CINÉTICA DA HIDRÓLISE DE BAGAÇO DE CANA EMPREGANDO ENZIMAS PRODUZIDAS POR Myceliophthora thermophila EM CULTIVO SÓLIDO P. A. CASCIATORI 1, B. R. PENARIOL 2, F. P. CASCIATORI 3, J. C. THOMÉO 2 e R. da SILVA 1 1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Departamento de Química e Ciências Ambientais 2 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Departamento de Engenharia e Tecnologia de Alimentos 3 Universidade Federal de São Carlos, Campus Lagoa do Sino, Centro de Ciências da Natureza E-mail para contato: pricasciatori@yahoo.com.br RESUMO A produção de etanol de segunda geração é um tema atualmente muito discutido no Brasil e no mundo. Um dos pontos chaves para o sucesso da produção deste biocombustível é uma eficiente, econômica e ambientalmente amigável hidrólise da biomassa lignocelulósica. Estudos recentes indicam que enzimas produzidas por fungos em cultivo sólido podem ser uma alternativa interessante de como obter bons resultados na sacarificação. A hidrólise enzimática da biomassa é afetada pelo tipo de substrato, pela atividade das enzimas e pelas condições da reação (temperatura e tempo). Diante disso, o estudo da cinética de hidrólise é fundamental, haja vista a possibilidade de desnaturação e perda de atividade ao longo da reação. O objetivo do trabalho foi avaliar a cinética de hidrólise de bagaço de cana in natura em diferentes temperaturas, aplicando-se enzimas produzidas por Myceliophthora thermophila em cultivo sólido. As hidrólises foram realizadas em frascos independentes, retirados a cada 2 horas durante 24 horas, em banho termostático com agitação a 45, 55, 65 e 75 ºC. Utilizaram-se 7 ml de enzima (0,43 FPU/mL) para 0,2 g de bagaço. Os açúcares redutores totais (ART) foram quantificados por reação com DNS. Os maiores teores de ART foram obtidos em 45 e 55 ºC após 12 e 8 h de hidrólise, respectivamente, indicando que a enzima é termofílica e termoestável, atributo interessante para aplicações industriais. 1. INTRODUÇÃO Neste momento de discussão da matriz energética mundial e de busca por fontes de energia limpas e renováveis, as enzimas celulolíticas chamam atenção da comunidade científica e industrial tendo em vista sua aplicação na hidrólise de materiais lignocelulósicos na cadeia de produção do etanol de segunda geração. Tal denominação vem do fato de o etanol de segunda geração ter como matéria-prima açúcares provenientes da quebra das cadeias de celulose e hemicelulose que por sua vez
advém de biomassa residual e não alimentar, tais como caules, folhas, cascas, farelos e bagaços, que são sobras ou resíduos da agroindústria, uma vez que o produto primário de interesse já fora extraído. Dentre estes rejeitos agroindustriais, se destaca o bagaço de cana, resíduo da produção do etanol de primeira geração e predominantemente constituído por celulose, hemicelulose e lignina, sendo assim uma potencial fonte de açúcares fermentescíveis (Pandey et al., 2000). A produção brasileira de cana-de-açúcar foi de aproximadamente 632 milhões de toneladas na safra 2014/2015 (UNICA, 2016), o que gerou cerca de 158 milhões de toneladas de bagaço, o que denota o potencial de biomassa residual conversível a etanol no país. A produção do etanol de segunda geração, também chamado de bioetanol, envolve três etapas principais: pré-tratamento do bagaço, hidrólise da celulose e fermentação dos açúcares liberados. A etapa de despolimerização dos carboidratos a açúcares fermentescíveis ou simplesmente hidrólise ou sacarificação, pode ocorrer por duas vias: hidrólise enzimática ou química. A via química, embora eficiente e rápida, gera resíduos tóxicos que devem ser tratados, aumentando o número de operações, consumindo energia e tornando o processo pouco competitivo. A hidrólise enzimática apresenta diversas vantagens sobre a química, dentre as quais se devem destacar o menor gasto energético e a alta especificidade pelo substrato, evitando a produção de compostos indesejáveis. As principais enzimas envolvidas neste processo são as celulases, nome genérico usado para designar uma classe de enzimas que atuam conjuntamente na quebra da celulose a glicose, sendo constituídas por endoglucanases (quebra a celulose na região amorfa e libera os celo-oligossacarídeos), exoglucanases (quebra a celulose e os celo-oligossacarídeos maiores e libera a celobiose) e β-glucosidase (cliva os dímeros celobiose e finalmente libera as moléculas de glicose) (Casciatori, 2015). No entanto, a via enzimática é mais lenta e tem como uma das principais barreiras processos eficientes e viáveis de produção de enzimas a custo que viabilize seu uso (Mishima et al., 2006). Uma alternativa que vem sendo estudada para a produção dessas enzimas a serem aplicadas na hidrólise da biomassa lignocelulósica é o cultivo sólido, uma vez que este processo permite obter tais enzimas também a partir de rejeitos agroindustriais, o que pode ser tanto econômica quanto ambientalmente interessante, dado que acompanha a tendência de agregação de valor a rejeitos agroindustriais de baixo valor agregado e cuja disposição final é problemática. Devido às atividades de água mais baixas encontradas nos sistemas de cultivo sólido, os microrganismos que mais se adaptam a esse tipo de cultivo são os fungos filamentosos, para os quais o cultivo sólido reproduz o habitat natural, o que faz com que estes excretem naturalmente grandes quantidades de enzimas para o meio extracelular. Ademais, dentre os fungos filamentosos que se desenvolvem bem e secretam altos níveis de enzimas em cultivo sólido, os termofílicos apresentam a vantagem adicional de produzir enzimas mais termoestáveis, uma característica bastante interessante do ponto de vista industrial da produção do etanol de segunda geração, sobretudo quando prétratamentos que envolvem o uso de calor são empregados na etapa anterior à hidrólise enzimática (Da Silva et al., 2005). Como as enzimas produzidas por fungos termofílicos atuam bem em temperaturas mais elevadas, é possível gastar uma quantidade de energia menor para resfriamento do material entre as operações de deslignificação a quente e de sacarificação, aumentando a viabilidade do processo.
Os fatores que afetam a hidrólise enzimática incluem o tipo de substrato, a atividade celulolítica e as condições de reação (temperatura, ph, presença de sais, entre outros parâmetros). Para melhorar o rendimento e a taxa de hidrólise enzimática, as pesquisas focam na otimização do processo hidrolítico e no aumento da atividade celulolítica. Quanto ao tipo de substrato, os fatores mais importantes que afetam a hidrólise enzimática dos materiais lignocelulósicos são a cristalinidade da celulose, o grau de polimerização, o conteúdo de umidade, a área superficial disponível e o conteúdo de lignina (Laureano-Perez et al., 2005). Grous et al. (1986) concluíram que o tamanho dos poros do substrato em relação ao tamanho das enzimas é o principal fator limitante da hidrólise enzimática da biomassa lignocelulósica. Diante do exposto, a determinação da cinética de hidrólise do bagaço de cana mostra-se relevante para que a etapa de hidrólise possa ser bem dimensionada, especialmente em termos de temperatura e tempo de processo, haja vista a possibilidade de desnaturação e perda de atividade ao longo da reação. Neste contexto, o objetivo geral do presente trabalho foi determinar a cinética de sacarificação enzimática do bagaço de cana in natura empregando extrato enzimático celulolítico proveniente de cultivo em estado sólido do fungo Myceliophthora thermophila I-1D3b. 2. MATERIAIS E MÉTODOS 2.1. Obtenção das enzimas para aplicação A obtenção das enzimas para aplicação na sacarificação do bagaço de cana foi realizada no mesmo biorreator empregado por Casciatori et al. (2013). Esse biorreator consiste em um tubo cilíndrico constituído por módulos encamisados em aço inox, com 7,62 cm de diâmetro interno e 10 cm de comprimento cada módulo. O comprimento total do biorreator é de 1 m, equivalente a 10 módulos contíguos. O cultivo do fungo termofílico Myceliophthora thermophila I-1D3b foi feito em substrato composto por bagaço de cana e farelo de trigo na proporção 7:3 m/m, com umidade inicial 75 % em base úmida. As temperaturas do ar e da camisa foram 45 ºC, temperatura ótima de crescimento e produção de celulases para este fungo, e o tempo de fermentação foi de 96 horas. A taxa de aeração foi estabelecida em 240 L/h. Ao final do processo fermentativo, o extrato enzimático bruto foi obtido por procedimento de extração descrito por Zanelato et al. (2012) e Casciatori et al. (2013), sendo o extrato final homogeneizado e mantido em câmara de congelamento até o momento dos testes de sacarificação.
2.2 Preparo do bagaço de cana para sacarificação Como matéria prima para a hidrólise enzimática, o bagaço de cana gentilmente cedido pela Usina Vale, de Onda Verde SP, foi lavado e seco a 60 ºC até peso constante, triturado e separado em peneira granulométrica de 0,84 mm para padronização do tamanho da fibra, aproveitando-se a porção que conseguiu atravessar a malha da peneira. Este material foi submetido diretamente à hidrólise. 2.3 Cinética de hidrólise Para determinação da cinética, as hidrólises foram realizadas em duplicata em frascos de erlenmeyer independentes, contendo 0,2 g de bagaço de cana e 7 ml do extrato produzido por M. thermophila (0,43 FPU/mL), retirados a cada 2 horas durante 24 horas, em banho termostático com agitação às temperaturas de 45, 55, 65 e 75 ºC. O volume final foi ajustado para 10 ml pela adição de acetato de sódio 0,2 mol/l ph 5,0. A variável de resposta dos ensaios foi a quantidade de açúcares redutores liberados na sacarificação, obtida pelo método de Miller (1959). Os resultados foram ajustados por equações de regressão para cada temperatura de hidrólise e analisados comparativamente. 3. RESULTADOS E DISCUSSÕES Os teores de açúcares redutores totais liberados na cinética da hidrólise enzimática do bagaço de cana in natura, expressos em mg de açúcares redutores totais (ART) por grama de bagaço de cana (BC) estão apresentados na Figura 1. Na Figura 1 observa-se que, os maiores teores de ART foram obtidos em 45 e 55 ºC após 12 e 8 horas de hidrólise, respectivamente. Ademais, é possível notar que em relação ao custo benefício, na temperatura de 55 ºC consegue-se alcançar uma maior quantidade de ART (±70 mg/g) liberada em um menor tempo e, consequentemente, tem-se um menor gasto de energia, obtendo-se então a melhor tríade, tempo x ART x custo.
Figura 1 Cinética da hidrólise expressa em ART em função do tempo de hidrólise. De acordo com a Figura 1, os menores teores de ART liberados foram observados quando a enzima produzida pelo fungo termofílico foi aplicada em 75 ºC. Isto ocorre porque o aumento da temperatura nos ensaios de reações enzimáticas tem dois efeitos opostos. De um lado, o incremento da temperatura, até certo limite, aumenta a atividade da enzima, como ocorre para reações químicas em geral, segundo a lei de Arrhenius, aumentando assim a conversão de substrato em produtos, como observado para a hidrólise realizada a 55 ºC. No entanto, temperaturas acima deste limite reduzem gradativamente a atividade, pela distorção do centro ativo da enzima, até inativá-la completamente, devido à sua desnaturação térmica. Assim, o conhecimento da cinética de hidrólise em diferentes temperaturas é importante para o planejamento dos processos de sacarificação. Também vale ressaltar que, a partir de certo tempo, há o decaimento da atividade enzimática devido à redução gradual da concentração de substrato, diminuindo-se a probabilidade de ataque efetivo da enzima ao substrato. A partir dos teores de açúcares redutores totais liberados na cinética da hidrólise enzimática do bagaço de cana foram realizadas análises de derivada ponto a ponto para cada temperatura em função do tempo, as quais estão apresentadas na Figura 2.
Figura 2 Derivada da cinética da hidrólise expressa em ART em função do tempo de hidrólise. A partir da Figura 2, avalia-se a atividade da enzima em cada tempo, ou seja, a variação do ART em cada intervalo de tempo. Desse modo, visualiza-se que nas quatro temperaturas, a partir de certo tempo, a atividade decai ou estabiliza. Isso fica claro quando se verifica o gráfico da temperatura de 55 ºC, onde foi possível avaliar anteriormente que 8 horas é o tempo suficiente para ter a maior produção de ART, e então pelo gráfico constata-se que a partir das 8 horas o teor de ART liberado fica constante. 4. CONCLUSÕES Na cinética de hidrólise, empregando-se as enzimas produzidas por Myceliophthora termophila em cultivo sólido, os maiores teores de ART foram obtidos em 45 e 55 ºC após 12 e 8 horas de hidrólise, respectivamente, indicando que a enzima é termofílica e termoestável, atributo interessante para aplicações industriais.
5. REFERÊNCIAS CASCIATORI, F. P.; CASCIATORI, P. A.; THOMÉO, J. C. Cellulase production in packed bed bioreactor by solid-state fermentation. In: European Biomass Conference and Exhibition Proceedings, p. 1539-1546, 2013. CASCIATORI, P. A Produção de enzimas celulolíticas pelos fungos Trichoderma reesei e Myceliophthora thermophila e aplicação na sacarificação do bagaço de cana-de-açúcar. 2015. 99f. Dissertação (Mestrado) Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São José do Rio Preto, 2015. DA SILVA, R.; LAGO, E. S.; MERHEB, C. W.; MACCHIONE, M. M.; PARK, Y. K. Production of Xylanase and CMCase on Solid State Fermentation in Different Residues by Thermoascus aurantiacus Miehe. Braz. J. Microbiol., v. 36, p. 235 241, 2005. GROUS, W. R.; CONVERSE, A. O.; GRETHLEIN, H. E. Effect of steam explosion pretreatment on pore size and enzymatic hydrolysis of poplar. Enzyme Microb. Tech., v. 8, n. 5, p. 274-280, 1986. LAUREANO-PEREZ, L.; TEYMOURI, F.; ALIZADEH, H. & DALE, B.E. Understanding Factors that Limit Enzymatic Hydrolysis of Biomass. Appl. Biochem. Biotech., v. 121-124, p. 1081-1099, 2005. MILLER, G. L. Use of DinitrosalicylicAcidReagent for Determination of Reducing Sugar. Anal. Chem., v. 31, p. 426-428, 1959. MISHIMA, D.; TATEDA, M.; IKE, M.; FUJITA, M. Comparative study on chemical pretreatments to accelerate enzymatic hydrolysis of aquatic macrophyte biomass used in water purification processes. Bioresour. Technol., v. 97, p. 2166-2172, 2006. PANDEY, A.; SOCCOL, C. R.; NIGAM, P.; SOCCOL, V. T. Biotechnological potential of agroindustrial residues. I. Sugarcane bagasse. Bioresour. Technol., v. 74, p. 69 80, 2000. UNICA. Relatório final da safra 2014/2015. Disponível em: <http://www.unicadata.com.br>. Acesso em: 28 de janeiro de 2016. ZANELATO, A.I.; SHIOTA, V.M.; GOMES, E.; THOMÉO, J.C. Endoglucanase production with the newly isolated Myceliophtora sp. I-1D3b in a packed bed solid state fermentor. Braz. J. Microbiol., v. 43, n. 4, p. 1536 1544, 2012.