Palavras-chave: Incosntituicionalidade. União Estável. Código Civil 2002.

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Transcrição:

ASPECTOS SUCESSÓRIOS DA UNIÃO ESTÁVEL:A INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 1.790 E 1.845 DO CÓDIGO CIVIL Matheus Alves Oliveira Souto Graduando no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e-mail: aalves.matheus@gmail.com Peterson da Silva Rentzing Graduando no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e-mail: rentzingpeterson@gmail.com Jerônimo Rosado Cantídio Neto Graduando no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e-mail: jeronimorcn@gmail.com O presente artigo aborda a suposta inconstitucionalidade do atual direito sucessório das pessoas que vivem em união estável, sobretudo após a entrada em vigor do Código Civil de 2002. Este possui o respaldo técnico na melhor doutrina que trabalha o assunto e nos entendimentos jurisprudenciais das Cortes deste país. Um dos méritos alcançado pela Carta Política vigente foi dar prioridade a promoção pessoal do indivíduo em prejuízo de interesses puramente patrimonialistas. Aliás, esta é uma tendência engendrada e crescente no atual desenvolvimento do Direito Civil Constitucional brasileiro. Levando-se em consideração este elemento finalístico, foi que se modificou a nomenclatura de concubinato para união estável, tendo como escopo precípuo apartar de uma vez aquele instituto de direito obrigacional carregado de preconceito, uma vez que sempre foi tratado à margem da legislação. Ademais, fica evidenciado que, todas as normas contidas no art. 1.790 do Código Civil que diferenciam a sucessão dos companheiros daquela vivenciada entre os cônjuges unidos sob o regime da comunhão parcial padecem de evidente inconstitucionalidade material, por violação do princípio da isonomia contido do art. 5 da Constituição Federal de 1988, também desrespeita o postulado da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da nossa república, na forma do art. 1º, III, da Lei Maior. Palavras-chave: Incosntituicionalidade. União Estável. Código Civil 2002.

I Introdução Preliminarmente, faz-se necessário mencionar que a união estável não é uma forma de convivência familiar recente. Muito antes deste instituto ser reconhecido pela atual Constituição Federal e regrado pelo Direito Familiar, esta já era exercida por inúmeros casais, apesar de possuir outra denominação: concubinato. As relações familiares eram regidas na época pelo Código Civil de 1916, onde somente era admitido o casamento como única forma de entidade familiar. O mesmo entendimento foi adotado na Carta Magna de 1967, em seu art. 167, através da inserção da Emenda Constitucional n. 69, perdurando até a promulgação da Carta Política de 1988. Destarte, se pode observar que a união estável, anteriormente denominada concubinato, sempre foi praticada. Contudo, nunca possuiu respaldo legal, podendo dizer o mesmo da tutela sucessória neste assunto. Demais disso, a Constituição Federal de 1988 tentou encerrar a desigualdade que sempre existiu com relação ao matrimônio e o antigo concubinato. O argumento do legislador originário constituinte era de que não havia motivo algum para haver tal distinção entre ambas as formas de constituição familiar, tendo em vista que a função do texto legal é somente de proteger as relações entre pessoas e não de prejudicar como assim era feito com as normas anteriores. Não se pode esquecer outrossim que, tal norma constituinte hodierna foi promulgada com o intuito principal de adequar o texto constitucional à evolução social existente, e assim o fez. A equiparação do casamento com o instituto familiar da união estável trouxe para o Direito inúmeras correntes de entendimentos. A título de exemplo, a doutrinadora Ana Luiza Maia Nevares entende que a Constituição Federal atual, em seu art. 226, ao determinar que a família, base da sociedade, tem especial proteção estatal, concebendo o referido instituto de forma plural, estabeleceu mais de um modo de constituição de família. Assim, segundo esta, uma vez que reconhecidas outras formas de constituição de família (união estável, família monoparental, entre muitas outras), o casamento perde, definitivamente, o seu papel de único legitimador do núcleo familiar. Diferentemente do posicionamento acima, o professor Washington de Barros Monteiro: entende de forma clássica, afirmando que de concessão em concessão, chegar-se-á ao aniquilamento da família tradicional, não deixando, porém, de reconhecer a união estável como forma legítima e constitucional de convivência familiar.

Tomando por base a existência constitucional e legal da união estável, necessitava esta de uma regulamentação legal, e assim foi feito com a elaboração e vigência das Leis n. 8.971/94 e 9.278/96. Com o advento de tais normas, a pessoa do companheiro ficou protegida legalmente, principalmente com relação ao seu direito sucessório. O conflito surgiu com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 que tratou da situação da união estável de forma muito superficial, diversamente do que se esperava, pois se vislumbrava uma grande evolução, o que não aconteceu, pelo menos no que tange à tutela sucessória da união estável. Tal norma ao invés de manter ou até mesmo ampliar este direito, fez exatamente o contrário, prejudicando o direito do companheiro sobrevivente em comparação com o do cônjuge. Da análise do artigo 1790 do Código Civil de 2002, que menciona o direito sucessório dos companheiros, visível é a injustiça praticada por parte do legislador originário deste texto civilista em comparação com o tratamento do direito sucessório dispensado aos cônjuges. Tal afirmativa se dá pelo fato da concorrência com outros parentes sucessíveis do de cujus ser muito maior no caso de união estável, dificultando o alcance no patrimônio devido a título de herança. Deste problema, surge, portanto, um grande retrocesso, tendo em vista que se esperava tal revolução jurídica no Direito Privado com a entrada do Código Civil de 2002, colocando-se, pois, um ponto final nas questões controvertidas existentes na vigência do diploma civilista anterior. Entretanto, isso não ocorreu, pelo menos no que diz respeito à união estável, uma vez que o atual legislador se ateve somente às formalidades matrimonialistas já existentes, inclusive no Código Civil de 1916. Podemos mencionar que o diploma civilista de 2002, de uma forma geral, apesar de ser bastante didático e de melhor compreensão que o anterior, despreocupou-se em solucionar temas atuais. Em apertada síntese, o seu objetivo foi regular tópicos que não ensejassem em possíveis inconstitucionalidades materiais, deixando de regular de maneira correta os assuntos do nosso cotidiano, como por exemplo, o direito sucessório dos companheiros. Este assunto se torna importante para demonstrar a desigualdade jurídica existente entre as pessoas que contraem matrimônio, daquelas que vivem em união estável, principalmente em comparação com o direito sucessório.

O presente texto visa, também, demonstrar a mudança de pensamento da jurisprudência, já existente na doutrina, com relação a tutela sucessória dos companheiros. Seria injusto afirmar que o Código Civil de 2002 não teria tratado da união estável e do seu direito sucessório, no entanto, tal legislador deixou de observar o texto constitucional, onde por meio deste seria possível a adoção de um tratamento isonômico entre o cônjuge e companheiro, como veremos a seguir. II Considerações gerais acerca da sucessão na união estável Após seu reconhecimento como entidade familiar pelo 3º do art. 226 da Constituição Federal, em 1988, a união estável atravessou um período de vácuo legislativo, sem que houvesse disciplina legal minuciosa a respeito do tema. Seus aspectos sucessórios, da mesma forma, eram solenemente ignorados pelo Direito positivo. A lei nº 8.971/94 foi a primeira a quebrar o silêncio legal, ainda que de forma perfunctória, ao tratar de dois pontos relativos à união estável: o direito aos alimentos e a sucessão. Seu art. 2º criou para o companheiro o direito real de usufruto sobre os bens deixados pelo de cujus, na seguinte proporção: havendo filhos, o companheiro teria direito ao usufruto sobre um quarto dos bens; não havendo, mas se ainda fossem vivos os ascendentes do que faleceu, o usufruto se estenderia à metade do bens. O inciso III do art. 2º ainda previa que a totalidade da herança na falta de ascendentes ou descendentes. Por fim, seu art. 3º determinava que os bens adquiridos com colaboração do companheiro (ou seja, aqueles em que houve esforço comum) conferiam-lhe o direito de meação. É certo que a própria compreensão da união estável enquanto entidade familiar era substancialmente mais restrita à época do que é hoje. Basta ver que o art. 1º da supracitada lei exigia, para que o companheiro sobrevivente fizesse jus aos direitos sucessórios nela elencados, que a relação de convivência houvesse durado ao menos cinco anos ou que os conviventes tivessem filhos comuns. O hodierno conceito de união estável prescinde totalmente da demonstração desses requisitos, já que o art. 1.723 do Código Civil não faz referência a uma duração mínima da relação ou à necessidade de existência de prole (PEREIRA, 2012, p. 47). Não obstante, malgrado o atraso conceitual que marcava o regime da lei nº 8.971/94, a proteção sucessória que conferiu ao companheiro estável era significativamente maior que a existente no Código Civil em vigor.

Posteriormente, a lei nº 9.278/96 avançou bastante no tratamento da matéria, buscando regular a união estável como um todo e não apenas seus aspectos sucessórios ou direitos alimentícios, a que se limitou a lei nº 8.971/94. Já no seu art. 1º verifica-se uma definição mais flexível do instituto, eliminando a menção ao prazo mínimo de duração ou à existência de filhos, e elencando como requisitos para seu reconhecimento a convivência duradoura, pública e contínua e a finalidade de constituir família. A dicção normativa do art. 1º já é próxima, aliás, da do art. 1.723 do Código Civil atual. No que se refere à sucessão, por outro lado, o regime da lei nº 9.278/96 foi mais sucinto sem, contudo, revogar as disposições da lei anterior. O diploma legislativo restringiu-se, no parágrafo único de seu art. 7º, a estabelecer o direito real de habitação para o companheiro sobrevivente, sobre o imóvel em que se fez a residência da família. Tal direito seria extinto se o companheiro constituísse nova união estável ou viesse a se casar. Com a entrada em vigor da Codificação de 2002, imbuída de preceitos éticos e sociais, era de se esperar que companheiro supérstite obtivesse tutela legal no mínimo igual à criada pela interpretação sistemática das leis nº 8.971/94 e 9.278/96. No entanto, em um atraso ímpar e desperdiçando preciosa chance de acompanhar a evolução da sociedade, o Código Civil resolveu dispensar à sucessão na união estável tratamento totalmente retrógrado. Primeiramente, ao tratar dos herdeiros necessários, o seu art. 1.845 limitou-se a listar os descendentes, os ascendentes e o cônjuge silenciando, pois, quanto ao companheiro. Isso significa, dentre outras coisas, que inexistindo qualquer dessas pessoas (e não havendo testamento), a herança poderá ser considerada jacente e reverterá em favor do Estado, mesmo que o de cujus tenha deixado companheiro vivo. Este pode ser, assim, totalmente excluído da sucessão; para o cônjuge, por outro lado, inexiste esse risco. Nem há como dizer que o art. 1.845 merece interpretação extensiva, por ter o legislador dito menos que gostaria. A opção legislativa de excluir o companheiro do rol dos herdeiros necessários é claríssima, até porque a sucessão na união estável é regrada através de outro dispositivo legal. O Código criou, assim, dois regimes sucessórios distintos: o do casamento e o da união estável, sem considerar a redação conglobante do art. 226 da Constituição Federal. Por conseguinte, além de inspirar revolta pela discriminação que faz, o tratamento legal ostenta caracteres de inconstitucionalidade tema a que se voltará no tópico 4, infra.

A sucessão na união estável é regida, basicamente, pelo art. 1.790 do Código Civil, que contém os delineamentos principais da matéria, de modo se que passará agora a sua análise. III A sistemática do art. 1.790 do Código Civil O retrógrado art. 1.790 estabeleceu uma enorme limitação objetiva (ou seja, em relação aos bens a que o companheiro poderá concorrer) na sucessão. Conforme seu caput, apenas no que se refere aos bens adquiridos onerosamente e na vigência da união estável é que há direito sucessório e, mesmo assim, nas estreitas condições constantes de seus incisos. Impende, primeiramente, reproduzir o texto legal, para em seguida proceder-se ao seu estudo mais detido: Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocarlhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Dentre todo o patrimônio do de cujus, pois, deve ser destacada apenas uma parte a dos bens adquiridos onerosamente na constância da união sobre a qual concorrerá o companheiro sobrevivente. Se nenhum bem atender a esses requisitos (sendo fruto, por exemplo, de uma doação ao casal, ou comprado pelo falecido antes de iniciada a convivência), o companheiro supérstite nada receberá a título de herança. É certo que a disciplina do art. 1.790 não exclui seu direito à meação, que permanece incólume. Não obstante, a meação depende de patrimônio comum, que, no regime de bens da comunhão parcial (que é o regime supletivo da união estável, não havendo contrato entre os conviventes), é identificado por critérios bastante semelhantes aos contidos no caput do art. 1.790.

Há algumas diferenças, é claro; os frutos dos bens particulares percebidos durante a união, por exemplo, integram o patrimônio comum (art. 1.660, inciso V, do Código Civil), mas não a parcela a que o companheiro terá direito em caso de sucessão. O mesmo ocorre com os bens adquiridos por fato eventual (inciso II) e por doação, herança ou legado em favor do casal (inciso IV), que entram no patrimônio comum (sobre o qual recai a meação) mas não no passível de sucessão. Contudo, a hipótese do inciso I do art. 1.660 (a aquisição onerosa de bens na constância da união) é sem dúvida a mais importante para a formação do patrimônio comum, já que tende a concentrar, na vida prática, maior valor financeira. Dessa forma, é bastante provável que, se nenhum dos bens do de cujus se enquadrar nos requisitos do art. 1.790 (quais sejam, aquisição onerosa e na vigência da relação), também não haverá meação a ser deferida ao companheiro supérstite (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 517). Este poderá, assim, restar totalmente desamparado financeiramente pela morte da pessoa com quem construíra uma vida, até mesmo em casos de longuíssima convivência se, é claro, nenhum bem de valor relevante tiver sido adquirido onerosamente nesse período. Considerando o cenário socioeconômico brasileiro, é fácil perceber que tal situação não é de ocorrência incomum. Uma vez constatada a existência de patrimônio que atenda ao disposto no caput do art. 1.790, inicia-se a aferição das condições extremamente desiguais e prejudiciais, diga-se de passagem em que o companheiro sobrevivente concorrerá na sucessão. Cabe, aqui, uma breve digressão, com o intuito de demonstrar as gritantes diferenças entre os regimes sucessórios do cônjuge e do companheiro. No casamento, o cônjuge concorre em igual proporção com os descendentes do de cujus, não importando se os filhos são comuns ou apenas daquele, à luz do que dispõe o inciso I do art. 1.829 do Código. Na união estável, por outro lado, tal sistema só se faz presente quanto aos filhos comuns do casal, de acordo com o inciso I do art. 1.790. Apenas nessa situação é que há relativa igualdade entre os aspectos sucessórios do casamento e da união estável apenas relativa, já que no casamento não há a esdrúxula limitação contida no caput do art. 1.790. O inciso II do mesmo artigo, por sua vez, aduz que se o de cujus tiver deixados filhos exclusivamente seus, o companheiro receberá somente metade do quinhão que lhes couber. A discriminação não é compreensível mesmo diante da necessidade de garantir a subsistência dos filhos. Afinal, estes já concorrem à totalidade do patrimônio (e não apenas aos bens adquiridos onerosamente na

vigência da união estável do falecido), o que lhes assegura condições de sobrevivência ao menos abstratamente melhores que a do companheiro, que apenas concorrerá a uma parcela restrita dos bens. No entanto, a restrição mais ilógica é certamente a do inciso III do art. 1.790. Segundo o dispositivo, havendo outros parentes sucessíveis, o companheiro terá direito a apenas um terço da herança. O problema é que, conforme o art. 1.839 do Código podem ser chamados à sucessão os parentes do de cujus até o quarto grau na linha colateral. Isso significa, por exemplo, que, havendo um tio-avô do falecido (parente em quarto grau), este receberá dois terços dos bens que se enquadram no caput do art. 1.790 (os adquiridos onerosamente na constância da união estável). O companheiro, por outro lado, receberá apenas um terço desses bens, o que corresponde à metade do que foi herdado pelo distante parente. O regime legislativo, aqui, já não encontra qualquer justificativa plausível. Se as desigualdades legais entre casamento e união estável já são de questionável constitucionalidade, em virtude do art. 226 da Constituição Federal, é ainda mais reprovável o privilégio atribuído ao longínquo parentesco em quarto grau em detrimento da íntima, direta e afetiva relação de união estável. Os infelizes aspectos do art. 1.790 não terminam nas limitações de seu caput ou nas precárias condições previstas para o companheiro em seus incisos. O dispositivo peca, também, pelo silêncio, excluindo tacitamente o convivente de uma série de outras garantias que o Livro das Sucessões outorga ao cônjuge. Além disso, ao aduzir que a sucessão do companheiro se regerá por suas disposições, o art. 1.790 parece querer impedir o emprego da analogia ou da interpretação extensiva para que incidam, também, os mesmos direitos assegurados ao cônjuge. O art. 1.832, por exemplo, garante ao cônjuge o mínimo de um quarto da herança ao concorrer com os filhos comuns do casal hipótese que tem aplicação quando houver mais de três filhos comuns, por certo. Quanto ao companheiro, por outro lado, não há qualquer disposição legal nesse sentido, o que dilui sua participação na herança em casos de prole numerosa. Já o art. 1.831 confere apenas ao cônjuge o direito real de habitação quanto ao imóvel de residência da família, silenciando quanto ao companheiro. O curioso é que o vetusto regime da lei nº 9.278/96 previa o mesmo direito no âmbito da união estável; o Código Civil, que supostamente deveria ser mais avançado e protetivo, não atribuiu ao companheiro igual prerrogativa. Não obstante, como não houve revogação expressa do parágrafo único do art. 7º da lei nº 9.278/96, é possível compreender que o direito real de habitação ainda se

encontra garantido ao companheiro do de cujus. Isso porque não parece ter ocorrido revogação tácita do dispositivo, já que o Código Civil não regulou inteiramente o tema mas apenas silenciou sobre ele (DIAS, 2005, p. 176). Os tribunais, felizmente, tem entendido dessa maneira ainda que, por vezes, com fundamentos diferentes, interpretando extensivamente o supracitado art. 1.831 e desconsiderando a dicção restritiva do art. 1.790. Confira-se, nesse sentido: O direito real de habitação visa a garantir ao cônjuge sobrevivente, independente do regime de bens, o direito de habitar o imóvel destinado à residência da família, desde que seja único a inventariar. Em se tratando de união estável, embora inexista no Código Civil vigente, previsão sobre o direito de habitação do companheiro sobrevivente, a ele devem ser estendidos os benefícios do artigo 1831 do CC. É importante salientar que, já que não se trata de sucessão propriamente dita, não incide o ITCD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos) sobre o direito real de habitação, como já reconheceu a jurisprudência. Em virtude das múltiplas limitações existentes no regime legal acima analisado, é comum que seja considerado inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil (DIAS, 2011, p. 190); igual raciocíno deve ser imposto ao 1.845. O tema será estudado com mais vagar no tópico seguinte. IV A inconstitucionalidade dos dispositivos por tratamento desigual O princípio da igualdade foi consagrado na Constituição Federal de 1988 em seu art. 5, determinando que todos são iguais perante à lei. Esse princípio é fundamental para a Democracia. Desta forma, não basta a igualdade formal, mas deve se buscar a igualdade material, sendo imprescindível que se considere todos igualmente, ressalvando as suas desigualdades. José Afonso da Silva ensina que as nossas constituições, desde o Império, utilizaram a expressão igualmente perante à lei para expressar com o princípio da igualdade, onde a literalidade expressa a (...) isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam igualmente, sem levar em conta distinções de grupos. A

compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais (...), e, especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social. Considerá-lo-emos como isonomia formal para diferenciá-lo da isonomia material. Assim, esse princípio não está vinculado somente ao legislador, mas ao interprete também, onde da mesma forma que a lei não pode determinar privilégios, na aplicação da norma, o juiz não pode interpretar a lei de forma a gerar desigualdades. Mesmo havendo uma aparente igualdade de direitos entre os cônjuges e companheiros estabelecida pela Carta Magna, o legislador civilista atual se preocupou integralmente com a sucessão dos cônjuges (art. 1829 e 1845), elevando, inclusive, o cônjuge à figura de herdeiro necessário. Dessa forma, é possível notar que, mais uma vez, o que se busca com o tratamento desigual posto é proteger o instituto do casamento mediante a elaboração de preceitos que confiram tratamento inferior aos não casados, restando claro o preconceito de que está eivada a norma infraconstitucional. Noutras palavras, prestigia-se a formalidade legal em detrimento da realidade da vida. Contudo, diante deste contexto, uma pergunta emerge aos que se debruçam sobre o tema: este tratamento normativo diferenciado encontra amparo na Lei Maior? Não, como adiante se explica. Certamente, muito mais justa e racional teria sido a norma infraconstitucional se tivesse atribuído à união estável tratamento jurídico idêntico ao conferido àqueles que se casam sob o regime da comunhão parcial, inclusive, no que se refere à sucessão. Além disso, registre-se que a aplicação das normas discriminatórias do art. 1.790 do Código Civil, em prejuízo do companheiro (a) sobrevivente, além de violar o princípio da isonomia contido do art. 5 da Constituição Federal de 1988, também desrespeita o postulado da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da nossa república, na forma do art. 1º, III, da Lei Maior. É o que se infere a partir de interpretação sistemática do texto constitucional, homenageando-se princípios e garantias fundamentais, que devem se sobrepor a quaisquer outras normas no nosso Estado de Direito. Em síntese, é possível concluir sem rodeios que as todas as normas contidas no art. 1.790 do Código Civil que diferenciam a sucessão dos companheiros daquela vivenciada entre os cônjuges unidos sob o regime da comunhão parcial padecem de

evidente inconstitucionalidade material, por violação aos princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana. V - Conclusão A nossa atual norma civilista é bastante objetiva e atende a diversas situações jurídicas importantes ao nosso dia-a-dia. Entretanto, com relação ao tratamento da união estável reconhecida pela nossa Constituição Federal de 1988 e ao seu direito sucessório, esta deixou a desejar, uma vez que impõe diversas barreiras ao alcance dos bens deixados pelo de cujus companheiro. Felizmente, a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil de 2002 vem sendo reconhecida por alguns Tribunais Estaduais, que estão de aplicá-lo tendo em vista tamanha injustiça nele incorporado. Espera-se assim que, num futuro próximo, as Cortes Superiores venham a ratificar tal posicionamento, muito mais benéfico e justo aos conviventes. Referências DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.. Manual das Sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2014. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. NEVARES, Ana Luíza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do direito civil. Vol VI. Direito das sucessões. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012

SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Maleiros Editores, 2013. Sucessão na união estável: a inconstitucionalidade na concorrência sucessória entre companheiro sobrevivente e parentes colaterais. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/5875/1/2013_marielerodriguesgarcia.pdf.acesso em 12/12/2014