Watson & Crick. A história da descoberta da estrutura do DNA



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Transcrição:

RICARDO FERREIRA Watson & Crick. A história da descoberta da estrutura do DNA São Paulo: Odysseus Editora, 2003. 131 p. (Coleção Imortais da Ciência) MÁRCIA MARIA MARTINS PARREIRAS Programa de Pós-Graduação em História FAFICH UFMG 166 Escrito pelo biólogo molecular Ricardo Ferreira 1, o livro Watson & Crick. A história da descoberta da estrutura do DNA faz parte da coleção Imortais da Ciência, coordenada por Marcelo Gleiser. Foi escrito com o objetivo de divulgar os avanços alcançados pelos cientistas que contribuíram de forma direta ou indireta para o esclarecimento da estrutura da molécula do DNA. O livro dedica maior atenção ao biólogo americano James Dewey Watson (1928) e ao físico inglês Francis Crick (1916-2004), considerados os descobridores da estrutura dessa molécula. Apesar de enfatizar o papel desses dois investigadores, Ricardo Ferreira não omite a importância e contribuição que as pesquisas realizadas por outros cientistas tiveram sobre o processo da elaboração da estrutura do DNA, considerando como coadjuvantes fundamentais desse fato científico mais de uma dezena de investigadores de diferentes campos do conhecimento e das mais diversas nacionalidades. Menciona, por exemplo, Maurice Hugh Frederick Wilkins, o biofísico britânico que confirmou, por meio de experiências de difração dos raios X, as descobertas de F. Crick e J. Watson sobre a estrutura da hélice dupla da molécula do DNA. Também o físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) e sua proposição de que os genes dos seres vivos possuem um código, o qual atuando no plano molecular, poderiam controlar a transmissão das informações na reprodução da célula. Seu livro What is life? motivou J. Watson a estudar problemas relacionados à estrutura das macromoléculas. Apresenta também o químico americano Linus Carl Pauling (1901-1994), que difundiu nas comunidades de químicos e biólogos a importância da mecânica quântica. Pauling também trabalhou na investigação da estrutura do DNA, baseando-se inicialmente em modelos moleculares, estratégia que veio a ser adotada por Watson e Crick. Finalmente, cita o biólogo americano Oswald Avery (1877-1955), um dos investigadores que descobriu que os genes constituíam-se de uma macromolécula, cuja natureza química era o ácido desoxirribonucléico, o DNA. Assim, com o desafio de relatar a trajetória das pesquisas, hipóteses e teorias desenvolvidas para se chegar a alguma resposta quanto à questão fundamental que levou ao desenvolvimento da genética molecular, Ricardo Ferreira desempenha muito bem a tarefa. De modo sucinto, ele esclarece o leitor sobre como se chegou à molécula de DNA, partindo dos primeiros conceitos de Genética e Evolução desenvolvidos por Charles Robert Darwin (1809-1882), pelo austríaco Gregor Mendel (1822-1884) e pelo inglês Alfred Russel Wallace (1823-1913). Ao longo de sua narrativa, ele busca esclarecer conceitos fundamentais da biologia, da física e da química, como clonagem, mutação, difração, quiralidade, entre outros, todos componentes teóricos fundamentais para que o leitor possa acompanhar sua exposição. Com o mesmo objetivo, o livro traz um glossário que define alguns termos técnicos utilizados. Após introduzir os conceitos básicos relacionados à biologia molecular, genética e evolução, o biólogo e professor da Universidade de Pernambuco apresenta as duas figuras centrais do seu livro. Para tanto, dedica um capítulo a cada um, nos quais realiza uma narrativa contextualizada e fundamentada em elementos biográficos, tais como as influências que estimularam um físico como Crick a

investigar problemas de biologia e o perfil de menino prodígio de Watson, que aos 22 anos já havia realizado o curso de pós-doutoramento. No tópico seguinte é descrito o encontro dos dois cientistas, deixando transparecer como, apesar de suas diferenças pessoais, eles se complementavam perfeitamente em termos de interesses científicos. De um lado, Crick que dominava bem as técnicas de cristalografia, essenciais para a elucidação das estruturas de moléculas muito grandes. Do outro, Watson, um geneticista envolvido na busca pela descoberta da estrutura da macromolécula mais enigmática do período, o DNA. Esse encontro potencializou a construção de respostas razoáveis e bem fundamentadas para uma série de questões importantes formuladas na época, como quantas fitas poderia haver na hélice de DNA? quais grupos estariam para o lado de dentro da estrutura? Caso as bases estivessem no interior, como elas estariam emparelhadas?, etc. Assim, após uma série de estudos e discussões, o trabalho dessa dupla de investigadores, associado à colaboração de outros cientistas, culminou na elucidação da estrutura da molécula em 1953. É mister notar que, em muitos pontos do livro, Ricardo Ferreira faz alusão a questões importantes de caráter histórico e sociológico intrínsecas ao fazer científico que, por muito tempo, foram desconsideradas nos estudos historiográficos da ciência. Tal omissão pode ser justificada devido a uma influência e preponderância, nos anos vinte e trinta do século XX, do modelo epistemológico de desenvolvimento científico com ênfase neopositivista. O cerne do neopositivismo é a concepção de ciência como uma atividade estritamente indutiva. A epistemologia da modernidade consagrou esta idéia como modelo no âmbito das Ciências Naturais e, depois, pretendeu exportar para o conjunto dos demais saberes. Este modelo, entretanto, foi alvo de várias críticas, dentre seus principais opositores destacaram-se Karl Popper, com sua obra de 1934, Lógica da Descoberta e Thomas Kuhn, com o famoso Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. Todavia, para uma breve análise das questões histórico-sociais apresentadas no livro WATSON & CRICK A história da descoberta da estrutura do DNA, destaco como marco teórico as idéias desenvolvidos pelo médico e microbiologista polonês Ludwik Fleck em sua obra Gênese e desenvolvimento de um fato científico 2, de 1935. Este autor polonês foi por muito tempo negligenciado devido a inúmeros fatores, desde sua descendência judia, até pelo fato de suas publicações serem em alemão ou em um dialeto de sua região, línguas do domínio de poucos na época. A partir de meados da década de 1980, entretanto, a obra fleckiana tem sido resgatada 3 e considerada uma análise epistemológica profunda, que atribui à ciência perspectivas histórico-sociais que influenciaram mesmo Thomas Kuhn 4 na elaboração de suas idéias sociológicas sobre o desenvolvimento científico. Isto posto, chamo atenção para as conexões sociais e históricas apresentadas por Ricardo Ferreira e que se encontram inseridas na dinâmica do fazer científico. Primeiramente, embora o título desse conjunto de obras - Imortais da Ciência - nos remeta a uma perspectiva historiográfica com ênfase em heróis e o autor atribua a Watson e Crick um excessivo número de qualidades tais como engenhosidade, perspicácia e intuição, há um rompimento com aquela filosofia na medida em que uma clara concepção de ciência como um trabalho coletivo é revelada na apresentação da coleção e ao longo do livro. Conforme o coordenador da coleção Marcelo Gleiser, as pessoas que se ocuparam em desvendar os fenômenos e mistérios do mundo à sua volta, responderam, muitas vezes, a questões formuladas por sua comunidade, em outros, reformularam as perguntas. Esse diálogo configurou algo como uma inteligência coletiva. Nesse sentido, a ciência é apresentada sociologicamente enquanto construção de um coletivo, através da contribuição de vários indivíduos e, mais ainda, historicamente, enquanto resposta para questões específicas de uma época. Ao longo do livro há ainda várias outras citações que revelam a concepção de um conhecimento construído coletivamente, como quando o autor diz que as descobertas feitas em colaboração não se dividem, mas, ao contrário, se compartilham, um processo que é sempre mais enriquecedor do que 167

168 a divisão (p. 13), e ainda quando afirma que ao se ler a obra de Watson é possível vislumbrar esse lado informal do intercâmbio científico alimentado por redes de informações temporárias, mal definidas e formadas por cientistas que às vezes mal se conhecem ou apenas trabalham próximos (p. 72). Existe portanto uma preocupação do autor em destacar que os trabalhos realizados não são desenvolvidos apenas de modo independente, mas há uma interconexão via mecanismos intrínsecos à organização social do meio científico seminários, congressos, artigos como uma espécie de rede. Assim, os experimentos de um grupo de pesquisadores auxiliam e fornecem pistas para o desenvolvimento das pesquisas de terceiros, no caso, pistas para os trabalhos de Watson e Crick. Como exemplo, pode-se citar o episódio com a pesquisadora inglesa Rosalind Franklin (1920-1958), especialista em cristalografia. Seu trabalho no grupo do King s College, em Londres, e suas percepções peculiares a respeito da organização das bases no DNA ofereceram uma opção diferenciada ao caminho que Watson e Crick estavam percorrendo, já que ela propôs que as bases localizavam-se no interior da estrutura, enquanto Watson e Crick estavam ainda trabalhando com um modelo inverso. Uma segunda questão de cunho sociológico discutida pelo biólogo pernambucano relaciona-se com a divulgação científica. Para discuti-la o autor aborda uma análise entre as publicações de Mendel e Watson & Crick. O referido monge apresentou os resultados de suas pesquisas pela primeira vez em duas conferências para a Sociedade de História Natural de Brüno, atual República Tcheca, em 1865. Os textos das duas conferências foram publicados em 1866 na revista Relatórios dos Trabalhos da Sociedade Natural de Brüno. Algumas cópias foram enviadas para a Alemanha, Áustria, Estados Unidos e Inglaterra. Porém, devido à distribuição limitada, muitos dos grandes cientistas da época como Darwin não tiveram acesso às suas publicações. Assim, essa pouca divulgação justifica a falta de interesse com que os trabalhos de Mendel foram recebidos. Logo após citar a tímida revista na qual foram publicados os trabalhos de Mendel, Ferreira compara-a com a publicação de Watson e Crick realizada na Nature, periódico reconhecido internacionalmente. Nessa situação concreta o autor mostra como a avaliação e validação dos trabalhos científicos estão relacionados com a divulgação dos mesmos dentro da comunidade científica dominante. Finalmente, é importante ressaltar o caráter histórico do conhecimento abordado pelo autor. Esta historicidade do desenvolvimento científico pode ser vista novamente por meio de de uma comparação entre os trabalhos de Mendel e Watson & Crick. Em primeiro lugar percebemos a fria recepção que os trabalhos de Mendel tiveram logo quando publicados. Tal indiferença poder ter sido causada pela existência de outros trabalhos sobre as leis da hereditariedade apresentados na mesma época, que foram considerados cheios de erros, com conclusões muito distintas entre si, de modo que o tema perdeu credibilidade no meio acadêmico. Quanto à organização do DNA, entretanto, um fato oposto ocorreu, pois a fim de alcançar o propósito da elucidação da estrutura dessa molécula, cientistas e instituições renomadas desenvolveram investimentos chegando a resultados palpáveis e bastante próximos uns dos outros ao longo do percurso, validando ainda mais as investigações nesse sentido. Tal constatação nos permite afirmar o papel significativo de uma inteligência coletiva, conforme Gleiser, ou utilizando o termo fleckiano, coletivo de pensamento 5 na seleção e desenvolvimento de objetos de pesquisas em determinado período. Desse modo, as análises desenvolvidas pelo autor propicia-nos a percepção de que não há somente influências empíricas sobre a ciência, mas também sócio-culturais e históricas, e, ainda, construídas coletivamente. Tal pressuposto adequa-se à visão fleckiana quando este considera o pensamento uma atividade social por excelência que não pode localizar-se completamente dentro dos limites do indivíduo 6 e ainda que os meios de investigação atuais são precisamente o resultado do desenvolvimento histórico (...) o treinamento, os meios técnicos e a forma de colaboração dos investigadores lhes leva sempre ao velho desenvolvimento histórico do conhecimento. Portanto, não é possível de nenhuma maneira cortar os laços com a história 7. A descoberta de Watson e Crick esclarece a questão colocada por Darwin e Mendel a respeito de quais estruturas estariam exatamente envolvidas na transmissão de caracteres de uma geração à

outra. Todavia, o autor destaca que o advento da engenharia genética não soluciona em absoluto a questão relacionada à origem da vida, mas, pelo contrário, abre portas para novos questionamentos e novas possibilidades de solução. Muitas dessas soluções são exemplificadas no livro, como a Panspermia Dirigida proposta pelo próprio Crick, que levanta a hipótese de que os primeiros seres vivos teriam chegado à Terra trazidos por foguetes dirigidos por civilizações extraterrestres. Tal proposta sofre críticas do próprio Ricardo Ferreira, considerando-a um tanto quanto especulativa, pois apenas transfere o problema da origem da vida para outros planetas. Nesse sentido e, verdadeiramente, o conhecimento científico sempre estará inserido em um paradoxo que o move, relacionado à sua busca constante por respostas ao mesmo tempo em que estas nunca são e nem podem ser suficientes, fechadas, conclusivas. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a ciência busca respostas, ela sucumbiria se todas perguntas fossem finalmente respondidas. O modelo para a estrutura do DNA apresentada por Watson e Crick e referendada pela comunidade científica acelerou o desenvolvimento da engenharia genética mas, ao mesmo tempo, esse avanço abriu o mais profundo debate ético atualmente em curso no campo científico relacionado à decifração do código genético e a capacidade de alterá-lo em benefício do ser humano. A Genética, vista por muitos como a mais importante ciência do século XXI porque iniciou uma verdadeira revolução no modo como entendemos os seres vivos e a nós mesmos, promete transformar significativamente o futuro da espécie humana, mas depende para isso, do entendimento da responsabilidade moral que todo novo conhecimento implica. O livro faz referência a algumas conquistas desse novo campo, sendo, com relação ao Brasil, a elucidação completa do genoma da bactéria Xyllela fastigiosa, que causa uma doença nas laranjeiras; a produção de insulina via manipulação gênica para o combate do diabetes e a decifração de grande parte do código genético humano por um laboratório americano privado. Finalmente, em seus últimos capítulos, o autor desenvolve uma importante reflexão relacionada às conseqüências práticas do advento da engenharia genética propriamente dita, citando as contradições que acompanham esse novo prodígio da ciência. Se, por um lado, tal feito já contribui para o esclarecimento de crimes e para a realização de testes de paternidade, auxilia na medicina na medida em que fornece fundamentos para a prevenção, cura e tratamento de algumas doenças, por outro, questões éticas da mais profunda relevância são colocadas, como o caso da clonagem de seres humanos, a seleção de características de bebês como escolha da cor dos olhos, pele, o desenvolvimento de plantas geneticamente modificadas os transgênicos e suas conseqüências sobre o meio ambiente. Questões de difícil solução pois, de um ponto de vista bioético, tais procedimentos nos remetem a muitas controvérsias. Como exemplos, apenas para citar algumas dessas polêmicas, há o caso de indivíduos mais críticos que consideram a clonagem como uma reedição sofisticada da eugenia, com uma negação do direito à diferença e do direito de ser geneticamente único; já outros consideram que a prática da clonagem não seria justificada para a multiplicação de animais de espécies em extinção pois esse problema vincula-se à extinção dos habitas naturais, destruídos também na mesma velocidade. Logo, tal procedimento isoladamente seria indiferente. Ainda, as possibilidades de clonagem desafiam valores éticos, morais, religiosos e políticos pois não se configura apenas como uma técnica a mais, mas constituindo-se no poder de alterar formas e processos orgânicos no mundo dos seres vivos. Finalmente, outro ponto crucial é o de que a ênfase não pode permanecer apenas no fato de se permitir (ou não) que a estrutura genética de um novo ser seja moldada, ou se clonamos (ou não) um indivíduo humano mas, sobretudo quem decidirá quanto à realização dessas práticas e que razões serão aceitas para que elas sejam realizadas. Desse modo, o livro termina com uma mensagem extremamente importante, ressaltando que a engenharia genética criou um número muito grande de questões polêmicas e que, para solucioná-las, será preciso muito mais que conhecimentos, mas principalmente, sabedoria. 169

Indicado para docentes das áreas das Ciências da Vida e das Ciências Exatas, como os biólogos, físicos e químicos e também para os historiadores da ciência, formadores de educadores e pedagogos. É ainda recomendado para estudantes do ensino médio e superior, e claro, para os amantes da biologia molecular e da história da ciência. Os detalhes dessa descoberta fundamental, realizada pelas competências conjuntas de inúmeros pesquisadores e, em especial, Watson & Crick, estão descritos de forma acessível, com seus conceitos apresentados numa linguagem que é ao mesmo tempo precisa e clara. Como material de apoio para atividades educacionais, contribui para ampliar a competência dos jovens à leitura científica. É também um estímulo ao interesse pela ciência e à compreensão dos processos científicos. Além disso, configura-se em uma obra interessante não só por trazer uma rica seqüência histórica do processo de descoberta dessa importante molécula, que culminou no desenvolvimento da genética molecular, considerada, por muitos, juntamente com a Biologia, a ciência do século XXI, mas, principalmente, por levar à reflexão dos aspectos não-científicos associados ao desenvolvimento da ciência, tais como o papel da sociedade/ cultura e de questões éticas associadas. Ao mesmo tempo, constitui-se uma obra ímpar na literatura de divulgação científica publicada no Brasil por seu caráter contemporâneo e por oferecer subsídios a uma abordagem da biologia evolucionista, tendência que vem sendo cada vez mais exigida nos ambientes educacionais, além de ser um importante instrumento de auxílio à compreensão dessa nova revolução do conhecimento, tão importante quanto a copernicana. Nas palavras de Watson, costumávamos pensar que o futuro estava nas estrelas, agora sabemos que ele está em nossos genes (p. 52). 170 NOTAS 1 Ricardo Ferreira é professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), além de pesquisador do CNPq, membro da SBPC e autor de mais de vinte obras de divulgação cientifica. Lecionou em várias instituições estrangeiras, como na Indiana University, Columbia University, dentre outras. 2 FLECK, Ludwik. La genesis y el desarrollo de um hecho científico. Tradução de Luis Meana. Madrid: Alianza Editorial, 1986. 3 Cf. COHEN, R. S.; SCHNELLE, T. Cognition and fact: materials on Ludwik Fleck. New York: Kluwar Academic Publishers, 1986. 4 FLECK, Ludwik. Gênesis and development of a scientific fact. Tradução de Fred Bradley e Thaddeus J. Trenn. Chicago: University of Chicago Press, 1979. p. viii. 5 ibidem. p. 39. 6 FLECK, Ludwik. La gênesis...op. cit., p. 145. 7 ibidem. p. 69.