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Transcrição:

Título Geração hidrelétrica sob risco Veículo Canal Energia Data 12 Setembro 2014 Autores Claudio Sales e Richard Lee Hochstetler

Os geradores hidrelétricos têm sofrido grandes prejuízos nos últimos meses porque a produção de energia proveniente das usinas hidrelétricas tem ficado aquém do montante comprometido em seus contratos de venda de energia, forçando-os a adquirir o montante faltante no mercado de curto prazo para honrar os seus compromissos. Como a maior parte da Garantia Física das usinas hidrelétricas é tipicamente vendida em contratos de longo prazo, pode-se ter uma noção da ordem de grandeza do problema se considerarmos a diferença entre a quantidade total efetivamente gerada pelos geradores hidrelétricos e sua Garantia Física Sazonalizada registrada na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). A geração efetiva das hidrelétricas participantes do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) em julho ficou 11,0% abaixo da Garantia Física; em agosto a diferença foi de 15,7% e em setembro prevê-se que será de 11,9%. Os montantes dos déficits de energia hidrelétrica já são grandes, mas o que torna a situação crítica são os elevados preços do mercado de curto prazo. Multiplicando o montante dos déficits de energia pelos preços vigentes chega-se a uma estimativa da exposição dos agentes: R$ 2,2 bilhões em julho; R$ 3,9 bilhões em agosto; e R$ 3,0 bilhões em setembro. Independentemente das causas e das responsabilidades, a magnitude da exposição demonstra a gravidade do desequilíbrio. Os déficits bilionários podem vir a produzir um quadro de inadimplência crônico que ameaça o equilíbrio econômico-financeiro de todo setor elétrico. O governo tem respondido às indagações sobre o problema de forma surpreendente, alegando que as geradoras têm condições de suportar os déficits porque [e]m outro período eles ganharam muito mais do que isso (Canal Energia, 01/09/2014). Esta alegação não corresponde aos fatos porque quando a geração hidrelétrica é superavitária (superior à sua Garantia Física), o preço do mercado de curto prazo é baixo, fazendo com que as exposições financeiras nos períodos de déficits sejam muito

maiores do que nos de superávits de mesma magnitude. Só para efeitos de comparação, os déficits desses últimos três meses (julho, agosto e setembro de 2014) já superam os ganhos acumulados com a venda de Energia Secundária nos seis anos de hidrologia favorável entre 2007 e 2012, que somaram R$ 6,9 bilhões. Além disso, o governo considera que a questão não requer qualquer intervenção governamental, pois tudo isso que está acontecendo no Brasil é perfeitamente previsível e que [f]az parte das regras do jogo (Canal Energia, 01/09/2014). É verdade que os Contratos de Comercialização de Energia Elétrica na modalidade por quantidade estabelecem que o risco hidrológico é assumido pelo empreendedor da usina, mas a atual crise não deriva apenas do cenário hidrológico. A exposição das hidrelétricas depende fundamentalmente de quatro fatores: (i) cenário hidrológico; (ii) disponibilidade de capacidade de reserva; (iii) política de operação; e (iv) equilíbrio estrutural entre oferta e demanda por energia. O primeiro fator depende da natureza, mas os outros três fatores são determinados primordialmente pelas políticas adotadas pelo governo federal, e todos esses três fatores apresentaram mudanças que contribuíram de alguma forma para a construção da crise atual. O primeiro fator que está nas mãos do governo federal é a política de contratação da capacidade de reserva. Todo sistema elétrico precisa de uma capacidade de reserva ( margem de reserva ) para lidar com contingências. Num sistema predominantemente hidrelétrico, como o brasileiro, a margem de reserva deve ser dimensionada principalmente para lidar com contingências nos períodos de estiagem. Para isso seria necessário contratar uma capacidade de reserva, como previsto na Lei 10.848 ( 3o do Art. 3o ), que pudesse ser acionada sob demanda quando necessário. A política do governo, no entanto, tem sido a de constituir tal reserva a partir da contratação de renováveis (eólica, PCHs e biomassa) que ofertam energia em função das suas respectivas disponibilidades de fontes primárias, independentemente das necessidades do sistema. A inserção dessas fontes implica que a geração hidrelétrica acaba sendo deslocada independentemente das condições hidrológicas. O segundo fator gerido pelo governo é a política operativa. Os geradores definem sua estratégia de contratação levando em conta os procedimentos operativos previamente definidos. Entretanto, a política de operação tem sofrido grandes modificações nos últimos anos: (i) tem-se promovido o despacho fora da ordem de mérito, alterando a lógica prevista pelos modelos computacionais segundo a qual as usinas seriam acionadas em ordem crescente de custo operacional ; (ii) alteraram-se os modelos computacionais para incorporar a aversão ao risco; e (iii) não se promoveu um racionamento preventivo quando o Custo Marginal de Operação superou o Custo de Déficit, como implicitamente previsto na política operacional embutida nos modelos computacionais, o que eleva a exposição dos geradores hidrelétricos, pois a Lei 10.848 estabelece que, em caso de racionamento, as obrigações dos geradores seriam reduzidas na mesma proporção da redução do consumo (art. 22). Independentemente do mérito dos novos procedimentos operativos, o fato é que eles implicam mudanças substanciais que afetam decisões de contratação realizadas previamente pelos geradores hidrelétricos. Portanto, o que está acontecendo no Brasil não era inteiramente previsível, como alega o governo. Grande parte da situação que atualmente vivenciamos é fruto de alterações promovidas pelo governo. O terceiro fator é a contratação de energia para manutenção do equilíbrio estrutural. A frustração da entrada de novas usinas e atrasos na entrada de operação de usinas e

de linhas de transmissão, pelas mais variadas razões, impactaram adversamente o equilíbrio estrutural previsto. As hidrelétricas detêm apenas um instrumento para lidar com todos esses riscos: reduzir o grau de contratação. Portanto, se o governo realmente mantiver sua postura de lavar as mãos, os geradores hidrelétricos terão apenas uma opção para evitar que o fenômeno se repita no futuro: reduzir substancialmente a sua oferta de energia. Mas quais seriam as consequências sistêmicas dessa redução de oferta para diminuir a exposição ao risco das hidrelétricas? Embora o planejamento preveja que o risco de déficit deve ser inferior a 5%, a assimetria de preços faz com que os geradores hidrelétricos precisem ficar descontratados em percentuais muito maiores porque o preço aumenta drasticamente em períodos de baixa geração hidrelétrica. Portanto, para enfrentar condições como a atual, as hidrelétricas teriam que deixar cerca de 15% de sua Garantia Física descontratada, o que redundaria em custos substanciais para os consumidores de energia. Tais custos surgiriam porque, em primeiro lugar, a oferta de energia para contratação de longo prazo seria reduzida, o que requereria a contratação de mais energia de novas usinas. Em segundo lugar, porque os geradores hidrelétricos teriam que aumentar seus preços em R$/MWh para recuperar os mesmos custos fixos (em reais) que anteriormente eram amortizados por uma quantidade maior de megawatts-hora. O impacto da elevação do nível de descontratação hidrelétrica de 5% para 15% seria da ordem de R$ 10 bilhões por ano. Será que essa é a forma mais eficaz de lidar com esse problema? Cremos que não, pois essa solução seria demasiadamente custosa. É preciso buscar uma solução melhor tendo em vista o interesse público. Respostas simplistas e maniqueístas não resolverão a questão. Não faz sentido dizer que antes se ganhou muito dinheiro e que as perdas atuais fazem parte do jogo porque, como demonstrado, as perdas dos três últimos meses já superam os ganhos de seis anos (2007 a 2012, que contaram com hidrologia favorável). Também não ajuda dizer que os geradores deveriam ter montado estratégias com hedge maior porque essa decisão imporia custos bilionários permanentes aos consumidores. Tratase de um desequilíbrio sistêmico que não passará com o tempo. É preciso reconhecer o problema e buscar soluções sensatas para mitigar o impacto desta crise que já abala os alicerces econômico-financeiros do setor elétrico e proporcionar diretrizes sustentáveis para as políticas de contratação de longo prazo que envolvem a geração hidrelétrica. Claudio J. D. Sales é presidente e Richard Lee Hochstetler é economista do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br).