VOCÁBULOS TERMINADOS EM DITONGO NASAL: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE SOB A TEORIA DA MORFOLOGIA DISTRIBUÍDA

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Transcrição:

3308 VOCÁBULOS TERMINADOS EM DITONGO NASAL: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE SOB A TEORIA DA MORFOLOGIA DISTRIBUÍDA Cíntia da Costa Alcântara ( UFPel) Este trabalho tem por foco analisar a constituição de vocábulos não-verbais do português terminados em ditongo nasal -ão, a exemplo de irmão (/irman+o/), mão (/man+o/) como portadores de morfema de classe formal /o/, na linha de Bisol (1998). Na perspectiva da autora, que reinterpreta a hipótese de Câmara Jr. (1970), à luz da fonologia moderna, o ditongo nasal na subjacência deve ser interpretado como uma seqüência de segmento vocálico seguido de segmento consonântico nasal subespecificado para traços articulatórios, a tal seqüência é acrescido um marcador de classe (tradicionalmente uma VT) que assume a posição da nasal em coda. Este segmento, por sua vez, permanece flutuante e, durante a derivação, anexa-se à rima para nasalizar o ditongo que a vogal temática ajudou a construir (Bisol: op. cit.:27). Tal visão é de suma importância para a proposta ora apresentada, sob a teoria da Morfologia Distribuída, cujo locus clássico é Halle & Marantz (1993, 1994). À luz deste modelo teórico, os vocábulos não-verbais terminados em ditongo nasal são interpretados como membros de uma das cinco classes formais da língua e carregam, cada um deles, um morfema de classe formal (VT) à borda direita do vocábulo morfológico. Os dados apresentados fazem parte do corpus discutido em Alcântara (2003). Esses dados não sofreram tratamento quantitativo, foram organizados em listas não-exaustivas, constituindo-se, a partir dessas listas, as diferentes classes formais (na tradição, classes de declinação) seguindo a proposta de Harris (1999). Os resultados desta análise apontam para a pertinência do modelo teórico da Morfologia Distribuída no tratamento da constituição do ditongo nasal, corroborando assim a visão defendida por Bisol. No Quadro 1, ilustram-se as diferentes classes formais 1 do português I, II, III, IV e V. Embora o presente texto focalize os membros da Classe I terminados em -ão, que carregam, portanto, /-o/, seguem breves comentários sobre as cinco classes. 1 É empregada uma escrita fonológica para representar os membros de classe formal, listados como radical + morfema de classe formal.

3309 A Classe I, identificada pelo morfema de classe formal /o/ (cf. fogo, tribo, irmão (/irman+o/), mão (/man+o/)),é uma das maiores e mais produtivas do português. Carrega prevalentemente vocábulos masculinos, não obstante aí também se encontrem formas femininas. Nesta classe, assim como na classe II, estabelece-se uma correlação mais estreita entre gênero e classe formal. A classe II abriga todas as palavras acabadas na vogal /a/ (fada, sistema, irmã (/irman+a/)), é considerada a classe nãomarcada para os vocábulos femininos, mas inclui também vocábulos masculinos. A classe III reúne não somente palavras que recebem a vogal epentética /e/ (boate, surfe), mas também aquelas que terminam em consoantes licenciadas para a posição de coda (flor, paz). A classe IV reúne todas as palavras que, a despeito de carregarem uma consoante licenciada para a posição de coda, ainda assim recebem a vogal /e/ (árvore, pele, classe). A classe V identifica-se por agrupar palavras terminadas em vogal, líquida lateral e nasal subespecificada, enfim, as tradicionais formas atemáticas (jabuti, farol, jasmim). Ressalta-se que, sob o enfoque teórico aqui assumido, gênero e classe formal são informações idiossincráticas dos radicais não-verbais 2. A especificação de gênero precede a atribuição de classe formal, cuja apresentação se dá como um traço diacrítico abstrato, o qual é mapeado sobre o morfema de classe formal (VT), que deve se apresentar à borda direita da palavra condição vigente não só para o português como para muitas línguas românicas, a fim de que as palavras sejam morfologicamente bem-formadas, como se verá adiante neste texto. A teoria da Morfologia Distribuída (doravante DM, do inglês Distributed Morphology), de caráter gerativo, assume ser a gramática constituída de três módulos autônomos, a Sintaxe, a Morfologia e a Fonologia, o segundo dos quais é a interface entre a Sintaxe e a Fonologia. A autonomia dos referidos módulos significa que cada um deles tem seus próprios princípios e propriedades. Apresenta-se, em (1), a organização da gramática 3. 2 No presente caso, referimo-nos especificamente aos radicais nominais. 3 No presente estudo, não se tratará dos módulos da Sintaxe e da Forma Lógica (LF, do inglês Logical Form). Há muitos trabalhos na literatura que aprofundam o estudo da Sintaxe (e.g. Harris, 1994; 1997; Calabrese, 1997a,b; 1998).

3310 (1) Modelo de Organização Gramatical na DM Sintaxe Morfologia: Operações morfológicas Inserção vocabular Regras de reajustamento Regras fonológicas PF (Phonological Form) LF (Logical Form) A Sintaxe é um componente gerador de estruturas pela combinação, sob nós terminais (i.e., morfemas), de feixes de traços sintáticos e semânticos selecionados pelas línguas particulares a partir de um inventário disponibilizado pela Gramática Universal (GU). Essas combinações de traços estão sujeitas a princípios e a operações da Sintaxe 4, as quais são subseqüentemente trabalhadas nos componentes morfológico e fonológico. O componente morfológico da gramática compreende três etapas: as operações morfológicas, a inserção vocabular e as regras de reajustamento. As operações morfológicas manipulam as representações advindas da Sintaxe as quais são diagramadas sob a forma de árvores de ramificação binária. Podem não só modificar as representações bem como o seu conteúdo. A atuação das diferentes operações elucida, segundo Calabrese (1998:76), os desencontros entre a organização das peças morfológicas e as estruturas fornecidas pela sintaxe. Somente após a atuação dessas operações estruturais, a fim de satisfazer condições de boa-formação morfológica, como será ilustrado em (3), é chamada a inserção vocabular, cuja responsabilidade é atribuir traços fonológicos os denominados itens vocabulares (expressões fonológicas) aos nós terminais. Note-se que o conteúdo fonológico de um item vocabular pode ser qualquer seqüência fonológica, incluindo zero ou 'nulo' (e.g., zero «[, V], em que «representa inserção vocabular). Da mesma forma, o conteúdo de traços, ou conteúdo de inserção, pode ser destituído de informação, em tais casos um item vocabular é elsewhere ou default (e.g. o morfema de classe formal da classe I em português, /o/ «elsewhere ou default). Por fim, as regras de reajustamento atuam sobre itens vocabulares específicos em um contexto morfológico específico (cf. Harris, 1999), o que pode ser observado em português, quando da vocalização da soante /l/ da raiz (/l/ [j]) no contexto do plural (cf. anel ané[j]s ).As operações fonológicas manipulam dados advindos da Morfologia, o que explica que muitas delas sejam sensíveis a informações morfológicas, como se verá mais adiante. É fundamental, sob o enfoque aqui assumido, a questão da afixação derivacional, pois somente através de morfemas derivacionais, sem considerar se têm conteúdo fonológico ou não, é que raízes desprovidas de categoria morfossintática podem atingir o status de nomes e adjetivos sintaticamente viáveis (cf. Harris, 1999:53). A formalização da afixação derivacional é mostrada em (2). 4 Merge and move são operações da sintaxe.

3311 (2) Representação da Afixação Derivacional a. Sintaxe b. Morfologia X A/N Ö X Ö A/N Ömit [ic] A (= [ Ömit [ic] A ] A ) [Ø] N (= [ Ömit [Ø] N ] N ) As tradicionais partes do discurso N, A, V (2a) são representadas pela raiz Ö, cuja categoria morfossintática é determinada pelo morfema licenciador mais próximo X. A sub-árvore (2b) apresenta o componente morfológico. As setas bidirecionais ( ) correspondem à operação morfológica de inserção vocabular, cujo resultado é a inserção da raiz mit- e do sufixo de formação adjetival ic- ou do morfema Ø, que é sintaticamente motivado, embora não seja pronunciado. Entretanto, o que acontece em (2b) não é suficiente para que essas raízes (= radicais 5 ) portadoras de categoria morfossintática possam receber o status de vocábulos independentes, uma vez que lhes falta um morfema imprescindível para configurarem palavras bem-formadas, ou seja, necessitam da adição de um morfema de classe formal. Essa adição ocorre em cumprimento a uma condição de boaformação morfológica, em (3) representada. A despeito de ser uma condição de língua-específica, abrange muitas línguas românicas, além do português, citam-se o espanhol (cf. Harris, 1996, 1999), o catalão (cf. Oltra-Massuet, 1999) e o italiano (cf. Peperkamp, 1997). (3) Adição de Nó Terminal de Sufixo Temático a X 0 Uma categoria morfossintática, ou seja, X 0 exige um sufixo temático Á sintaxe morfologia X à X / \ X Á Essa adjunção ocorre no componente morfológico da gramática, uma vez que tais sufixos não têm função sintática. Em (4), apresenta-se a estrutura constitutiva completa de palavras não-verbais, como mito, faxina, vale, irmão. (4) Estrutura Constitutiva das Palavras Não-Verbais do Português A N A N A N Á mit [Ø] N o fa in [Ø] N a val [Ø] N e irman [Ø] N o 5 O termo radical refere-se aqui a uma raiz+um afixo derivacional, que pode ser zero. Logo, na DM, o radical não tem status teórico, mas a raiz.

3312 O morfema de classe formal é selecionado pelo morfema não-nulo mais próximo que c-comanda 6. Somente no caso default, a própria raiz toma para si esta responsabilidade, ou seja, quando o licenciador do radical não possui conteúdo fonológico (Ø) na posição destinada ao morfema derivacional, o que ocorre em todos os exemplos ilustrados. É pertinente lembrar o fato de que cada morfema de classe formal, cujo elencamento é fornecido na última coluna à direita, é a assinatura fonológica de uma das classes formais arbitrárias, dentro das quais estão distribuídas todas as palavras não-verbais do português, especificamente, nomes (N) e adjetivos (A). Considerando-se que o interesse do presente trabalho é analisar a constituição dos vocábulos não-derivados do português terminados em ditongo nasal -ão como portadores do morfema de classe formal 7 /o/ semelhantemente aos vocábulos terminados na vogal -o, apresentam-se lado a lado, em (5), membros da classe I com ambas as terminações. Após, explicações detalhadas serão fornecidas referentemente às regras fonológicas através das quais resultam palavras com terminação nasal. (5) Ilustrações de Membros da Classe I a. entradas vocabulares dos radicais /trib/, f, I /man/, f, I /menin/ /irman/ b. derivações tribo mão menino irmão [/trib/]á [/man/]á [/menin/]á [/irman/]á 1 MORFOLOGIA [ ] [ ] [ ] [ ] f f a I I b o o o 2 Inserção vocabular trib+o man+o menin+o irman+o Constata-se, em (5a), a dessemelhança com respeito a informações (ou falta delas) nas entradas vocabulares dos radicas de tribo e mão, de um lado, e menino e irmão, de outro. Em (5b), apresentamse as derivações 8 das quatro formas, femininas e masculinas. Na linha 1a, das derivações, enquanto a especificação de gênero feminino (f) está marcada nas entradas vocabulares dos radicais trib- e man, não há qualquer marca para os radicais masculinos, menin- e irman-. Isso acontece em virtude de o gênero masculino ser considerado não-marcado para a Classe I, não necessitando, pois, aparecer nas entradas vocabulares, diferentemente do gênero feminino, o qual, por ser considerado marcado no português, deve estar presente nas entradas vocabulares de todas as palavras femininas, independentemente da classe formal. Na linha 1b, enquanto os radicais menin- e irman- não apresentam traço de classe formal, em razão de esta classe ser considerada o caso default por excelência, os radicais trib- e man- apresentam-se com a informação de classe formal, ou seja, o traço diacrítico abstrato de classe formal [I]. Tal mecanismo obsta a incorreta atribuição de tribo e mão à classe formal II, o caso não-marcado para os nomes femininos, evitando assim que emerjam as formas incorretas *triba e *mã 9. Finalmente, na linha 2, ocorre a operação morfológica de Inserção vocabular, a qual é responsável pelo aparecimento da vogal /o/ nos quatro casos, trib+o, man+o, menin+o e irman+o. Somente após essas operações atuarem, no componente morfológico, é que o material fonológico inserido poderá ser manipulado por regras fonológicas, no módulo seguinte, a Fonologia. 6 Duas entidades estão numa relação de c-comando somente se o primeiro nó ramificante que domina diretamente a também domina b. 7 A expressão morfema de classe formal é empregada não só para referir os traços morfológicos abstratos [I], [II], e assim por diante, como também o traço fonológico correspondente, ou seja, /o/, /a/, entre outros. 8 A numeração conjugada com letras que aparece nas ilustrações em (2b), do tipo 1a-b, 2, 3 nada mais é do que um expediente encontrado a fim facilitar a exposição/descrição dos mecanismos envolvidos nas derivações. 9 Em dialetos populares formas como *questã por questão, *congestã por congestão, *indigestã por indigestão, por exemplo, são freqüentemente empregadas. Delas, contudo, não se tratará neste texto.

3313 Neste componente, ocorrem, então, as regras fonológicas responsáveis pelas formas de output de todas as palavras, e aqui particularmente aquelas terminadas em ditongo nasal. Em (6) e (7), apresentam-se os mecanismos propostos para a derivação dos ditongos nasais na visão aqui defendida, a qual se inspira na hipótese de Bisol (1998) com respeito ao tratamento dos ditongos e vogais nasais do português. A operação responsável por lidar com a nasal subespecificada, /N/, de radicais do tipo irman- que recebem um morfema de classe formal à borda direita, é formalizada em (6). O ditongo nasal tem por base VN, em que N se torna flutuante por desassociação; a posição deixada vazia é então ocupada pela manifestação fonológica do morfema de classe formal (Á). A nasal flutuante é reassociada à rima, de onde percola nasalizando todo o constituinte, em (7) apresentado. (6) Desassociação de N Á V < N > V < N > R] w onde < N > significa elemento nasal flutuante (7) Reassociação de N à Rima Á V V R [N] Em (8), ilustra-se a atuação dos mecanismos propostos em (6) e (7), que operam no componente fonológico da gramática, sem descuidar, contudo, da informação morfológica de classe formal que já se faz presente desde o componente precedente. Reinterpretando Bisol por DM, a adjunção do sufixo temático é um processo morfológico, isto é, ocorre no módulo da Morfologia pos-sintaticamente. (8) Membros da Classe I Ditongo nasal irmão mão irman+á man+á MORFOLOGIA o o Inserção vocabular irman+o man+o irman o man o FONOLOGIA irma o ma o Desassociação de N (6) <N> <N> irmau mau Elevação de vogal <N> <N> ir.mau mau Silabação <N> <N> ir.mã u) mã u) Reassociação de N à Rima (7) ½ ½ R [N] R [N] [ir. mãw)] [ mãw)] Output

3314 Acima da linha horizontal, na Morfologia, verifica-se o processo de Inserção vocabular de /o/, como realização do morfema de classe formal, conforme já referido. Na Fonologia, abaixo da linha horizontal, ocorrem os processos e restrições responsáveis pela manipulação do conteúdo fonológico inserido nas posições terminais (morfemas) na etapa precedente, a Morfologia. O primeiro mecanismo a operar é a Desassociação de nasal, (6), pela qual a nasal coda é desassociada da posição; contudo, o feixe de traços do segmento nasal permanece flutuante <N> e, desta feita, a posição antes por ele ocupada fica disponível para a manifestação do morfema de classe formal. Segue-se a Elevação da vogal, regra de aplicação geral na seqüência de duas vogais, e após a Silabação, da qual resultam sílabas bem formadas. Posteriormente, aplica-se a operação de Reassociação de N à Rima, (7), que gera o ditongo nasal. Como resultado da aplicação de todos esses processos resultam as formas de output corretas: ir.mãw, mãw 10. Passa-se às considerações finais. À guisa de conclusão, sob o modelo teórico da Morfologia Distribuída, para que um vocábulo não-verbal alcance o status de bem-formado morfologicamente, indispensável é a presença do nó terminal morfológico Á na representação morfossintática da palavra. É no componente morfológico da gramática que ocorrem os mecanismos responsáveis pela boa formação morfológica de nomes e adjetivos do português, independentemente da terminação de que sejam portadores. A idéia que subjaz a essa proposta teórica é que a representação morfossintática da palavra independe de sua representação fonológica. Uma vez constituída a estrutura morfológica das palavras, a etapa seguinte, ainda no componente da morfologia, incumbe-se de inserir material fonológico, através da operação de Inserção vocabular, aos morfemas temáticos, no presente caso, o morfema de classe formal da classe I, o qual se manifesta como a vogal /o/ tanto para as palavras terminadas nesta vogal, quanto aquelas terminadas no ditongo nasal -ão. Em outras palavras, não há níveis distintos para a entrada do morfema de classe formal para palavras terminadas em vogais orais e em ditongo nasal, o que decorre da organização da gramática sob a DM. Eis o que aponta para a pertinência deste modelo teórico no tratamento do ditongo nasal -ão como portador do morfema de classe formal /o/, o qual é também encontrado em todos os vocábulos não-verbais do português terminados em vogal oral, como ilustrado neste trabalho. REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, Cíntia da Costa. 2003. As Classes Formais do Português e sua Constituição: Um Estudo à Luz da Teoria da Morfologia Distribuída. Tese de doutorado. Porto Alegre: PUCRS. BISOL, Leda. 1998. A nasalidade, um velho tema. D.E.L.T.A.. 14(n. esp.): 27-46. CALABRESE, Andrea. 1998. Some remarks on the Latin case system and its development in Romance. IN: E.Trevino & J. Lema. Eds. Theoretical Analysis of Romance Languages: 71-126. Amsterdam: John Benjamins. CÂMARA Jr., Joaquim M. 1970. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes. HALLE, Morris; MARANTZ, Alec. 1994. Some key features of distributed morphology. MITWPL 21: Papers on Phonology and Morphology: 275-288.. 1993. Distributed morphology and pieces of inflection. IN: K. Hale & S. J. Keyser. Eds. The View from the Building 20: Essays in Honor of Sylvain Bromberger. Cambridge/Massachusetts: MIT Press. HARRIS, James W. 1999. Nasal depalatalization no, morphological wellformedness sí; the structure of Spanish word classes. MITWPL 33: Papers on Syntax and Morphology: 47-82.. 1996. The syntax and morphology of class marker suppression in Spanish. IN: Karen Zagona. Ed.. Grammatical Theory and Romance Languages. Amsterdam: John Benjamins. OLTRA-MASSUET, Isabel. 1999. On the Notion of Theme Vowel: A New Approach to Catalan Verbal Morphology. MIT: SM Thesis. PEPERKAMP, Sharon. 1997. Prosodic Words. Doctoral Dissertation, Universiteit van Amsterdam. The Hague: Holland Academic Graphics. 10 O presente estudo não focaliza a questão gênero relativamente às classes formais. Maiores informações sobre a correlação existente entre classe formal e gênero gramatical pode ser encontrada em Alcântara (2003).