ESCOLA DE GUERRA NAVAL CMG MAURO GUIMARÃES CARVALHO LEME FILHO O DOMÍNIO DO CICLO DO COMBUSTÍVEL NUCLEAR PELO BRASIL: AS CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS E COMERCIAIS NO CENÁRIO INTERNACIONAL. Rio de Janeiro 2009
CMG MAURO GUIMARÃES CARVALHO LEME FILHO O DOMÍNIO DO CICLO DO COMBUSTÍVEL NUCLEAR PELO BRASIL: AS CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS E COMERCIAIS NO CENÁRIO INTERNACIONAL. Monografia apresentada à Escola de Guerra Naval, como requisito parcial para a conclusão do Curso de Política e Estratégia Marítimas. Orientador: CMG (RM1) William de Sousa Moreira Rio de Janeiro Escola de Guerra Naval 2009
RESUMO A Marinha do Brasil (MB) pretende construir um submarino nuclear. Para produzir combustível nuclear para esse submarino, é necessário dominar todo o ciclo do combustível nuclear. O ciclo é composto das seguintes etapas: mineração e beneficiamento, conversão, enriquecimento, reconversão, produção das pastilhas e fabricação do elemento combustível. O Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) desenvolveu tecnologia para realizar as etapas de conversão e enriquecimento isotópico do urânio, as duas que ainda não eram feitas no país. Diz-se, portanto, após a conquista dessas duas etapas, que o Brasil domina o ciclo do combustível nuclear. Este trabalho tem o propósito de identificar as consequências políticas e comerciais no cenário internacional e as implicações para a MB. Inicialmente, defini-se o que é combustível nuclear. Em seguida, verifica-se como foi dominado o ciclo do combustível nuclear. Analisa-se o grau de domínio do ciclo do combustível. Avalia-se como a comunidade internacional vem se posicionando quanto ao aumento do número de países que dominam a tecnologia nuclear. Descreve-se os tratados e acordos internacionais que tentam evitar a proliferação de armas nucleares. Identifica-se as consequências políticas e comerciais que o domínio do ciclo do combustível gera no presente ou ainda poderá gerar no futuro para o país. Relacionam-se as implicações para a MB. E por fim, são apresentadas as conclusões tendo como base os elementos relacionados no desenvolvimento. Palavras-chave: Ciclo do combustível nuclear. Energia nuclear. Estratégia.
ABSTRACT The Brazilian Navy (BN) whishes to build a nuclear submarine. To be able to produce nuclear fuel for that submarine, it s necessary to master the entire nuclear fuel cycle. The cycle consists of the following stages: mining and milling, conversion, enrichment, reconversion, pellets production and fuel fabrication. The Brazillian Navy Technological Center in São Paulo (CTMSP) developed technology to perform the stages of conversion and uranium enrichment, the two that were not made in the country. It is said, therefore, after the conquest of these two stages, that Brazil dominates the nuclear fuel cycle. This work has the purpose to identify the political and commercial consequences in the international arena and the implications to the BN. First, it is defined what is the nuclear fuel cycle is. Then, it is checked how the nuclear fuel cycle was dominated. It is analyzed the degree of domination of the nuclear fuel cycle. It is evaluated what is the position of the international community about the increasing number of countries that dominate nuclear technology. It is described the international treaties and agreements that tries to avoid the proliferation of nuclear weapons. The political and commercial consequences that the domination of the nuclear fuel cycle has caused in the past and may still cause in the future for the country are identified. The implications for the BN are identified. And finally, conclusions are presented based on the elements associated with the development. Key words: Nuclear fuel cycle. Nuclear energy. Strategy.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Ciclo do combustível nuclear... 63 Figura 2 Yellow cake... 63 Figura 3 Usina Nuclear de Tricastin e planta de enriquecimento Eurodif... 64 Figura 4 Ultracentrífuga... 64 Figura 5 Pastilhas... 65 Figura 6 Cascata de centrífugas... 65 Figura 7 Elemento combustível... 66 Figura 8 Usexa... 66 Figura 9 Mapa da distribuição das usinas nucleares no mundo... 67 Figura 10 Reservas brasileiras de urânio... 67 Gráfico 1 Geração de energia elétrica mundial... 68 Gráfico 2 Geração nucleoelétrica em 2007... 68
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIEA ABACC Aben C&T CBPF CBRES CBTN CCL CEA cm CNAAA Cnen CNPq Copesp Coppe/UFRJ CSNU CTMSP D 2 O DNPM DRM-RJ EB EIA Eletronuclear END EUA Euratom Eurodif FA FAB FCN Agência Internacional de Energia Atômica Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Material Nuclear Associação Brasileira de Energia Nuclear Ciência e Tecnologia Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear Commerce Control List Centro Experimental Aramar centímetro Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto Comissão Nacional de Energia Nuclear Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Coordenadoria de Projetos Especiais Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Conselho de Seguraça da Organização das Nações Unidas Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo Deutério Departamento Nacional de Produção Mineral Departamento de Recursos Minerais do Estado do Rio de Janeiro Exército Brasileiro Energy Information Administration Eletrobrás Termonuclear S.A. Estratégia Nacional de Defesa Estados Unidos da América European Atomic Energy Community European Gaseous Diffusion Uranium Enrichment Consortium Forças Armadas Força Aérea Brasileira Fábrica de Combustíveis Nuclear
Finep FMI FNDCT GSN GTRP HF IBM IEA IEN II GM IME Inap INB Inpe Ipen IPT kg KWU Labgene MB MCT mm MRE MWe Nuclam Nuclebrás Nuclei Nuclemon Nuclen Nuclep Nucon Nustep Financiadora de Estudos e Projetos Fundo Monetário Internacional Fundo Nacional de Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia Grupo de Supridores Nucleares Grupo de Trabalho do Reator de Potência Ácido fluorídrico International Business Machines Corporation Instituto de Energia Atômica Instituto de Energia Nuclear Segunda Guerra Mundial Instituto Militar de Engenharia Instalação Nuclear a Água Pressurizada Indústrias Nucleares do Brasil S.A. Instituto de Pesquisas Espaciais Instituto de Pesquisa Energéticas e Nucleares Instituto de Pesquisas Tecnológicas kilograma Kraftwerk Union A.G. Laboratório de Geração Núcleoelétrica Marinha do Brasil Ministério da Ciência e Tecnologia milímetros Ministério das Relações Exteriores Megawatt elétrico Nuclebrás Auxiliar de Mineração S.A. Empresas Nucleares Brasileiras S.A. Nuclebrás Enriquecimento Isotópico Nuclebrás Pesquisa de Tório e Areias Monazíticas S.A. Nuclebrás Engenharia S.A. Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A Nuclebrás Construtora de Centrais Nucleares S.A. Nuclebrás Trenndusen Entwi & Cocklungs Patentvewertunggesellschaft mbh & Co. A.G.
ONU Organização das Nações Unidas PATN Programa Autônomo de Tecnologia Nuclear PDTN Programa de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear PEB Programa Espacial Brasileiro PNB Programa Nuclear Brasileiro PNE 2030 Plano Nacional de Energia 2030 PNM Programa Nuclear da Marinha ppm Partes por milhão Procon Projeto de Conversão do Urânio PWR Pressurized Water Reactor RU Reino Unido Renap Reator Nacional à Água Pressurizada SBF Sociedade Brasileira de Física SWU Separative Work Unit t tonelada TAL Technonoly Alert List TNP Tratado sobre Não Proliferação de Armas Nucleares U 3 O 8 Concentrado de urânio UF 6 Hexafluoreto de urânio UO 2 Dióxido de urânio UO 2 F 2 Fluoreto de urânio Urenco Uranium Enrichment Company URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas Usec United States Enrichment Company Usexa Unidade de Produção de Hexafluoreto de Urânio USP Universidade de São Paulo UTS Unidade de Trabalho Separativo
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO... 9 2 O COMBUSTÍVEL NUCLEAR... 11 2.1 O Urânio... 11 2.2 As etapas do ciclo do combustível nuclear... 12 2.2.1 Mineração e beneficiamento... 13 2.2.2 Conversão... 13 2.2.3 Enriquecimento... 13 2.2.4 Reconversão... 15 2.2.5 Produção de pastilhas e fabricação do combustível nuclear... 15 2.3 O ciclo do combustível nuclear no Brasil... 16 3 A BUSCA PELO DOMÍNIO DO CICLO DO COMBUSTÍVEL NUCLEAR 19 3.1 As tentativas iniciais frustradas... 19 3.2 A conquista do domínio do ciclo do combustível nuclear... 27 4 AS CONSEQUÊNCIAS DO DOMÍNIO TECNOLÓGICO DO CICLO DO COMBUSTÍVEL NUCLEAR... 31 4.1 O cenário internacional... 31 4.2 A energia nuclear no mundo... 39 4.3 As consequências políticas... 41 4.4 As consequências comerciais... 44 4.5 As implicações para a Marinha do Brasil... 48 5 CONCLUSÃO... 51 REFERÊNCIAS... 53 APÊNDICE A Ilustrações... 63 APÊNDICE B Entrevista com o CMG (EN) André Luis Ferreira Marques... 69 APÊNDICE C Entrevista com o CMG (EN) Mario Ferreira Botelho... 74 APÊNDICE D Entrevista com o CMG (EN-RM1) Leonam dos Santos Guimarães... 77 APÊNDICE E Entrevista com o Dr. Rex Nazaré Alves... 78
9 1 INTRODUÇÃO A partir da metade do século passado, pesquisadores e cientistas brasileiros perseguiram um objetivo tão importante como difícil: ser capaz de produzir combustível nuclear, requisito imprescindível a todo país que tenha pretensão de ser autônomo no setor nuclear, seja para geração de energia elétrica em uma usina nuclear, seja para a propulsão de um submarino. Para ter essa capacidade, é necessário dominar o ciclo do combustível nuclear, ou seja, realizar cada uma das suas etapas. E o país, com ativa e indispensável participação da Marinha do Brasil (MB), logrou êxito em desenvolver tecnologia para realizar as duas etapas que ainda não eram comercialmente feitas no país: a conversão e o enriquecimento do urânio. Diz-se, portanto, após a conquista dessas duas etapas, que o país domina o ciclo do combustível nuclear. O fato marcante que permitiu essa conquista foi a decisão estratégica da MB de desenvolver o seu Programa Nuclear (PNM) de forma autóctone, desde 1979, com o propósito de dominar a tecnologia necessária para projetar e construir a propulsão nuclear de um submarino para que, futuramente, tivesse condições de projetar e construir um submarino com propulsão nuclear. Submarinos nucleares exigem um avançado conhecimento tecnológico, por isso são produzidos apenas por um seleto grupo de países (embora a Índia tenha construído o seu primeiro em 2009, ainda não operando), que são exatamente os membros do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSNU): China, Estados Unidos da América (EUA), França, Reino Unido (RU) e Rússia, como explica Guimarães: O elenco limitado de países que possuem navios nucleares (a imensa maioria destes constituída por submarinos) pode sugerir que esses navios se constituem em uma arma cara, privilégio de nações ricas, com interesses estratégicos globais. Trata-se, porém, de um oligopólio essencialmente tecnológico, de imenso potencial econômico, zelosamente protegido pelos países que detêm a tecnologia (GUIMARÃES, [200-?]a, p. 6). A Estratégia Nacional de Defesa (END) (BRASIL, 2008, p. 2) ressalta a necessidade de o país ter acesso a essa tecnologia, o que, na maioria das vezes, só pode ser obtido de maneira independente: Projeto forte de defesa é o projeto de desenvolvimento que se guie por princípios, dentre eles a independência nacional, alcançada pela capacitação tecnológica autônoma, inclusive nos estratégicos setores espacial, cibernético e nuclear.
10 Esta monografia tem por propósito identificar, no cenário internacional, as consequências políticas e comerciais do domínio do ciclo do combustível nuclear e as implicações para a MB. Para tal, procura-se responder aos seguintes questionamentos: O que é combustível nuclear? Como foi dominado o ciclo? Qual o grau de domínio? O país depende de outros países para produzir o combustível nuclear? Como a comunidade internacional vem se posicionando quando ao aumento do número de países que dominam a tecnologia nuclear? Que consequências políticas e comerciais o domínio do ciclo do combustível gera no presente ou ainda poderá gerar para o Brasil no futuro? Quais as implicações para a MB? De modo a responder essas questões, o presente trabalho está estruturado em cinco capítulos. No Capítulo 2 é inicialmente apresentado o urânio, suas propriedades e aplicações; o ciclo do combustível nuclear e suas etapas; e o grau de domínio de cada uma das etapas no país. Em seguida, o Capítulo 3 pretende, de forma sucinta, relatar o caminho trilhado até essa conquista, descrever como o domínio foi alcançado e verificar se, ao longo do tempo, já ocorreram impedimentos, bloqueios ou cerceamentos que retardassem esse feito. Posteriormente, o Capítulo 4 verifica se o fato de a MB ter conseguido dominar as etapas de conversão e de enriquecimento, trouxe ou poderá trazer consequências para o país, particularmente para a MB. Essas consequências poderiam ocorrer tanto no campo político quanto no comercial, como pressões ou restrições por parte dos países que já detêm essa capacidade e que participam do mercado altamente lucrativo de fornecimento de combustível nuclear e, por isso, pretendem mantê-lo com exclusividade. Finalmente, o quinto e último capítulo apresenta as conclusões do autor a respeito das questões formuladas sobre o domínio do ciclo do combustível nuclear pelo país e as consequências políticas e comerciais no cenário internacional, além das implicações para a MB.
11 2 O COMBUSTÍVEL NUCLEAR Combustível é qualquer substância que reage com o oxigênio (ou com outro comburente) de forma violenta ou de modo a produzir calor, chamas e gases. Supõe a liberação de uma energia de sua forma potencial a uma forma utilizável. No caso do combustível nuclear, não há reação com oxigênio, mas é assim chamado por similaridade. Cada combustível tem o seu próprio ciclo, entretanto o do urânio é extremamente complexo. Para se ter ideia da capacidade desse combustível, basta considerar que duas pastilhas de 7 g de urânio produzem energia suficiente para atender uma residência em que vivam quatro pessoas, durante um mês (INDÚSTRIAS NUCLEARES DO BRASIL-INB, 2009j). 2.1 O Urânio O elemento químico Urânio é um metal branco-níquel, pouco menos duro do que o aço. Foi identificado em 1789 pelo cientista alemão Martin Klaproth e nomeado em homenagem ao planeta Urano, descoberto oito anos antes. É um dos elementos mais pesados e o seu símbolo na tabela periódica é U (INB, 2009b). Foi o primeiro em que se descobriu a propriedade da radioatividade e está largamente distribuído pela crosta terrestre, não sendo abundante em depósitos concentrados. As minas contêm usualmente de 1.000 a 5.000 ppm de urânio, embora maiores concentrações, de até 7.000 ppm, por exemplo, já tenham sido encontradas. A ocorrência natural do urânio é composta de três isótopos 1 : 99,28% de 238 U (peso atômico 238), 0,711% de 235 U (peso atômico 235) e 0,0054% de 234 U (peso atômico 234) (INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY-IAEA, 2009a). O 235 U é o isótopo físsil do urânio, ou seja, os seus átomos têm alta probabilidade de sofrerem fissão após a captura de um nêutron e assim transformar matéria em energia. Sua principal aplicação comercial é na geração de energia elétrica, na qualidade de combustível para usinas nucleares, que utilizam a reação nuclear de fissão como fonte para geração de energia (INB, 2009i).
12 É também utilizado em reatores de pesquisa para produção de isótopos radioativos para uso na medicina e na indústria 2. A natureza dual do emprego do urânio, tanto para fins pacíficos como para militares, é o maior problema associado ao ciclo do combustível nuclear, o que leva ao controle rigoroso, por parte de organismos internacionais, dessa tecnologia 3 e de seu uso. Para emprego em usinas nucleares, o urânio deve ser enriquecido até 5%, para reatores de propulsão naval, a 20%, e para armas nucleares, a mais de 90%. Dessa forma, limitar o enriquecimento a 20% é garantia de uso não proscrito. Sem pretender ser exaustivo, a fim de possibilitar melhor compreensão dos capítulos seguintes, será detalhado, a partir de agora, como é produzido o combustível nuclear. 2.2 As etapas do ciclo do combustível nuclear O ciclo do combustível nuclear pode ser definido como uma série de processos e de operações (aqui chamadas de etapas) necessárias para fabricar o combustível nuclear, a sua irradiação em reatores nucleares (geração de energia) e o seu posterior armazenamento, reprocessamento ou descarte e estocagem do rejeito. Dois ciclos podem ser considerados, dependendo do tipo de reator e do combustível utilizado: aberto (sem o reaproveitamento de material contido no combustível irradiado) e fechado (com reaproveitamento de material nuclear extraído do combustível irradiado 4 ) (IAEA, 2009a). Este trabalho concentra-se somente nas etapas da fabricação do combustível nuclear. As etapas e as porcentagens dos custos aproximados são as seguintes: mineração e beneficiamento (25%), conversão (5%), enriquecimento (35%), reconversão, produção das pastilhas (13% as duas juntas) e fabricação do elemento combustível (22%) (INB, 2009b). 1 Isótopos são átomos de um elemento químico cujos núcleos têm o mesmo número atômico (mesmo número de prótons mas não o mesmo de nêutrons) e que contêm diferentes números de massas atômicas (N. do A.). 2 Aplicações médicas: produção de radiofármacos, esterilização de equipamentos, radiodiagnóstico e radioterapia. Aplicações industriais: radiografia industrial, esterilização de alimentos e levantamentos geológicos e de aquíferos (Cf. GONÇALVES, 2007, p. 35-36). 3 Definida, simplificadamente, como o conjunto organizado de todos os conhecimentos científicos, empíricos ou intuitivos empregados na produção e comercialização de bens e serviços (Cf. LONGO, 2007, p. 114). 4 Após três anos, cerca de 75% do 235 U desaparece, restando os produtos de fissão (estrôncio-90 e césio-137) e por outros elementos químicos (como o plutônio, o netúnio e outros isótopos do urânio), conhecidos como "rejeitos radioativos" ou "lixo atômico", extremamente radioativos (Cf. O TRATAMENTO..., 2009).
13 Cada uma pode ser realizada em locais diferentes, embora a proximidade das instalações resulte, evidentemente, em redução de custos com transporte (FIG. 1). A seguir são detalhadas as etapas do ciclo do combustível nuclear com ênfase no enriquecimento e nas tecnologias empregadas nesta etapa. 2.2.1 Mineração e beneficiamento Para que possa ser utilizado, o minério de urânio deve inicialmente ser extraído da mina e posteriormente convertido num composto chamado de concentrado de urânio, também conhecido por yellow cake devido à sua coloração amarelada (torta ou bolo amarelo, em inglês) (FIG. 2). O yellow cake é purificado quimicamente para remoção de impurezas, aumentando assim a sua concentração. Pode ser utilizado em qualquer programa nuclear e, por isso, é considerado uma commodity, comercializada diariamente no mercado mundial de combustível nuclear (IAEA, 2005, p. 5). 2.2.2 Conversão É o processo, essencialmente químico, de dissolução e de conversão do yellow cake na forma de hexafluoreto de urânio (UF 6 ), necessária para a etapa seguinte, o enriquecimento. O UF 6 tem três vantagens: torna-se gás a baixas temperaturas (56,4 o C é a temperatura de sublimação 5 à pressão normal); o fluoreto só tem um isótopo e o seu peso atômico é baixo. O UF 6 (empobrecido ou enriquecido) não oferece riscos maiores de radiação externa à saúde humana, pois os níveis de radioatividade são inferiores àqueles do urânio mineral encontrado na natureza. A desvantagem é que ele reage com a umidade para formar o fluoreto de urânio (UO 2 F 2 ) e o ácido fluorídrico, altamente corrosivos (IAEA, 2009a, p. 17). 5 Mudança do estado sólido para o estado gasoso ou vice-versa, sem passar pelo estado líquido (N. do A.).
14 2.2.3 Enriquecimento Conhecido tecnicamente como separação isotópica, o enriquecimento é uma atividade difícil e que consome energia. Para se ter uma ideia da grandeza dos números envolvidos, cita-se como exemplo a Central Nuclear de Tricastin, na França, um complexo formado por quatro usinas nucleares (cada uma com capacidade de 915 MWe) e por uma planta de enriquecimento de urânio pelo processo de difusão gasosa, do consórcio Eurodif (subsidiário da empresa francesa Areva) (FIG. 3). Cerca de 2/3 da energia gerada (3.000 MWe) é direcionada para a planta, que enriquece urânio para cem reatores nucleares (WORLD NUCLEAR ASSOCIATION-WNA, 2006). Diversas técnicas de produção aplicadas ao enriquecimento têm sido empregadas e outras tantas estão sendo pesquisadas. Em geral, esses métodos exploram a sutil diferença na massa atômica dos isótopos (o 235 U é somente 1,27% mais leve do que o 238 U). Uma característica comum a todos os processos de enriquecimento é o emprego de estágios que produzem sucessivamente maiores concentrações de 235 U. Cada estágio concentra a produção do anterior antes de encaminhar ao seguinte. Similarmente, os rejeitos de cada estágio são enviados de volta ao anterior para novo processamento. Essa sequência de enriquecimento é chamada de cascata (FIG. 6). Os métodos mais comuns de enriquecimento são a difusão (chamada de primeira geração) e a centrifugação (segunda geração). As técnicas do primeiro método são a difusão gasosa 6 (o UF 6 é forçado a passar sob pressão por uma série de membranas porosas) e a difusão térmica. Já o segundo método é uma evolução do anterior que utiliza a centrifugação do gás. A centrifugação tem duas vantagens sobre a difusão gasosa: é muito mais eficiente em termos de gasto de energia e as suas plantas têm menor número de estágios para um mesmo enriquecimento (IAEA, 2009a, p. 18). Em ambas tecnologias, o UF 6 é utilizado como fonte de alimentação, por ser a forma gasosa adequada. Outros processos de enriquecimento são: a laser (promete ser mais econômico, ainda sem escala comercial); aerodinâmico (utiliza técnicas de jet nozzle ou jato centrífugo); 6 Este processo responde por cerca de 40% da capacidade mundial de enriquecimento, sendo utilizado por: EUA, França, RU e Rússia. No entanto, a maioria das instalações está se aproximando do fim da sua vida útil e o processo está sendo substituído pela centrifugação (Cf. WNA, 2009).
15 de vortex; eletromagnético (desenvolvido no Projeto Manhattan 7, porém logo abandonado); químicos e a plasma (WNA, 2009). Experimentos na utilização de centrífugas para a separação de misturas gasosas de diferentes massas moleculares ocorreram no final do século XIX. Uma planta protótipo funcionou nos anos 1940, mas foi descartada em prol da difusão gasosa, principalmente pelas dificuldades técnicas envolvidas: materiais e apoios que não suportavam a elevada rotação e as forças centrífugas associadas. Foi o desenvolvimento de materiais mais leves e resistentes que possibilitou o retorno da centrifugação à Europa e aos EUA, assim como, de forma experimental, à Austrália e ao Japão, dessa vez na forma de ultra centrifugação (emprega altíssimas velocidades no vácuo) (BRASIL, 2007c, p. 35) (FIG. 4). Um campo de força ultracentrífuga gerado dentro rotor separa os diferentes isótopos ao longo da direção radial, enquanto um fluxo axial de contracorrente é estabelecido para aumentar a separação dos isótopos (INB, 2009d). O atrativo desse método é que ele permite uma separação por estágio de aproximadamente duas vezes a capacidade de qualquer outro método em uso, além do fato de que o consumo de energia é estimado em cerca de 10% do processo de difusão gasosa. Nenhum dos demais processos em uso comercial no momento se aproxima em termos de eficiência em relação à ultracentrifugação pelo elevado consumo de energia (SILVA; MARQUES, 2006, p. 4). A unidade de medida da energia despendida no enriquecimento é chamada de Unidade de Trabalho Separativo UTS (em inglês, Separative Work Unit SWU), que pode ser definida em termos matemáticos, mas é mais facilmente entendida como a quantidade de energia necessária para levar 1 kg de material de um estágio para o seguinte. Milhões de UTS é a unidade mais comumente utilizada (IAEA, 2009a). 2.2.4 Reconversão O UF 6 enriquecido não é o composto de urânio apropriado para ser utilizado diretamente como combustível nuclear. Por isso, deve ser reconvertido (ou seja, uma nova conversão, desta vez do estado gasoso para o sólido) em pó de dióxido de urânio (UO 2 ), cujas 7 Nome código para projeto conduzido durante a Segunda Guerra Mundial, primordialmente pelos EUA (além de
16 propriedades físico-químicas são adequadas às severas condições existentes no núcleo do reator. 2.2.5 Produção de pastilhas e fabricação do combustível nuclear Para a produção das pastilhas, o pó de UO 2 é submetido ao processo de prensagem. Posteriormente, as pastilhas são levadas ao forno de sinterização sob temperatura de 1.750 C, em processo semelhante ao da fabricação de cerâmicas, quando adquirem a resistência necessária às condições de operação a que serão submetidas dentro do reator de uma usina nuclear. Elas têm a forma de um cilindro de 1 cm de comprimento e de diâmetro (FIG. 5) e, após, serem submetidas a diversos testes dimensionais, metalográficos e químicos estão aptas a compor o combustível nuclear (INB, 2009j). Um elemento combustível é formado por mais de 230 varetas (tubos de uma liga metálica especial zircaloy 8 ) rigidamente posicionadas em uma estrutura metálica formada por grades espaçadoras. Cada vareta tem 4 m de comprimento e 10 mm de diâmetro (FIG. 7). Nelas são armazenadas as pastilhas de UO 2. Um elemento combustível supre de energia 42.000 residências médias durante um mês (INB, 2009d). A maior parte das etapas do ciclo do combustível nuclear é realizada no país, como será apresentado a seguir. 2.3 O Ciclo do Combustível Nuclear no Brasil Por enquanto, o tipo de ciclo adotado pelo país é o aberto, i.e., o material nuclear passa pelo reator apenas uma vez e, após a utilização, é armazenado em local apropriado. Ainda não foi tomada decisão a respeito, tendo em vista o pequeno número de usinas (BRASIL, 2007c, p. 34). A Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear (CBTN) foi criada, em 1971, para projetar, construir e gerir a indústria nuclear no país. Em 1974, foi transformada na Empresa Nuclear Brasileira, a Nuclebrás (BRASIL, 1974). Em 1988, ocorreu a união desta com algumas de suas subsidiárias, passando a se chamar Indústrias Nucleares do Brasil S.A. Canadá e RU), para o desenvolvimento da primeira bomba atômica (Cf. MONGELLI, 2006, p. 4).
17 (INB), empresa de economia mista, vinculada à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). No Brasil, a prospecção, a lavra, o beneficiamento e a comercialização de urânio são monopólio da União, e os seus derivados são monopólio do governo, estabelecido no item XXIII do Artigo 21 da Constituição Federal. A ocorrência de elementos nucleares obriga o titular da autorização de pesquisa ou concessão de lavra a comunicar ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) sob pena de perder a autorização ou a concessão (BRASIL, 1974). A etapa da mineração e beneficiamento é feita na mina situada 9 no Município de Caetité, sul da Bahia, uma das mais importantes províncias uraníferas brasileiras. As reservas são estimadas em 100.000 t e suas características teor e dimensão de reservas, exclusivamente de urânio, sem outros minerais de interesse associados (3.000 ppm de urânio) favorecem exploração econômica e eficiente (INB, 2009h). A capacidade instalada é de 400 t/ano. A partir de 2012 será feita exploração de jazida de fosfato com urânio associado (fosfato uranífero), em parceria com a empresa Mineração Galvani S.A., na mina de Santa Quitéria (anteriormente chamada de Itataia), situada no Ceará. Como subproduto do processo será obtido um rejeito licoroso uranífero com apenas 1.000 ppm de urânio, que será processado pela INB numa instalação industrial separada, na mesma unidade, não havendo, assim, quebra do monopólio da União (ARANHA, 2008, p. 13). É a maior reserva conhecida de urânio no país (80.000 t U 3 O 8 ). A INB utiliza os serviços da empresa canadense Cameco para fazer a conversão (350 t/ano). Entretanto, essa tecnologia é de conhecimento do CTMSP, que participou do desenvolvimento do processo em escala piloto no Instituto de Pesquisas Energéticas (Ipen), por decisão do presidente Geisel, em março de 1979 (ALVES, 2009). Em escala industrial modesta, está sendo construída a Unidade de Demonstração de Hexafluoreto de Urânio (Usexa) (FIG. 8), cuja capacidade projetada era de 250 t/ano de UF 6, mas foi reduzida para 40 t/ano, o que servirá para suprir apenas às necessidades da MB 8 Liga metálica à base de zircônio (contração de zirconium alloy, em inglês), um metal com elevado ponto de fusão, dureza adequada, boa condutividade térmica, pequena seção transversal para captura de nêutrons térmicos e elevada resistência à corrosão (Cf. BRASIL, 2007c, p. 40). 9 É a única mina de urânio em operação em toda a América Latina (Cf. INB, 2009g).
18 (GUIMARÃES, [200-?]b, p. 3). Segundo Marques (2009), a sua prontificação está prevista para maio de 2010. Da mesma forma que para a conversão, a INB sempre utilizou serviços estrangeiros para o enriquecimento. É feita, atualmente, no consórcio Urenco 10, a um elevado custo (mais ou menos US$ 40 milhões/ano) (BRASIL, 2007b, p. 5). No entanto, a tendência é de que esse quadro aos poucos se reverta, pois, fruto de parceria tecnológica e comercial entre o CTMSP e a INB, está sendo instalada uma planta industrial de cascatas de ultracentrífugas, fabricadas naquele centro, na Fábrica de Combustíveis Nuclear (FCN), unidade da empresa situada em Resende, no Estado do Rio de Janeiro (INB, 2009e). O projeto prevê, em sua fase inicial, a instalação de dez cascatas em quatro módulos, até 2012, compondo uma capacidade total de 114.000 UTS 11, segundo Marques (2009) e Brasil (2007c, p. 96), o que responderá pelo suprimento de 100% das recargas de Angra 1 e de 20% de Angra 2. Como apenas a primeira cascata (inaugurada em 2006) está operando (o que corresponde a 2% das necessidades de Angra 1), a produção inicial será destinada à composição de um estoque estratégico em vez de alimentar os reatores, que continuarão a utilizar material enriquecido no exterior (RODRIGUES, 2009, p. 1). Está em avaliação a ampliação dessa planta de modo a atender às necessidades complementares de Angra 2 e futuramente também de Angra 3. Mesmo assim, a capacidade será de aproximadamente 3% do que existe atualmente instalado na Europa (Urenco e Eurodif) (MARQUES, 2009). As demais etapas, a reconversão, a fabricação de pastilhas e a montagem do combustível nuclear, já são realizadas na FCN, desde 1999. Para a reconversão, a capacidade instalada é de 160 t/ano de UO 2, enquanto para a fabricação de pastilhas e do combustível, é de 120 t/ano de UO 2 (MONGELLI, 2006, p. 156-157). A FCN Componentes e Montagem tem capacidade nominal de 250 t/ano de urânio, suficiente para a primeira carga de um reator de 1.300 MWe ou para recargas anuais de até três reatores deste porte. O próximo capítulo dedica-se a descrever o lento, árduo e bem sucedido trabalho desenvolvido por obstinados brasileiros em busca do domínio do ciclo do combustível nuclear. 10 Uranium Enrichment Company, consórcio formado por Alemanha, Holanda e RU (N. do A.). 11 Os números são divergentes. Para Tranjan Filho (2007a), a capacidade será de 115.000 UTS, e para Botelho (2009) e para INB (2009b, p. 3; 2009f, p. 2), 125.000 UTS (N. do A.).
19 3 A BUSCA PELO DOMÍNIO DO CICLO DO COMBUSTÍVEL NUCLEAR A história nuclear brasileira é antiga e rica em acontecimentos. A maior conquista da todas, o sucesso no enriquecimento do urânio, etapa necessária para completar o ciclo do combustível nuclear, só foi alcançada em 1982. De maneira singela, pode-se dizer que essa vitória foi fruto de um trabalho incessante de cientistas e pesquisadores brasileiros, apesar da sempre presente oposição dos EUA. As propostas norte-americanas de apoio nessa área, eram, no fundo, falsas promessas de transferência de conhecimentos, pois havia sempre embutidos instrumentos de cerceamento tecnológico 12, óbice recorrente no campo da Ciência e Tecnologia (C&T). Este capítulo aborda dois períodos de pesquisas, um conduzido essencialmente por instituições civis e outro liderado pela MB, que sempre tiveram como propósito obter o conhecimento necessário para a realização de todas as etapas do ciclo do combustível, com a finalidade de fabricar o combustível nuclear. 3.1 Tentativas iniciais frustradas As pesquisas nucleares iniciaram-se na então recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo (USP), baseadas em raios cósmicos, em 1934. No mesmo ano, foram desenvolvidas experiências com materiais radioativos por cientistas tanto nos EUA como na Europa 13. No Rio de Janeiro, foi criado o Laboratório de Física da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1939, e, dez anos depois, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que reuniu pesquisadores de qualidade internacional (MONGELLI, 2006, p. 138). Desde então, os cientistas brasileiros estiveram envolvidos na pesquisa de minérios nucleares, tão abundantes no solo, com o propósito de dar-lhes uma aplicação útil. 12 Cerceamento tecnológico é expressão utilizada para designar a restrição de transferência de tecnologia e de acesso a bens sensíveis, principalmente pelos países que alcançaram um desenvolvimento científico e tecnológico avançado (Cf. LONGO, 2007, p. 124). Tem o propósito de manter a superioridade tecnológica (Cf. LONGO apud BASTOS JÚNIOR; LIMA, 2008, p. 2). 13 Enrico Fermi, o casal Curie, Eisntein e Oppenheimer, dentre outros (N. do A.).