente porque nestas alturas ( ) os seres humanos podem não estar capazes ou não desejar sequer falar sobre a experiência porque passaram (cit. A. Vaz-Serra). De facto, as intervenções dirigidas demasiado cedo para os aspectos psicológicos podem ser sentidas como inoportunas e consideradas inúteis (cit. A. Vaz-Serra). Contudo, algumas perguntas feitas com delicadeza são importantes para identificar os que precisam de cuidados imediatos de natureza psiquiátrica ( ). (cit. A. Vaz-Serra). Todos os direitos reservados Reprodução proibida sem permissão do editor 5
Por fim, em relação à intervenção psicológica contextualizada na catástrofe natural da Madeira, e como estamos ainda em fase de rescaldo perante o que vivenciámos, surge a necessidade de pensarmos a médio/longo prazo. De facto, com o passar do tempo, a maior parte das pessoas expostas ao trauma fica bem. Com outras já não acontece o mesmo (cit. A. Vaz-Serra). Ou seja, a intervenção psicológica associada a esta catástrofe natural estará longe de estar concluída: Os sobreviventes podem ser confrontados com perdas maciças e, a curto prazo, as suas primeiras necessidades correspondem a conseguir um lugar seguro e encontrarem resposta para as suas necessidades físicas. O impacto psicológico completo do acontecimento pode ser apenas sentido mais tarde, quando o primeiro embate já passou. (cit. A. Vaz-Serra). E há ainda situações perante as quais serão exigidas ajustes e adaptações: os realojamentos, por exemplo, exigirão a adaptação a um novo espaço, e quem sabe até a uma nova localidade, uma nova vizinhança; os processos de luto Será necessário estar atento, para que, quando o primeiro embate se desvanecer e as manifestações psicológicas começarem a ebulir, estejamos ainda presentes. Dedico esta crónica a todos os que ajudaram (de forma directa ou indirecta) a minimizar o impacto deste acontecimento traumático sobre os madeirenses, e mesmo àqueles que simplesmente se preocuparam e sentiram empatia pelos que sofreram Àqueles com quem partilhei algumas (poucas) noites no pavilhão gimnodesportivo da Escola de Campanário à espera de uma solução um bem-haja e um sorriso para o vosso futuro. Todos os direitos reservados Reprodução proibida sem permissão do editor 6