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Transcrição:

Acórdão n.º 4/CC/2015 de 16 de Julho Processo n.º 02/CC/2013 Fiscalização concreta de constitucionalidade I Relatório Acordam os Juízes Conselheiros do Conselho Constitucional: O Meritíssimo Juiz Presidente da 3ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Quelimane remeteu ao Conselho Constitucional, os Autos de Querela n.º 237/12, em cumprimento do disposto no artigo 214 conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 247, ambos da Constituição da República de Moçambique (CRM), e alínea a) dos artigos 67 e 68 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, Lei Orgânica do Conselho Constitucional. Nos autos supra mencionados, o Juiz a quo decidiu indeferir o pedido do Ministério Público com fundamento no artigo 473.º, parágrafo único, do Código do Processo Penal, por julgar inconstitucional. 1

O Meritíssimo Juiz Presidente da 3ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Quelimane fundamenta a recusa na aplicação da norma acima aludida, dizendo, em substância, o seguinte: - Numa análise histórica do processo penal moçambicano grande parte das normas é fruto de herança histórico-colonial. Por força da Constituição moçambicana de 1975, as normas que vigoravam neste território quando colónia, foram assumidas como nossas desde que não contrariassem os princípios, normas e direitos assentes e emanados na Constituição. - No sistema processual penal moçambicano os poderes - deveres de acusar, defender e julgar estão dispostos em órgãos diferentes. Donde resulta que o arguido tenha amplas garantias de defesa no processo e direito de intervenção em todas fases do processo, que o processo possa assumir-se em algumas fases como secreto, escrito quando se vise garantir melhor a produção das provas, que se tenha como fim a busca da verdade, o que conduziria a actuação do órgão de Estado (Ministério Público) por princípios de objectividade e legalidade. - Estes princípios traduzem a actividade do órgão encarregue de recolha da prova (Ministério Público), sem uma pretensão ou interesse (condenação do arguido), mas apenas guiado para a descoberta da verdade (que poderia conduzir a condenação ou absolvição do réu). Mesmo na fase de julgamento, este Ministério Público pode tomar a defesa para a absolvição do réu, quando verifique que as provas/os factos assim o ditam. 2

- Este sistema ofereceria ao arguido um direito de defesa e não um dever de defesa, [tanto é assim que], o arguido não pode deixar de estar representado no processo por um órgão formal de defesa, o Advogado e ou Defensor oficioso (...). - O tribunal intervém no processo como órgão imparcial a quem cabe dizer o direito, assumindo contudo poderes de investigação, que nasce por puro dever de ofício. - Partilhamos a posição de que o sistema processual penal moçambicano não é misto, mas sim acusatório enfermado com princípios de investigação. Assim, não basta que se atribua ao juiz o poder de intervir de forma activa na descoberta da verdade ou que se proceda a investigação visando formar melhor a convicção para ai se assacar, ao invés de evolução do processo, princípios do inquisitório e características do sistema inquisitório. - A actividade do juiz é consequência da não definição das questões controvertidas como a essência do processo penal. Para o processo penal tanto é importante o que se mostra como controvertido e o que se mostra como matéria não controvertida. É acima de tudo, o princípio da investigação, consequência do juiz julgar, com imparcialidade, conforme a lei e a sua convicção. - A procura de formulação da sua convicção, independente dos préjuízos que nascem da acusação e defesa (posição dos intervenientes), exige uma intervenção activa do juiz na realização da prova e busca pela verdade, o que acaba por acontecer por via da investigação judicial oficiosa. É só assim, que se pode garantir que a decisão judicial, não se 3

limita na posição melhor formulada no processo, mas nos factos e na verdade. Serve assim, como essencial para definir um sistema como acusatório que se verifique uma separação efectiva de poderes de acusar, defender e julgar. Que os direitos dos arguidos e sua intervenção sejam possíveis em todas as fases do processo. - O sistema processual penal não está definido de forma explícita na Constituição de 2004, como acusatório. Contudo, a Constituição definiu este sistema como sendo o que entre nós deve vigorar, pois de forma implícita, consagrou e garantiu: a) quanto ao arguido o direito a defesa, direito a assistência jurídica e patrocínio judiciário (artigo 62, n.º 1 da CRM); b) o direito a livre escolha pelo arguido do seu defensor, bem como a garantia de defesa gratuita em caso de deficiências económicas por parte do arguido (artigo 62, n.º 2 da CRM); c) o direito a julgamento e garantido a todo o arguido (artigo 65, n.º 1 da CRM). - Aflora ainda o Meritíssimo Juiz a quo que, neste mesmo âmbito a Constituição consagrou a advocacia ou mandato judicial como órgão da administração da justiça, o que melhor garante os direitos dos arguidos, dando assim a dignidade constitucional a um órgão que a par dos outros intervenientes na administração da justiça (Tribunal e Ministério Público) desempenha um papel de extrema importância. 4

- Entende o Meritíssimo Juiz que, estando definidos e separados os órgãos que garantem a acusação (Ministério Público), a defesa (arguido e seu mandatário ou advogado), a Constituição da República atribui aos tribunais o exercício e monopólio da jurisdição nos termos do artigo 212 da Constituição da República. - Conclui, assim, parcialmente, o Juiz a quo, que o sistema processual penal adoptado pelo legislador constitucional moçambicano é acusatório, por entender que há separação de poderes na intervenção no processo, garantias dos direitos do arguido. Quanto ao substrato histórico patente no artigo 473.º do Código do Processo Penal, o Meritíssimo Juiz esclarece o seguinte: - A história mostrou claramente que a um dado momento as magistraturas (Judicial e do Ministério Público) conduziram-se por princípios hoje tidos como incompatíveis com os pressupostos do Estado de direito democrático e isso permitiu que: a) os tribunais superiores avocassem processos em curso num tribunal de nível inferior por ordem; b) decisões judiciais (sentenças) sem qualquer fundamentação de facto e de direito; c) situações em que a fixação das razões sobre a decisão de facto (fundamentação de facto) eram tidas como segredo de justiça - artigos 469.º e 471.º do Código de Processo Penal de 1929; 5

d) existência de juízes - polícias (inquisição) e que o Ministério Público era detentor da acusação numa perspectiva meramente formal (mero agente administrativo sem poderes efectivos quanto a marcha do processo); e) situações em que o próprio juiz era obrigado a recorrer da sua decisão fazendo subir o processo para o tribunal superior. - Para o Meritíssimo Juiz a quo, o substrato histórico contido no artigo 473.º do Código do Processo Penal, passou da discrepância do juiz recorrer da própria decisão para a condição de recurso ser interposto pelo detentor meramente formal da acção penal (o Ministério Público) antes do Decreto Lei n.º 35007, de 13.10.1945, até hoje em que o Ministério Público é um órgão judiciário com autonomia, conduzido por princípios de objectividade e legalidade, em que devia recorrer apenas para repor a legalidade (pedindo a correcção de vícios e anomalias das decisões judiciais). - O legislador desse passado já longínquo teria feito do Ministério Público um recorrente compulsivo. Nesses anos de desconfiança, o próprio Código, e outra legislação impunha ao Ministério Público que, em certas circunstancias e relativamente a certos crimes interpusesse recursos. Eram recursos obrigatórios, áreas especialmente visadas na avaliação funcional dos magistrados de então ( ). - Do substrato previsto no artigo 473.º do Código do Processo Penal, o Ministério Público ao interpor recurso obrigatório perde toda a legitimação material e toda a justificação acaba nesta medida revelando-se sistematicamente disfuncional porque o Ministério Público venire contra factum proprium o 6

que quer dizer que o Ministério Público recorresse de decisões que houvessem sido tomadas a seu pedido ou sob seu requerimento ( ). - O Ministério Público é que conduz toda a instrução preparatória, acusa devidamente um cidadão, defende a sua condenação em julgamento, conformase com a sentença, verifica o alcance e satisfação das expectativas comunitárias com a decisão, assiste a aceitação da decisão pelo réu condenado, não pode se ver impelido a recorrer apenas porque a letra da lei a dita, fazendo do recurso um acto administrativo e não um remédio para reforma da decisão. Assim não pode ser visto como autónomo e independente e age de má-fé ou seja contra os postulados da lealdade processual, seja contra os postulados da justiça penal. - O artigo 473.º do Código do Processo Penal ao impor a interposição pelo Ministério Público de um recurso sem fundamento no processo (vício de irregularidade ou falta de mérito de sentença de um Tribunal), em razão apenas de uma pena aplicada ao arguido, viola o princípio de autonomia e independência do Ministério Público enquanto sujeito processual ou quase parte no âmbito do processo penal, por não permitir que este haja e se mova no processo, no substrato da legalidade, isenção e objectividade, criando uma espécie de empregado do legislador e seguidor cego da lei afastando-se dos postulados do direito e de justiça penal. - Este Ministério Público seria um entrave à justiça penal e aos postulados do direito. Seria um mero órgão administrativo para o qual não existe justiça e uma verdade processual, mas só uma lei a qual deve obediência cega. - O artigo 473.º do Código do Processo Penal, põe em causa o princípio da separação de poderes (poder executivo, poder legislativo e poder judiciário) e o próprio Estado de Direito Democrático. 7

- A imposição pelo legislador de um pressuposto processual (previsto no aludido artigo 473.º), não funciona como um mecanismo de correcção de alguma anomalia da decisão judicial recurso - mas tão só como um mecanismo de inspecção inter-judicial de uma decisão condenatória em razão da medida da pena aplicada, funcionando assim como um requisito legal, pressuposto processual para validação de uma decisão condenatória e concretização do trânsito em julgado. - O artigo 473.º do Código do Processo Penal, despe a validade de uma decisão judicial, que não enferma de qualquer vício ou anomalia, pelo critério da pena aplicada, tomada dentro dos limites da competência de um órgão de soberania, que obriga a uma inspecção de validação ou invalidação da decisão de um tribunal por um outro tribunal de nível superior, criando a figura de dependência interna entre tribunais, fazendo com que estes nos casos em que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão, estabeleçam uma relação integrada e dependência. - Ter como vigente e não revogada esta norma (artigo 473.º CPP) seria aceitar, a existência de um Ministério Público capataz e um mero instituto da administração pública, criar uma dependência funcional entre os Tribunais, em detrimento da segurança jurídica assente no trânsito em julgado. - Esta norma enquanto acto legal de inspecção por desconfiança das decisões judiciais, significa por outro lado o afastamento das regras de competência. Assim, se determinado tribunal tem competência para decidir sobre a matéria objecto de certo processo, como pode o mesmo legislador ordinário se contradizer, o que o faz quando diz que, apesar da competência de certo tribunal de decidir sobre o objecto de dado processo, caso a decisão seja em certo sentido, a mesma não transita em julgado, independentemente da existência dos 8

requisitos formais e materiais, de conformação dos sujeitos processuais com a mesma, tão só para permitir uma tal inspecção a nível da judicatura. - Não se pode impor ao cidadão conformado com a decisão, com a qual também se conformou o Ministério Público no desgaste de continuar em prisão preventiva e sem a sua responsabilidade definida pela simples desconfiança a que o legislador ordinário, tem quando um Tribunal Judicial (de Distrito, Província, Superior de recurso ou mesmo o Tribunal Supremo em primeira instância) condena um cidadão numa pena superior a 8 anos de prisão. - O protelar a decisão final num processo judicial de cariz criminal, com fundamento na desconfiança em relação aos outros tribunais é insuportável e incompatível com os pressupostos do Estado de Direito. A nível social, esta situação leva aos tribunais ao descrédito perante aqueles que o legitimam, a população. - Considera o Magistrado a quo que, como se não bastasse a morosidade normal na tramitação dos processos, se passaria a mensagem de que um indivíduo mesmo julgado, mesmo que aceite a decisão a mesma não é válida, sem passar pelos olhos de outro juiz superior ao que a tomou, transmitindo também uma imagem debilitada dos Tribunais na tramitação até ao final dos processos pelo grosso número de detidos em prisão preventiva após a culpa formada. - Ao juiz enquanto pessoa confiada pela colectividade para julgar, lhe é retirada a possibilidade de em nome dos que legitimam o seu poder de recorrer das suas próprias decisões, independentemente de este vir a perceber-se de um erro ou vício da sua sentença. Seria um pecado jurídico, que aquele que decide, pudesse para total insegurança jurídica recorrer da sua própria decisão. 9

- O direito ao recurso é um remédio contra a injustiça (que pode ser um vício, a violação de uma norma, o erro grosseiro) no âmbito do processo penal. Só a injustiça pode fundamentar e dar razão de ser ao direito ao recurso em detrimento da celeridade processual etc. Como estamos a defender é fundamento do recurso a injustiça da decisão. - Assim, qualquer recurso fundado na justiça da decisão, no acerto das normas aplicadas ou no arrepio das coisas, pura e simplesmente por causa da pena aplicada é um expediente dilatório e não se conforma com a Constituição, quando atribui o poder as partes de impugnar qualquer decisão judicial entendida como injusta. Ou por outro lado, seria fazer passar o entendimento de que qualquer decisão judicial que aplique uma pena superior a 8 anos de prisão quando tomada em primeira instância deve ser vista como injusta e assim passível de recurso obrigatório como forma de não permitir vida a tamanha injustiça. - As decisões tomadas nos ditames da lei, sem qualquer erro, vício ou anomalia, que condene conforme pedido pelo Ministério Público sob conformação do arguido, realizando as expectativas sociais não são injustas. - O Meritíssimo Juiz Presidente da 3ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Quelimane termina solicitando a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 473.º do Código do Processo Penal, como sendo um imperativo categórico para o predomínio do Estado de Direito. 10

II Fundamentação O presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade foi remetido ao Conselho Constitucional por quem tem legitimidade processual para o fazer, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 247 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e da alínea a) do artigo 67 e do artigo 68 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC). O Conselho Constitucional é a instância competente, em razão da matéria, para conhecer, em processo de fiscalização concreta, a questão de inconstitucionalidade suscitada nos presentes autos, ao abrigo das disposições conjugadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 244 e da alínea a) do n.º 1 do artigo 247, ambas da Constituição República. Conforme se extrai dos fundamentos da decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz Presidente da 3ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Quelimane, o Conselho Constitucional é solicitado para apreciar a conformidade com a Constituição da República, da norma contida no artigo 473.º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, por se julgar que põe em causa os princípios da separação de poderes e do Estado de Direito Democrático, por isso, inconstitucional. O conteúdo da norma recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, pela decisão judicial e submetida a recurso para este Conselho Constitucional é o artigo 473.º, parágrafo único, do Código Processo Penal, redacção introduzida 11

pelo Decreto n.º 20:147, de 1 de Agosto de 1931, extensivo às Colónias por força do Decreto n.º 20:891, de 13 de Fevereiro de 1932, que dispõe nos seguintes termos: O Ministério Público recorrerá sempre das decisões condenatórias que impuserem qualquer das penas maiores fixadas dos nºs 1º, 2º, 3º e 4º do artigo 55.º ou dos nºs 1º, 2º, 3º e 4º do artigo 57.º do Código penal, tendo o recurso efeito suspensivo. De acordo com os fundamentos aduzidos na motivação do presente recurso, a disposição legal acima transcrita viola os princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático e da Separação de poderes, previstos nos artigos 3 e 134 da Constituição da República, que a seguir se transcreve: Constituição da República de Moçambique Artigo 3 (Estado de Direito Democrático) A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do Homem. Artigo 134 (Separação e interdependência) Os órgãos de soberania assentam nos princípios de separação e interdependência de poderes consagrados na Constituição e devem obediência à Constituição e às leis. 12

Na verdade, os presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, têm a sua origem num processo penal, ou seja, a questão de inconstitucionalidade foi levantada num feito submetido a julgamento num tribunal judicial, por iniciativa do respectivo magistrado no uso do seu poder jurisdicional, ao abrigo do disposto no artigo 214 da CRM, daí que concluímos que estão preenchidos os requisitos processuais subjectivos da fiscalização concreta da constitucionalidade. Aliás, constitui jurisprudência assente neste Conselho Constitucional que no controlo por via de incidente a inconstitucionalidade do acto normativo só pode ser invocada no decurso de uma acção submetida à apreciação dos tribunais. A questão da inconstitucionalidade é levantada, por via de incidente, por ocasião e no decurso de um processo comum (civil, penal, administrativo ou outro) 1. Contudo, importa sublinhar que tratando-se de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, para além da verificação dos requisitos processuais subjectivos acima mencionados, é imperioso o preenchimento dos requisitos processuais objectivos, ou seja, o Conselho Constitucional deve também verificar se a norma questionada têm relevância directa e imediata para a decisão da questão principal, objecto do processo em que a questão incidental de inconstitucionalidade é suscitada. Esta verificação preliminar dos requisitos processuais objectivos é importante porque deve ser tomando em consideração que não basta que se questione a constitucionalidade de uma disposição legal, é imprescindível que a norma cuja 1 Acórdão nº 7/CC/2014, de 10 de Julho 13

constitucionalidade é posta em crise seja relevante para a decisão da causa no caso sub judice. Dito de outro modo, no plano dos pressupostos processuais de admissibilidade do recurso constitucional, se perfila como requisito indispensável a susceptibilidade de a norma questionada se dever apresentar como uma norma com interesse para a decisão da causa. É doutrina assente que a fiscalização da constitucionalidade pode incidir sobre quaisquer normas que sejam relevantes para a decisão, sejam normas materiais e de direito substantivo, que tenham a ver com o mérito ou o fundo da causa, sejam normas adjectivas, que tenham a ver, por exemplo, com os meios probatórios ou com pressupostos processuais. Para melhor compreensão dos requisitos processuais objectivos, é importante socorremo-nos da doutrina segunda a qual, Suscitar-se a questão da inconstitucionalidade durante o processo não significa que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até a extinção da instância, mas sim que essa invocação pode e deve ser feita em momento em que o Tribunal a quo ainda possa conhecer da questão. Em geral, a questão da constitucionalidade deve ser suscitada antes da prolação da sentença de que se recorre. (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição (Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, pg. 986). Contudo, compulsado o respectivo processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, remetido a este Conselho Constitucional, constata-se que o tribunal a quo tomou a iniciativa de suscitar a questão de inconstitucionalidade no processo sub judice, depois da prolação da sentença. 14

Deste modo, entende o Conselho Constitucional que o tribunal a quo, ao ter indeferido o requerimento de interposição do recurso obrigatório do Ministério Público, com fundamento em inconstitucionalidade exerceu o seu poder jurisdicional fora dos parâmetros legais, isto é, agiu em desarmonia com o preceituado no artigo 214 da CRM. No caso sub judice, a pretensão do tribunal a quo mais não é do que desencadear, perante este Conselho Constitucional, um processo de fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade com base num incidente de inconstitucionalidade, o que não se mostra possível em face do disposto no n.º 2 do artigo 245 da Constituição da República. Nestes termos, o Conselho Constitucional julga que não estão preenchidos os pressupostos processuais objectivos, uma das condições indispensáveis e fundamentais para este Órgão apreciar o pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade da norma questionada. III Decisão Em face do exposto, o Conselho Constitucional decide não conhecer do pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade da norma constante do artigo 473.º, parágrafo único, do Código Processo Penal, redacção introduzida pelo Decreto n.º 20:147, de 1 de Agosto de 1931, extensivo às Colónias por força do Decreto n.º 20:891, de 13 de Fevereiro de 1932. 15

Notifique e publique-se. Dê-se cumprimento ao disposto no artigo 75 da Lei Orgânica do Conselho Constitucional. Maputo, 16 Julho de 2015. Hermenegildo Maria Cepeda Gamito; Domingos Hermínio Cintura; Lúcia da Luz Ribeiro; Manuel Henrique Franque; Mateus da Cecília Feniasse Saize; Ozias Pondja. 16