AS DIVERGÊNCIAS INTERPRETATIVAS DO INCISO I, DO ARTIGO DO CC

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Transcrição:

200 - DOUTRINA - REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 AS DIVERGÊNCIAS INTERPRETATIVAS DO INCISO I, DO ARTIGO 1.829 DO CC Nayra Moura Santos * RESUMO: Rompendo com a tradição do Direito Brasileiro, o Código Civil de 2002 concedeu nova roupagem às regras regentes da sucessão hereditária, notadamente prevendo que o cônjuge sobrevivente concorrerá com os descendentes do de cujus, a depender do regime de bens e do fato de existirem ou não bens particulares do falecido. Ocorre, porém, que as muitas divergências ainda existentes sobre este tema, surgem da confusa redação do inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil, dispositivo que disciplina a então citada concorrência sucessória. Assim é que diversas correntes doutrinárias oferecem diferentes leituras do citado dispositivo, gerando dúvidas e incertezas entre os operadores do direito e entre a população de um modo em geral, acerca da forma em que será efetuada a partilha de bens quando chamados a suceder o cônjuge supérstite e os descendentes do autor da herança. PALAVRAS-CHAVE: Direito sucessório. Concorrência sucessória. Inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil. Cônjuge supérstite. Descendentes. Regime de bens. Interpretações doutrinárias. 1. O INSTITUTO DA CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DO CÔNJUGE COM OS DESCENDENTES A regra que dispõe concorrer o cônjuge supérstite com os descendentes ou com os ascendentes, que se mostra como uma novidade no Direito brasileiro, há muito é prevista em outros ordenamentos jurídicos. Nesse sentido, tem-se que o legislador brasileiro ao elaborar um novo diploma para as relações cíveis buscou inspiração em outras normatizações, a fim de produzir um código mais consente o possível com a realidade dos tempos mais modernos. * Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe.

REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 - DOUTRINA - 201 Malgrado a boa intenção e a correta postura do legislador cível em ir buscar inspiração em diplomas de outros sistemas jurídicos, o fruto deste trabalho deveria ser antes adequado à realidade brasileira. Em verdade, o instituto da concorrência sucessória foi importado e introduzido no Direito pátrio, sem antes passar por uma adequação, uma revisão que melhor o colocasse em sintonia com as demais regras vigentes no Direito sucessório e no Direito de Família brasileiro. A codificação privada de 2002, ao inaugurar a concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes, fez germinar dúvidas entre os doutrinadores e no seio dos magistrados e demais operadores do Direito, dentre vários motivos, seja por que atrelou tal instituto do Direito sucessório ao regime matrimonial de bens, instituto este mais coerente com o Direito de Família, seja por que não expressou claramente as exceções à regra da concorrência sucessória do cônjuge, mas, do contrário, usou-se de um mesmo dispositivo normativo, o inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil, cuja redação não é das mais felizes, para trazer o instituto da concorrência sucessória ao Direito brasileiro, vinculá-lo ao regime de bens do casamento, estabelecer ressalvas à sua aplicação e expor sua base de incidência. Para Flávio Tartuce e José Fernando Simão 1 : (...) A sucessão, em nossa opinião, era mais simples e assim deveria ter sido mantida, deixando de criar uma série de dificuldades que surgiram para os aplicadores do Direito a partir da nova codificação privada. Também a civilista Maria Berenice Dias destaca 2 : (...) E a realidade não se compatibiliza com a novidade. É necessário concordar com Águida Barbosa e Giselle Groeninga ao afirmarem que o instituto da concorrência atropelou a vida, fomentando confusão, dificultando as novas uniões e ampliando os conflitos: frise-se em vida. Não obstante alguns doutrinadores manifestarem certo incômodo face aos novos contornos da sucessão mortis causa, há aqueles que aplaudem

202 - DOUTRINA - REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 as alterações trazidas pela legislação em vigor a exemplo de Giselda Hironaka, citada por Maria Berenice Dias, para quem a lei veio a premiar quem esteve ao lado do cônjuge ou companheiro até sua morte. 3 2. O CÔNJUGE COMO HERDEIRO NECESSÁRIO O atual Código Civil atribuiu a qualidade de herdeiro necessário ao cônjuge. Significa isto, que também em relação ao cônjuge assiste a proteção da legítima. Há que se ressalvar, porém, que o direito sucessório que assiste o cônjuge encontra-se condicionado ao que dispõe o artigo 1.830 do Código Civil então em vigor, in verbis: Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente. Observando o comando legal retro transcrito, assinala-se que o cônjuge não pode estar separado judicialmente nem divorciado para fazer jus à herança. De fato, com o fim do casamento, não persiste qualquer razão jurídica para se chamar o ex-cônjuge à sucessão. Outrossim, não pode o cônjuge sobrevivente estar separado de fato há mais de dois anos, sendo que nesse caso, há que se ter certa cautela, pois mesmo se estiver separado de fato há mais de dois anos, o cônjuge poderá vir a suceder o falecido, se provar que a convivência se tornou impossível sem sua culpa. De qualquer sorte, ao traçar novo panorama para o cônjuge sobrevivente em matéria sucessória, o legislador buscou amparar àquele que dedicou em vida, amor e carinho ao de cujus, apoiando-o nos difíceis momentos. E, acertadamente, fez por elencar o cônjuge no rol dos herdeiros necessários, uma vez que não seria justo que o viúvo ou a viúva, sendo chamado a suceder, não lograsse parte alguma do patrimônio, por ter sido este disposto pelo falecido em vida em prol de outras pessoas. Tecidas estas considerações, urge tratar acerca das novas diretrizes que permeiam a ordem de vocação hereditária, disposta no vigente pergaminho cível.

REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 - DOUTRINA - 203 3. A PROBLEMÁTICA REDAÇÃO DO INCISO I, DO ARTIGO 1.829 DO CÓDIGO CIVIL De início, cabe destacar que o artigo 1.829 do Código Civil estabelece a ordem de vocação hereditária, identificando em seus incisos a relação preferencial das pessoas que são chamadas a suceder o de cujus. Ressaltase que o rol dos herdeiros legítimos constitui uma hierarquia, posto que a existência de um herdeiro de uma classe exclui o chamamento à sucessão dos herdeiros de classe subsequente. Posto isso, cumpre destacar a ambígua redação do artigo 1829, inciso I do Código Civil, in verbis: Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; A partir da leitura do dispositivo transcrito, é indiscutível a intenção do legislador no sentido de estabelecer certo estado condominial entre o cônjuge supérstite e os descendentes do de cujus, batizando este estado de concorrência sucessória. Outrossim, há que se concordar que o legislador, muito embora tenha se preocupado em deixar o cônjuge em uma confortável posição quando da partilha do acervo hereditário, não almejou que fosse a concorrência sucessória indistintamente aplicada, pois fez constar na redação do dispositivo em análise a expressão conjuntiva salvo se, que institui uma negação, hipóteses de exceção, portanto. É conveniente a divisão do texto do artigo em antes e após a expressão salvo se. E, uma vez considerado que salvo se é sinônimo de exceção, cabe voltar a atenção para o teor do inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil, a fim de perceber que constituem exceção à regra da concorrência sucessória os regimes da comunhão universal de bens e o da separação obrigatória de bens. Conforme é possível notar, o legislador não desejou outorgar ao cônjuge supérstite direito a concorrer com os descendentes do falecido, nas hipóteses referidas, fazendo uso para promover essa

204 - DOUTRINA - REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 exceção, da já comentada expressão salvo se. Ademais disso, prosseguindo na leitura do inciso I, do artigo 1.829, possível também se deparar com um sinal gráfico, o ponto-e-vírgula(;). A colocação deste singelo sinal, ao invés de tornar coerente a leitura do mencionado inciso, acabou por alimentar o surgimento de diversas interpretações, propiciando grande polêmica acerca do novel instituto da concorrência sucessória no Direito brasileiro, notadamente em relação ao regime da comunhão parcial de bens. 4. AS QUATRO CORRENTES INTERPRETATIVAS DO INCISO I, DO ARTIGO 1.829 DO CÓDIGO CIVIL Digladiam-se os doutrinadores ao tentarem compreender se com a colocação do ponto-e-vírgula, o legislador pretendeu estabelecer um seccionamento, uma separação de ideias ou, se apenas quis indicar uma pausa mais longa. Ora, sendo entendido da primeira forma, restará assente que no regime da comunhão parcial, não havendo bens particulares do falecido, haverá sucessão, pois esta é a ideia, o mandamento contrário à parte do inciso anterior ao ponto-e-vírgula, que expõe, indubitavelmente, hipóteses de exceção à regra da concorrência sucessória. Por outro lado, se ficar compreendido que o ponto-e-vírgula somente fora colocado para dar uma pausa mais forte que uma simples vírgula, coerente será defender que no regime da comunhão parcial de bens, não havendo bens particulares, é também hipótese de exceção à concorrência sucessória. De qualquer forma, o que certamente se pode afirmar é que o legislador estabeleceu tratamento diferenciado quando o regime de bens do casamento for o da comunhão. Em virtude disso, a confusa redação do inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil, permite a extração de três diferentes interpretações. A interpretação dada pela primeira corrente, proposta pelo Conselho da Justiça Federal, consubstanciada no Enunciado 270, proferido na III Jornada de Direito Civil, defende no que tange ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, que o mesmo participará da sucessão como herdeiro legítimo concorrendo com os descendentes, apenas se o falecido tiver deixado bens particulares, sendo ainda, que só concorrerá com os descendentes em relação a tais bens particulares, restando assim excluídos os bens adquiridos na constância

REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 - DOUTRINA - 205 do matrimônio. Em caso de não existir bens particulares, o cônjuge supérstite não participará da sucessão, tendo garantido, porém, o seu direito à meação. Outra corrente, esta seguida por Maria Helena Diniz, preconiza uma ideia diferente. Muito embora, considerem em separado a hipótese do falecido ter deixado bens particulares, da hipótese de inexistência destes bens, entendem os partidários desta linha, que o cônjuge sobrevivente deve herdar nas proporções fixadas em lei, não somente os bens particulares, mas todo o acervo da herança, se o de cujus houver deixado bens particulares. Já, se o de cujus não tiver deixado bens particulares, o cônjuge sobrevivente nada recebe a título de herança. Persiste também uma terceira corrente que é encabeçada pela Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias. Esta corrente propaga que o cônjuge supérstite concorre com os descendentes na herança dos bens comuns, tão somente na hipótese de não persistir bens particulares deixados pelo falecido. Finalmente, há ainda uma quarta corrente de interpretação do inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil, tendo essa sido extraída a partir da decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.117.563/SP, que teve como Relatora, a Ministra Nancy Andrighi. No caso em tela, apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça, discutiase a possibilidade de ser aplicada à companheira supérstite, convivente em união estável, a mesma regra que a atual codificação traça para o cônjuge supérstite, quanto à sucessão, notadamente o direito dela à concorrência em partes iguais com os descendentes à herança. Na oportunidade, a Corte destacou que as três correntes então existentes eram insatisfatórias para solucionar a controvérsia, ao passo em que propugnava que a vontade do cônjuge manifestada devia ser tomada em consideração também no momento de interpretar as regras sucessórias. Por essa razão, não caberia ao cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial de bens direito à concorrência com os descendentes quando existir bens particulares, e sobre estes, sob pena de alterar o regime da comunhão parcial para o regime da comunhão universal, no qual, via de regra, não se faz distinção entre bens particulares e bens comuns. A concorrência apenas ocorre, para essa linha de interpretação, na hipótese de casamento sob o regime da comunhão parcial de bens e somente sobre os bens comuns do casal.

206 - DOUTRINA - REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 5. CONCLUSÃO O instituto da concorrência sucessória introduzido no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 2002, com a entrada em vigor de um novo Código Civil, é tema que ainda suscita fortes polêmicas. Analisando a evolução do Direito sucessório, percebe-se a preocupação em proteger a pessoa do cônjuge. Assim, ao longo dos tempos, instituíramse normas que de certa forma visavam preservar parte do patrimônio do de cujus para o viúvo ou para a viúva, a fim de evitar que este recaísse em uma situação de precariedade com o falecimento de seu companheiro. Justamente na esteira dessa linha de amparo a pessoa do cônjuge, fora previsto o denominado usufruto vidual, durante boa parte do período de vigência do Código Civil de 1916. Pela regra do usufruto vidual, o cônjuge supérstite teria direito ao usufruto dos bens do falecido nas hipóteses de concorrer com descendentes ou ascendentes do de cujus, desde que casado fosse pelo regime da comunhão parcial de bens ou da separação de bens. Ainda teria o cônjuge, o privilégio de usufruir sobre ¼ dos bens, concorrendo com os descendentes do falecido. Caso o falecido não deixasse descendente, mas apenas ascendentes, o usufruto do sobrevivente seria em relação à metade dos bens do morto. Sob a vigência do Código pretérito, ao cônjuge sobrevivente, se casado fosse pelo regime da comunhão universal de bens, assistiria, ademais, o direito real de habitação sobre o imóvel do casal. Todo este cenário de regras relativas à partilha da herança na successio mortis causa, modificou-se com o Código Civil de 2002. Este Codex, além de incluir o cônjuge no rol dos herdeiros necessários e de favorecêlo com a previsão do direito real de habitação e de uma quota mínima sobre o acervo hereditário, a ser preservada em determinados casos, rompeu com a tradição do sistema brasileiro, dando nova roupagem ao direito sucessório, extinguindo o direito ao usufruto vidual e adotando em lugar deste, o instituto da concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes e do cônjuge com os ascendentes. Ocorre que a previsão da concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes, no inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil, foi vinculada ao regime de bens do casamento. Assim, o legislador ao passo que estabeleceu ser a regra, para as sucessões abertas, a partir de então, a concorrência do cônjuge à parte do acervo hereditário juntamente com os descendentes,

REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 - DOUTRINA - 207 frisou que esta não incidiria sempre. Expressamente restaram excluídos da concorrência sucessória aqueles cônjuges casados pelos regimes da comunhão universal de bens e pelo da separação obrigatória de bens. Não se fez menção alguma aos regimes da separação convencional e ao da participação final dos aquestos. E, no que tange ao regime da comunhão parcial de bens, ficou clara que a observância da sucessão do cônjuge concorrendo à parte do acervo hereditário, estaria condicionada a existência ou não de bens particulares, mas não fora colocado claramente se a concorrência deve haver na hipótese de haver bens particulares do de cujus ou o contrário. Desta feita, diante de uma norma de redação tão confusa, é compreensível a existência de polêmicas em torno do inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil, polêmicas estas que consubstanciaram a constituição de quatro diferentes correntes de interpretação a respeito da aplicação da regra da concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes. Analisando-se os fundamentos de cada uma das correntes de interpretação tratadas, afirma-se que melhor e mais adequada parecer ser aquela que brota do entendimento que foi preconizado no Enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil, in verbis: Enunciado 270 Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes. Frisa-se que esta interpretação, melhor reflete a intenção do legislador, que, com a introdução do instituto da concorrência sucessória, buscou conceder maior amparo ao cônjuge sobrevivente. É curial aqui, vislumbrar que a escolha pelo regime legal, qual seja, o da comunhão parcial de bens, implica, então, diverso destino ao patrimônio dos cônjuges a depender da forma através da qual o matrimônio será

208 - DOUTRINA - REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 dissolvido. Desse modo, caso seja o casamento dissolvido em razão do divórcio, as tradicionais regras de tal regime de bens permanecerão válidas, sendo certo que caberá a cada um dos ex-cônjuges somente metade do acervo patrimonial constituído ao longo do casamento. Diferentemente, se a morte de um dos cônjuges vier a dissolver a relação matrimonial, ao sobrevivente caberá também parte dos bens particulares, se houver, concorrentemente com os descendentes. Logo, entende-se que essa corrente deverá prevalecer, por ser aquela que se apresenta de maneira mais coerente com a evolução do Direito sucessório, na busca por garantir amparo material ao viúvo ou viúva, após o passamento do seu cônjuge. DIFFERENCES IN INTERPRETATION OF CLAUSE I, ARTICLE 1829 OF DC ABSTRACT: Changing the tradition of Brazilian Law, the Civil Code of 2002 gave a new direction to the rules of succession hereditary, notably by providing that the surviving spouse will compete with the descendants of the deceased. Occurs, however, almost ten years after the edition of this new Civil Diploma, there are still many divergences about this tema. That divergences arise because of unclear wording of the clause I, of article 1.829 of the Civil Code, a device that regulates the cited succession competition. So is several doctrinal currents offer different readings of the device, creating doubt and uncertainty among law professionals and among the population, about the way it will be made the division of properties when there are to succeed the surviving spouse and the descendants of the deceased. KEYWORDS: Succession Law. Competition Succession. Clause I of Article 1.829 of the Civil Code. Surviving spouse. Descendants. Property regimes. Doctrinal interpretations. Notas 1 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil: direito das sucessões. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. v. 6. p. 156. 2 DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 140. 3 HIRONAKA, 2003 apud DIAS, 2010, p. 140.

REVISTA DA EJUSE, Nº 22, 2015 - DOUTRINA - 209 REFERÊNCIAS CHIARINI JUNIOR, O ponto-e-vírgula do art. 1.829, I do CC. Jus Navegandi, Teresina, ano 8, n. 66; jun. 2003. Disponível em <http:jus. uol.com.br/revista/texto/4178>. Acesso em: 03 jun. 2011. Código Civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. Antonio Claudio da Costa Machado (org.); Silmara Juny de Abreu Chinellato (coord.). Barueri, SP: Manole, 2008. DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v.6. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: sucessões. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil: direito das sucessões. 3 ed. São Paulo: Método, 2010. v.6.