A IDÉIA DE PAZ NA MONARQUIA DE DANTE ALIGHIERI. A passagem acima foi retirada das Confissões de Santo Agostinho, especificamente do



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Transcrição:

A IDÉIA DE PAZ NA MONARQUIA DE DANTE ALIGHIERI Maria Eugenia Bertarelli Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal Fluminense [Deus]...é a vossa santidade que nos eleva por amor da tranqüilidade, para que levantemos os corações ao alto até junto de Vós, onde o vosso Espírito paira sobre as águas, e, para que cheguemos à excelsa paz, depois de a nossa alma ter atravessado as águas desta vida, que nada têm de firme. i A passagem acima foi retirada das Confissões de Santo Agostinho, especificamente do livro XIII intitulado A Paz. Neste trecho, o santo doutor da Igreja católica manifestava o sincero desejo de se elevar para junto de Deus e, após suportar as privações impostas pela vida mundana, finalmente alcançar a paz eterna. No pensamento agostiniano a idéia da paz perfeita aparecia associada ao estado de beatitude plena que a alma experimenta ao aproximar-se da divindade. Sabemos que Santo Agostinho foi um dos primeiros teólogos da Igreja católica a formular as bases da doutrina cristã reinante ao longo de grande parte da Idade Média. Em virtude disso, considero interessante para um estudo sobre o pensamento de Dante Alighieri levar em conta sua inserção nesta tradição filosófica. A respeito da idéia de paz, encontramos na obra de Dante uma aproximação às concepções agostinianas reveladas no trecho citado inicialmente. Na Divina Comédia, o poeta florentino apresenta a verdadeira paz como sendo o estado de pureza e tranqüilidade encontrado junto a Deus no paraíso celestial. Observemos um exemplo disso no canto XXI do Purgatório, enquanto Dante e seu guia caminham pelo quinto terraço, entre os avarentos. Ali, os viajantes encontram o poeta Estácio, com quem trocam as seguintes palavras: Irmãos, que Deus vos dê a salvação! A essa voz nos volvemos, e Virgílio, rendendo-lhe a adequada saudação, tornou-lhe assim: Que o máximo concílio 1

te outorgue a paz final e verdadeira, pois que a mim me retém no eterno exílio. ii Com este cumprimento, Virgílio deseja a Estácio a paz final e verdadeira que um dia desfrutaria, visto que as almas, ao sofrerem os castigos do Purgatório, encontravam-se a caminho da bem-aventurança. Ao contrário do que acontecerá a Estácio, o autor da Eneida jamais alcançará a graça da paz celestial já que no Limbo padecerá por toda a eternidade. No diálogo entre estes dois grandes mestres da antiguidade, Dante Alighieri apresenta a paz em termos semelhantes àqueles referidos por Santo Agostinho e que marcaram a filosofia cristã durante grande parte da Idade Média. A busca por esta paz celestial caracterizou o desejo do homem medieval. Contudo, é preciso compreender que, para Dante, parecia impossível atingir a plenitude celeste se a humanidade não desfrutasse da tranqüilidade que cria as condições para a especulação que conduz até o estado de glória. O poeta não se referia apenas à graça alcançada após a morte, almejada por Agostinho, mas à paz na terra para que toda a humanidade pudesse se dedicar livremente ao desenvolvimento da especulação espiritual. Assim, a paz final e verdadeira devia ser precedida por uma paz terrena entre os homens. Com efeito, encontramos em sua obra uma profunda preocupação com a falta de harmonia que reinava no mundo e que impedia a humanidade de se concentrar nos assuntos sagrados. Esta preocupação aparece claramente em seu tratado de filosofia política escrito por volta do ano 1310, intitulado Monarquia iii. Neste tratado, Dante busca uma solução para alcançar a paz na terra e pôr fim às guerras e conflitos que se espalhavam por toda a Europa, principalmente pela península itálica. Segundo o modelo defendido pelo autor da Monarquia, para resolver estas disputas não bastaria apenas a ação da Igreja, responsável por cuidar da orientação e salvação das almas dos cristãos. Seria necessário um poder temporal que atuasse no mundo para conter a 2

violência disseminada entre os homens. Neste sentido, o poeta se lança em uma apaixonada defesa do Império, única autoridade, segundo ele, capaz de restabelecer a paz e conter a desordem reinante na Cristandade. Dante justifica tal afirmação argumentando que somente o imperador poderia ministrar a justiça entre os homens e, assim, gerar a paz na terra. No primeiro livro do tratado, o autor observa que, para isso, seria necessário que existisse em toda parte um tribunal para resolver qualquer litígio que pudesse aparecer na sociedade. Todo litígio deveria ser resolvido por um juiz superior e acima de ambas as partes em conflito. Desta forma infere que, se o desentendimento ocorresse entre dois príncipes que se encontram em igualdade hierárquica entre si, seria necessária a existência de um terceiro príncipe, que, como juiz primeiro, resolveria as desavenças com justo entendimento. Este seria o Monarca ou Imperador. Para Dante, com o Monarca temporal a justiça é perfeita ou pode vir a sê-lo. Isto porque apenas ele, em todo o universo, estaria livre da cupidez, posto que já possui tudo e nada mais é capaz de corromper-lhe a alma. Ou seja, como o imperador estava acima de todos os príncipes, superando-os em poder, não poderia desejar nada mais a não ser o bem-estar de seu povo. Quando nada pode ser já apetecido, impossível se torna a cupidez, por isso que as paixões não podem sobreviver ao desaparecimento do seu objeto. Nada existe que possa eximir-se a ser objeto do Monarca, porquanto a jurisdição deste termina no oceano. (Monarquia, pp 198) iv Assim, observamos que a discussão contida na Monarquia contempla um ideal de paz compreendido como resultado da ação política de um governante que sabe promover a justiça acima de quaisquer conflitos, e a cujo poder todos deviam se submeter para garantir a justiça e a paz no mundo. Ë interessante pensarmos que a submissão ao Monarca universal somente seria legítima se o súdito reconhecesse nele a autoridade que poderia guiar a humanidade ao seu fim. Para tanto, ela deveria conhecer este fim e colaborar no sentido de atingi-lo. Assim, a matéria política 3

não seria, no entendimento de Dante, responsabilidade apenas do Monarca, mas de todo o gênero humano. Poderíamos pensar que o autor acreditava na importância de sua obra para, como ele mesmo escreveu, elucidar proveitosamente o mundo, isto é, dar a conhecer aos homens o fim, ou melhor, os fins para os quais se ordena a humanidade a fim de que todos pudessem colaborar com o Monarca para alcançá-los. A questão do duplo fim da humanidade é apresentada por Dante especialmente no terceiro e último livro da Monarquia. De acordo com o autor, somente o homem seria formado por uma essência corruptível e outra incorruptível, ou seja, apenas os seres humanos são constituídos de corpo e alma. Caracterizar-se-ia, assim, como um ser que está no meio dos dois hemisférios, participando dos meios corruptíveis e incorruptíveis. Cada homem comporta em si as duas naturezas que convém a sua existência dupla. E, como toda a natureza está ordenada a um fim último, infere-se que o homem é o único entre todos os seres que possui dois fins, um que lhe pertence como ser corruptível e outro que lhe pertence como ser incorruptível. É interessante notarmos o valor da distinção feita no tratado entre a finalidade própria do homem enquanto ser corruptível e sua finalidade enquanto ser incorruptível. A primeira está no mundo e visa alcançar o paraíso terrestre, a segunda, voltada para o além, visa atingir a salvação eterna no paraíso celeste. Assim, Dante estabelece duas finalidades específicas ao gênero humano, e por não serem idênticas, atingem-se por meios distintos. Chegava-se ao que ele chamou de primeira beatitude, ou seja, àquela que se atinge ainda nesta vida, através de doutrinas filosóficas, desde que, todavia, sigamos os ensinamentos destas e exercitemos as virtudes morais e intelectuais. (Monarquia pp, 231). Chegaria-se à segunda beatitude, isto é, à existência eterna e feliz após a morte, por meio das doutrinas espirituais, desde que as ponhamos em prática com o auxílio das virtudes teologais, fé, esperança e caridade. (Monarquia pp 231) Tais virtudes excedem a razão humana e, portanto, deviam ser cultivadas com o auxilio da Santa Madre Igreja, através da qual se 4

revela o conhecimento da verdade sobrenatural de que carecemos por meio dos Profetas e Hagiógrafos. (Monarquia pp, 231) Dante, então, conclui seu raciocínio afirmando que seriam necessárias duas autoridades para o governo do gênero humano; o Pontífice romano que, por meio do conhecimento revelado, guia o homem à vida eterna e o Imperador que, por meio de doutrinas filosóficas, o conduz à felicidade temporal. O poeta, contudo, adverte para o perigo de compreendermos esta tese de maneira restrita concluindo, erroneamente, que o príncipe romano não deve submissão, de nenhuma espécie, ao Sumo Pontífice. De fato, Dante declara que a felicidade mortal estava ordenada, de certo modo (quodammodo), para a imortal. Ou seja, o poeta como cristão acreditou na completa realização da paz perfeita apenas junto de Deus. No Convívio v encontramos referências à boa felicidade e à ótima felicidade que é melhor porque consiste na suma beatitude. Apesar de afirmar que a felicidade eterna era óptima, porque consistia na suma beatitude, enquanto a felicidade mortal era apenas boa creio que um ponto relevante do tratado seria a possibilidade de uma percepção da existência terrena que adquiria status próprio na trajetória para atingir a iluminação supranatural. Dante fala em alcançar a beatitude em vida, este devia ser o fim desejado pela alma enquanto ela ainda carregava sobre si o peso do corpo. É interessante ressaltar que o autor constrói seu raciocínio em dois níveis: as naturezas corruptível e incorruptível do homem. A parte incorruptível buscaria a beatitude na paz eterna, ajudada pela luz divina. A ascensão da alma se iniciaria ainda neste mundo, estendendo-se até o paraíso celeste. Neste nível, devemos cultivar as virtudes cristãs, buscando controlar os instintos e permanecer no caminho de Deus. Dotado de liberdade, o homem decide pela sua salvação e deve trabalhar para conquistá-la. A idéia do livre-arbítrio definida por Dante como o juízo livre que emana da vontade possibilita ao homem uma participação na escolha de seu fim, e implica um esforço 5

para alcançá-lo. A atuação no mundo seria relevante na busca do fim que a Divina Providência deu à natureza incorruptível. Num outro nível, o homem deve participar do mundo buscando agir nele para atingir um objetivo que é terreno. A natureza corruptível busca um fim que se esgota nesta vida e que consiste no exercício da própria virtude. A ação política garante as condições necessárias para que esta virtude se desenvolva. Dante estabelece a atuação do homem em um campo que não estaria estritamente vinculado à salvação da alma, e, portanto, ao fim religioso, mesmo que deste fim não esteja desvinculado. Ele define um espaço terreno no qual o homem possuiria um papel essencial. Segundo Kantorowicz vi, Dante se inspirou em Aristóteles para atribuir à comunidade humana um fim ético-moral que era fim em si mesmo, era paraeclesiástico. O historiador afirma que a dualidade de valores estabelecida na Monarquia não foi absolutamente desconhecida entre os juristas da época, os quais sustentavam que a universitas era um corpus morale et politicum paralelo ao corpus mysticum da Igreja. Mas, para Kantorowicz, Dante radicalizou esta distinção construindo uma monarquia universal auto-suficiente associada a um fim humano-imperial realizável no paraíso terrestre. É importante ressaltarmos que a distinção entre os dois fins apresentada na Monarquia não visava uma separação absoluta, mas, ao contrário, uma harmonia entre estes fins. Resumindo, poderíamos admitir que à Igreja caberia a função de zelar para que o homem alcance a paz de Deus em virtude de ela possuir a autoridade suprema no exercício do poder espiritual. A Igreja detém o monopólio das manifestações do sagrado no mundo e, por isso, é somente através dela que ele pode se manifestar. Apenas com a ajuda da Igreja pode o homem ter acesso às verdades da Sagrada Escritura que iluminam o longo caminho a ser percorrido até a salvação. 6

Observamos que o Império, na perspectiva defendida na Monarquia, deveria garantir a paz terrena, organizando a humanidade entendida como uma ordem temporal universal com um objetivo específico: atingir o paraíso terrestre. Para concluir, devemos considerar que apesar de participar de um universo tipicamente cristão e de ser um devoto fiel à Igreja, Dante se afastou da herança agostiniana que serviu de base à doutrina cristã ao longo da Idade Média. O bispo de Hipona havia criado uma distinção entre a Cidade de Deus e a Cidade Terrestre, afirmando a superioridade plena daquela em detrimento desta. Assim, ele defendia a primazia da vida contemplativa sobre a vida ativa, posto que era a maneira mais perfeita de se chegar à Cidade de Deus. A experiência na Cidade Terrestre era de natureza inferior e, por conseqüência, o homem devia procurar afastar-se, abstendo-se do mundo. Nas palavras de Santo Agostinho:...não vos conformeis com este mundo; abstende-vos dele. Se a alma evita o mundo, vive, e, se o busca, morre. vii Com efeito, se Dante jamais se opôs ao modelo agostiniano, visto que nunca abandonou a convicção de que a paz celeste seria de fato o estado de perfeição absoluta, e que o homem deveria nesta vida se dedicar à contemplação, certamente deixou de lado a oposição estabelecida por Santo Agostinho. Para o autor da Monarquia, a humanidade devia buscar a beatitude em vida, vista como um passo no longo caminho em direção à salvação. Dessa forma, devia buscar a paz terrestre, através da autoridade imperial, para dedicar-se à contemplação divina e, assim, conquistar a beatitude eterna no reino dos céus. i Agostinho, Santo. Confissões. 2ªed, São Paulo, Abril Cultural, 1980,p 262. ii DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia e S. Paulo Ed. da Universidade de S.Paulo, 1979. (Purgatório, canto XXI, versos 13 a 18), p.190. iii ALIGHIERI, Dante. Monarquia. (a cura de Maurizio Pizzica e introdução de Giorgio Petrocchi) Coleção I Clássici della Bur. Edição bilígue italiano-latim). Milão, Biblioteca Universale Rizzoli, Rizzoli Libri S.A, 1988. iv Original: Urbi ergo non est quod possit optari, inpossibile est ibi cupiditatem esse: destructis enim obiectis, passiones esse nom possunt. Sed Monarcha non habet quod possit optare: sua nanque iurisdictio terminatur Occeano solum: Dante Alighieri, Monarquia, pp188. v Dante Alighieri. Convívio. Guimarães Editores, Lisboa, 1992. vi KANTOROWICZ, Ernest H. Os Dois Corpos do Rei. Companhia das Letras, São Paulo, 1998. vii SANTO AGOSTINHO, Op Cit, p.275. 7