A ilusão transcendental da Crítica da razão pura e os princípios P1 e P2: uma contraposição de interpretações

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Transcrição:

A ilusão transcendental da Crítica da razão pura e os princípios P1 e P2: uma contraposição de interpretações Marcio Tadeu Girotti * RESUMO Nosso objetivo consiste em apresentar a interpretação de Michelle Grier (2001) e Heny Allison (2004) acerca da ilusão transcendental da Crítica da razão pura. Para esses autores é possível compreender a doutrina da ilusão transcendental por meio dos Princípios P1 e P2, que correspondem, respectivamente, às palavras de Kant: encontrar para o conhecimento condicionado do entendimento o incondicionado, pelo qual é completada a unidade de tal conhecimento, e, se o condicionado é dado, é também dada a série total das condições subordinadas entre si, a qual é, por conseguinte, incondicionada (KrV, B 364). Com isso, Grier e Allison procuram elucidar que P1 somente é possível se pressupomos P2, ou, P2 é o princípio de aplicação de P1: para procurar a unidade do conhecimento é preciso pressupor o incondicionado como dado. Para Kant, a razão exige uma unidade de todo o conhecimento, mas tal exigência é subjetiva, a razão procura a unidade e pressupõe que o incondicionado é dado junto com a série. Nesse ponto, se a exigência subjetiva da razão for tomada como objetiva, haverá uma espécie de ilusão, que é tomar o dado subjetivo como se fosse objetivo, ou, tomar o incondicionado como dado e possível de ser abarcado. Nossa proposta é refletir sobre os Princípios P1 e P2 procurando saber: 1) essa interpretação é suficiente para apresentar a doutrina da ilusão transcendental? 2) se P1 é uma exigência da razão e P2 o seu pressuposto, não seria P1 = P2 e P2 = P1? Ou, o pressuposto P2 não teria que vir antes da exigência de P1, sendo P2 o princípio P1 e P1 o princípio P2 (uma inversão de princípios)? Assim, pretendemos apresentar o problema da ilusão transcendental juntamente com as interpretações de Grier e Allison, questionando os princípios P1 e P2, bem como colocando em evidência a característica da ilusão transcendental como natural e inevitável. PALAVRAS-CHAVE: Ilusão transcendental. Princípios P1 e P2. Sonhos de um visionário. Introdução Nossa investigação tem como proposta questionar e analisar algumas conclusões acerca da questão da ilusão na Dialética Transcendental da Crítica da razão pura levando em consideração a interpretação de Michele Grier e Henry Allison, em busca de uma possível * Doutorando UFSCar. E-mail: girotti_mtg@hotmail.com. 350

solução de compreensão do problema em considerar a ilusão transcendental como sendo natural e inevitável. Na Crítica, Kant anuncia que a razão exige uma unidade sistemática das regras do entendimento com vistas a um princípio, cujo qual é incondicionado, em outras palavras, a razão procurar dar unidade ao condicionado levando em consideração a série das condições do dado condicionado, sendo tal série incondicionada. Aqui, aparece o problema de compreender como é possível tal incondicionado e como a razão busca a unidade da série incondicionada. Para isso, utilizamos a interpretação de Grier (também de Allison) acerca da pressuposição da existência de dois princípios que regulam, como interpretação, esta busca da razão pela unidade do sistema e pelo incondicionado. Para tais autores existem dois princípios, P1 e P2, que são concomitantes e indispensáveis para a exigência subjetiva da razão pela unidade das regras do entendimento. Com essa interpretação, questionamos se P1 e P2 possuem mesmo validade como possível resolução da questão de saber porquê a ilusão transcendental, segundo Kant, é natural e inevitável, e se podemos aceitar Grier e Allison, uma vez que em seus argumentos existe uma certa aparência de confusão entre tais princípios: em certos momentos Grier parece dizer P1 quando deveria dizer P2. A ilusão transcendental e os princípios P1 e P2 Na dialética transcendental da CRP, Kant expõe a pretensão da razão em alcançar a unidade sistemática do conhecimento, promovendo um progresso às condições mais altas de todo conhecimento por meio de uma máxima lógica da razão. Tal máxima procura dar unidade aos conceitos do entendimento em vista de um incondicionado, mas sem objeto, ou seja, a busca pela unidade é uma exigência subjetiva da razão. No entanto, pela exigência da razão em ascender de condições a condições até o incondicionado, a razão pressupõe, pelo realismo transcendental, que o incondicionado é dado, e para ascender até ele é preciso afirmar a existência de uma ilusão transcendental natural e inevitável, pois, é preciso constatar que a 351

razão exige uma unidade sistemática e parte da pressuposição de um dado condicionado que carrega consigo uma série de condições, que é incondicionada. A ilusão transcendental, nesse sentido, é tomar aquela exigência subjetiva da razão na busca da unidade sistemática por algo objetivo, que pode me dar um objeto, já que se pressupõe que o incondicionado é dado. Agora, pelo idealismo transcendental, a ilusão é natural e inevitável, mas pode não enganar, se considerarmos que a Unidade pressuposta pela razão é algo subjetivo que pressupõe a existência de uma Ideia, como unidade, e como um Focus imaginarius, sem dedução transcendental objetiva, ou seja, sem a determinação de um objeto dado na intuição sensível. A razão, portanto, empreende a busca por um incondicionado que garante a unidade do conhecimento em vista da unidade das regras do entendimento, uma unidade sistemática e não uma unidade empírica, tal como empreendida pelo entendimento na síntese do múltiplo do fenômeno dado na intuição sensível. A unidade da razão é transcendental. Para tanto, Kant afirma que é preciso, ao lado das condições, empreender uma unidade de todo conhecimento, mas também é preciso pressupor uma série das condições incondicionada. Aqui, há o Uso Lógico da razão: unidade da razão é a unidade do conhecimento. [...] procurar até onde for possível (mediante um pro-silogismo), a condição da condição, vê-se bem que o princípio peculiar da razão em geral (no uso lógico) é: encontrar para o conhecimento condicionado do entendimento o incondicionado, pelo qual é completada a unidade de tal conhecimento. (KrV, B 364). Vemos que o uso lógico da razão é sistêmico, uma vez que procura organizar os conhecimentos do entendimento em vista de uma unidade, que é incondicionada e completa a unidade do conhecimento. Mas Kant afirma também que para empreender tal unidade é preciso pressupor que: [...] se o condicionado é dado, é também dada (isto é, é contida no objeto e na sua conexão) a série total das condições subordinadas entre si, a qual é, por conseguinte, incondicionada. (KrV, B 364). 352

Com isso, têm-se duas pressuposições para a unidade do conhecimento: 1) procurar para o condicionado dado o incondicionado; 2) se há um condicionado dado há também uma série das condições que também é dada, e esta é incondicionada. Parece que as duas pressuposições estão ligadas uma a outra, para que a ascensão ao incondicionado seja possível. Nessa interpretação, há dois interpretes que entram na discussão acerca da ilusão transcendental com o intuito de, em certo sentido, resolver a questão desta ilusão afirmando que há dois princípios que Kant traz para constatar a exigência da razão e considerar que há uma ilusão ao pretender atingir tal incondicionado. Aqui, seguimos a interpretação de Grier e Allison para pensar se eles realmente proporcionam uma interpretação coerente para o problema da ilusão ou se simplesmente, eles colocam mais um problema nesta questão. Grier e Allison afirmam que ao procurar um incondicionado para todo condicionado, há um princípio P1: encontrar para o conhecimento do entendimento o incondicionado; e um princípio P2: dado o condicionado é dado também o incondicionado. Disso resulta que para satisfazer P1 é preciso pressupor P2, pois somente posso procurar um incondicionado se me for dada a série das condições para o dado condicionado. Porém, até que ponto Grier e Allison estão interpretando Kant? Será que eles não estão postulando que P2 deve ser anterior a P1 para poder encontrar o incondicionado? E se P2 for anterior, ele não teria que ser P1? Ou seja, tenho a série incondicionada dada e sigo à procura do incondicionado que fecha a série total do conhecimento e me dá a unidade? O princípio P1 é o princípio lógico da razão (subjetivo), enquanto que P2 é um princípio transcendental (objetivo), já que há um incondicionado como completude e uma unidade sistemática a ser procurara (P2), sendo isso uma requisição da razão, o princípio supremo da razão pura. No entanto, isso será ilusório à medida em que pressupõe algo sobre coisas em si mesmas, que estão além da capacidade de conhecimento do sujeito cognitivo. Isso porque, o incondicionado tomado como algo dado implica em uma síntese objetiva da razão dentro de uma exigência subjetiva da própria razão. Pois, a razão exige uma organização lógica do entendimento, mas pressupõe que o incondicionado deve ser dado para que exista um norte para tal unidade, conferindo uma espécie de Focus imaginarius (uma Ideia), que, para tanto, 353

confere uma confusão em compreender o princípio subjetivo da razão como objetivo, pressupondo a existência de coisas em si mesmas, o incondicionado, como algo dado e possível de ser conhecido. Nesse sentido, P1 expressa a procura da razão para atingir a unidade mais alta possível para o conhecimento, uma máxima lógica, uma requisição puramente formal, um preceito lógico da razão (KrV, B 363). Mas como uma máxima lógica, ela não prescreve nenhuma lei para os objetos e não contém nenhum fundamento geral da possibilidade do conhecimento ou determinação dos objetos. Assim, essa máxima lógica da razão é uma lei subjetiva para dirigir as posses do entendimento que necessita de validade objetiva e a unidade de todo o conhecimento (sistematicidade) é uma necessidade subjetiva ou lógica (KrV, B 354). Com isso, P1 nos leva a procurar a unidade em nosso pensamento e, nesse sentido, P1 expressa uma necessidade subjetiva, é um fato da razão e não do objeto, não se estende aos objetos, portanto, é uma máxima lógica que não determina objetos. Essencialmente, por essas mesmas razões, Kant parece às vezes argumentar que o princípio da unidade sistemática é ilusório. Embora o princípio da razão expresse o que diz respeito para alcançar a mais alta unidade possível do pensamento, é apenas uma máxima lógica e, como tal, não pode ser dita para determinar objetos. Assim, P1 não fornece por si só os fundamentos para nenhum juízo a priori sobre objetos, visto que ele abstrai de todo conteúdo do conhecimento; ele simplesmente prescreve a unidade de pensamento a ser procurada. Por causa disso, qualquer uso de P1 como um princípio objetivamente válido, qualquer tentativa de traçar verdades objetivas ou materias a partir dele, é ilusório. (GRIER, 2001, p. 121, grifo do autor). P1 não é um princípio de unidade ilusório, pois é algo subjetivo (procurar a unidade de pensamento) e também não é necessidade objetiva, pois, se refere à unidade das regras do entendimento e não se refere à unidade dos objetos (tal qual feita pelo entendimento). Portanto, P1 é um princípio transcendental que é objetivo à medida que é uma exigência da razão para a unidade de todo o conhecimento, mas possui a caracterização de ser uma máxima lógica-subjetiva com validade objetiva. Porém não é um princípio objetivo, pois, quando tomado como princípio objetivo, torna-se ilusão. 354

Segundo Grier (2001, p. 121-122), para que P1 possua força epistêmica (tenha validade objetiva) é preciso assumir um outro princípio, P2 (que é sintético): Se o condicionado é dado, é também dada (isto é, é contida no objeto e na sua conexão) a série total das condições subordinadas entre si, a qual é, por conseguinte, incondicionada (KrV, B 364). Grier mostra que há um movimento de P1 para P2, que é o princípio supremo da razão pura (KrV, B 366), que mostra um princípio subjetivo que passa a um princípio transcendental afirmando uma necessidade objetiva: nos movemos de uma requisição subjetiva (lógica) para a unidade completa do pensamento para a suposição de um incondicionado que sustenta objetos em si mesmos, já que P2 é um princípio transcendental à medida em que não é referido a condições que se aplicam aos objetos da experiência. Para Grier,P1 é tomado como máxima lógica identificada como necessidade objetiva na determinação das coisas em si mesmas: É mais coerente com sua caracterização inicial da ilusão transcendental como a mistura da máxima lógica (P1) com uma necessidade objetiva na determinação das coisas em si mesmas. Na medida em que o princípio é utilizado sem levar em conta (indepedentemente de) as condições sob as quais os objetos são dados na experiência, ele é erroneamente pensado para ser aplicado a objetos considerados independentemente destas condições (i.e., para coisas em si mesmas). (GRIER, 2001, p. 122-123, grifo do autor). Segundo a citação, P1 e P2 expressam a mesma exigência da razão, mas de modos diferentes, pois P2 é P1 quando ele é concebido pela razão na abstração de condições do entendimento, considerando que P2 = P1 quando sustenta a unidade sistemática, sendo algo prescritivo, um princípio transcendental. Isso permite Kant manter não só a exigência, princípio, ou máxima da unidade sistemática, vista na abstração das condições restritivas do entendimento, que é um princípio transcendental da razão pura, mas também sua aplicação (necessária) ao múltiplo, que exige sua restrição às condições em questão, que o torna meramente prescritivo. (GRIER, 2001, p. 124, grifo do autor). 355

O princípio P2 funciona como algo regulativo pressupondo que o incondicionado é dado junto à série de condicionados dados, mas isso à luz de um ideal referente à investigação realizada sobre fenômenos. Assim, tomar P2 como algo que constitui ou se refere ao conhecimento dos objetos é ser levado ao status da metafísica tradicional, bem como considerar aparências como coisas em si mesmas. Com isso, P2 é uma pressuposição transcendental que pode ser referido como condição de aplicação de P1, pois P2 atua com referência ao múltiplo dado pelas condições de espaço e tempo (sensíveis) tendo uma função regulativa junto ao entendimento. Se P1 exige unidade e para ter unidade necessita de algo que lhe forneça dados, colocado P1 é preciso assumir P2. Sabemos que a razão exige uma unidade sistemática, e sabemos que a razão não possui princípios constitutivos, mas sim regulativos, uma vez que procura dar ordem às regras do entendimento, e não constitui objetos de conhecimento. Nesse ponto, como podemos entender a questão da ilusão transcendental? Por que ela é natural e inevitável? Haveria em Kant dois princípios, P1 e P2, recíprocos e como condição de aplicação? Considerações finais Apresentamos a solução de Grier e Allison para compreender a ilusão transcendental dentro da formulação da confusão entre princípio subjetivo e objetivo da razão que, segundo estes intérpretes, podem tais princípios serem compreendidos com os postulados, ou princípios, P1 e P2. Aqui, cabe a questão: até que ponto Grier e Allison acertam ao pressupor tais princípios? Ainda, nos parece que há uma confusão ao empregar P1 e P2 na compreensão da busca do incondicionado e a série das condições dadas junto com o condicionado pressupondo o incondicionado como também dado, ou seja, parece que P2 é P1 quando P2 deveria ser mesmo P2. Por fim, há uma constatação que pode trazer luz ao problema aqui colocado, ou, complicar ainda mais o caminho da solução: a ilusão ótica apresentada no escrito pré- 356

críticosonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica (1766) tem uma certa proximidade com a ilusão do entendimento na Analítica Transcendental, uma vez que nos dois casos, a ilusão está ligada a um erro do julgar, um erro decorrente dos sentidos (ou com influência da Faculdade da Imaginação). Assim, será que a ilusão ótica nos Sonhos de um visionário pode ser um princípio de resolução para compreender a ilusão transcendental na Crítica da razão pura? Referências Bibliográficas ALLISON, H. E. Kant's concept of the transcendental object. Kant-Studien.Berlim, n. 59, p. 165-186, 1968.. Kant s transcendental idealism.london: YaleUniversity Press, 2004. GRIER, M. Kant s doctrine of transcendental illusion.cambridge: Cambridge University Press, 2001. KANT, I. Crítica da razão pura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores, Kant I).. Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica. In:. Escritos précríticos. São Paulo: Unesp, 2005. p. 141-218. 357