A (IM)PERMANÊNCIA DO ORIENTE NO SERTÃO DO BRASIL: CHEGADAS, PARTIDAS, TRANSFORMAÇÕES



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A (IM)PERMANÊNCIA DO ORIENTE NO SERTÃO DO BRASIL: CHEGADAS, PARTIDAS, TRANSFORMAÇÕES Bruno Mazolini de Barros O Oriente, desde a viagem de Marco Polo, sempre exerceu fascínio e curiosidade ao Ocidente, e o Oriente está aqui há algum tempo: no país, levas de imigrantes chineses chegaram já no século XIX; e os imigrantes japoneses, formalmente, no início do século XX. Eles vieram, ficaram e alguns até voltaram; o fascínio que o local de origem exerce acaba sendo estendido aos que vêm de lá. O trânsito deles está impresso na literatura brasileira. Nos contos Orientação, de Tutaméia, de João Guimarães Rosa, e Um oriental na vastidão, de A cidade ilhada, de Milton Hatoum, o Oriente está presente não só nos títulos, mas também na memória dos narradores e, em certo nível, nopróprio espaço que os acolheu. As direções que essas narrativas apontam são várias a imigração, a percepção do estrangeiro pelos nativos, o choque cultural, a atitude do oriental no país, e todas levam para um mesmo ponto: a permanência do Oriente no sertão, no interior do Brasil. No primeiro conto, Yao Tsing-Lao é um chinês que chega ao interior de Minas Gerais e que se estabelece como cozinheiro na casa do engenheiro local. Depois de algum tempo, consegue desenvolver uma atividade própria, e até se casa com uma sertaneja. Já no segundo conto, um japonês, KazukiKurokawa, em um primeiro momento um mero turista, acaba estabelecendo laços maiores e mais profundos no coração da Amazônia. As trajetórias deles no Brasil separadas pelos textos, pelos autores e pelo tempo têm diversos pontos em comum, toda elas caracterizadas pelo processo de transformação. 1 Metamorfoses A transformação do imigrante é esperada pela sociedade que o recebe, e eles são até encorajados a passarem por isso. Espera-se que o imigrante, com o tempo, assimile a cultura pré-existente, torne-se indistinguível dos nativos no que diz respeito à língua, vestimenta, diversão, etc.; em resumo, que ele assuma o modo de vida local (KYMLICKA, 2007). Nos dois contos, apesar de em diferentes níveis, esse aspecto do processo migratório, a transformação, é relevante, tanto em relação ao próprio imigrante quanto em relação ao nativo. Não se sabe qual o motivo da vinda de Yao Tsing-Lao para o interior de Minas Gerais, e, em sua nova terra, ele já sofre uma primeira transformação: o nome dele foi facilitado para

Joaquim (ROSA, 2001, p. 160), um nome em português. Mais tarde, para Quim, uma maneira mais informal de denominá-lo, o que já demonstra familiaridade com ele por parte de quem o chama assim. Depois do trabalho de cozinheiro, Quim prospera e vira um pequeno produtor rural, e passa a ser conhecido como Seô Quim. Para cada nome, um homem diferente: Yao Tsing-Lao chinês, Quim cozinheiro, Seô Quim pequeno proprietário de terra. À medida em que ele assumia novos papéis na sociedade para a qual migrou, o imigrante ganhou nomes diferentes; e, nesse conto, à medida que ele ganhava mais status na sociedade, mais local e significativo era o nome dele. Depois de assimilar nome e parte do modo de vida da região, Yao Tsing-Lao apaixonou-se, e outra personagem em metamorfose entrou em cena: Rita Rola. A moça com quem o imigrante se casou, Feia, de se ter pena de seu espelho (ROSA, 2001, p. 161), no que alcança o aparelho fonador de seu amante, não é mais Rita Rola, e sim Lola ou Lita. Com a transformação do nome, como ocorreu com o companheiro, vieram outras: A gente achava-a de melhor parecer, senão formosura (ibid.). Depois do início do processo de metamorfose da moça, depois de ela semelhar mesmo Lola-a-Lita (ibid.), ela é denominada pelo narrador por variações como a Rola, Lolalita, Rola-a-Rita, Rita a Rola e Lola Lita, e não mais por Rita Rola, seu nome original. A medida que vai se modificando mais, o nome vai variando também, e assim ela já não é a mesma do início do conto. A transformação de Rita vai além de se tornar mais bonita. O estopim dessa transformação mais intensa, de certa forma, está relacionado a um problema comum na atualidade: a dificuldade de convivência entre culturas diferentes. Esse tipo de intolerância,combustível de várias guerras atuais, em Orientação, foi o motivo da guerra pessoal de Quim com Rita. Depois de se casarem, Quim (que, curiosamente, casou-se de gravata, um elemento de vestuário tipicamente ocidental) ensinava-a modos e vestia-a com indumentárias orientais: seda, leques. O relacionamento, porém, nãosuportou as diferenças culturais, e o primeiro motivo de embate que aparece no conto é o fato de que a esposa [...] achava que o que há de mais humano é a gente se sentar numa cadeira (ROSA, 2001, p. 162). Foi difícil para Rita compreender um hábito que o chinês provavelmente mantinha: o de sentar-se de pernas cruzadas ou o de ficar de cócoras. A migração para o interior do Brasil causou transformações no chinês, mas não o homogeneizou à cor local. Ele manteve certas características, e ainda se empenhou para que Rita Rola adotasse alguns caracteres de sua terra de origem, ativamente empenhando-se em

modificá-la.as condições, no entanto, ainda não eram adequadas para Rita empreender essa transformação maior. Depois do conflito, Quim desapareceu, e Rita ficou com saudades e empreendeu, sozinha, a mudança que o marido talvez ficasse feliz em ver. A transformação que já havia começado com a paixão, quando a forma de Rita Tomava porcelana, terracota, ao menos; ou recortada em fosco marfim, mudada de cúpula a fundo (ROSA, 2001, p. 161), com o abandono, intensifica-se: assume trejeitos orientais, calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir (ibid., 2001, p. 163). Até o modo de andar mudou, e tinha passo enfeitadinho, emendado, reto, propinhos pé e pé (ibid.). No conto, Quim e Rita mudaram-se: Rita leva o marido a deixar o local, e ele mesmo que, no final, involuntariamente torna-a mais chinesa do que nunca. Imigração não acarreta somente consequências políticas e econômicas, mas íntimas também. Em Um oriental na vastidão, KazukiKurokawa, um turista japonês na Amazônia, também sofre metamorfoses. Depois de passar uns poucos dias sozinho em um barco, no rio Negro, o japonês voltou diferente, e o comandante que alugou o barco para ele disse à narradora: Quase não reconheci o japonês. Moreninho, parecia um caboclo de cabeça branca. E ainda aprendeu umas palavras da nossa fala. Me disse: Obrigado, mano, teu barco é pai-d égua. Pagou o dobro do que eu pedi. Curvou a cabeça, agradeceu em japonês e deu adeus com um sorriso miúdo. Eu disse: Arigatô, saionarakurokawa Sam. Palavras que aprendi com turistas. Mas aquele Kurokawa não era turista. Será que ele vai voltar? (HATOUM, 2009, p. 33) Praticamente irreconhecível, ele veio do passeio como um nativo, física e linguisticamente modificado. A pele dele estava como a dos locais, morena, bronzeada, além de ele usar expressões locais: mano, tratamento afetivo usado entre pessoas conhecidas ou não; pai-d égua, pessoa ou objeto de qualidade excepcional (FREIRE, 2011). O japonês, em poucos dias, já absorveu até as expressões linguísticas do local? Ele encontrou-se com alguém nesses dias em que navegou? O conhecimento dele era de português falado no continente africano, e não o do português brasileiro falado na região Amazônica. Quando, anos depois retorna, a Manaus, outra metamorfose já ocorreu em Kurokawa: a morte. Kurokawa era mais imigrante do que turista, e, segundo a narradora, a primeira viagem do japonês era mais de reconhecimento do que de conhecimento. Ele viajava sem máquina fotográfica (acessório tipicamente associado aos turistas japoneses, em uma imagem estereotipada), e o próprio comandante Américo, quem lhe emprestou o barco, acreditava que ele não era turista, provavelmente devido ao comportamento do japonês. Com a morte, KazukiKurokawarealizou migrações definitivas: a da vida para a morte, a do Oriente para o

Ocidente. Dessa forma, o imigrante homogeneizou-se ao local em duas instâncias: na primeira visita, tornando-se como os nativos; na segunda, tornando-se inseparável do próprio espaço que o recebeu, quando suas cinzas são espalhadas na Bacia Amazônica. 2 O retrato do Oriental Nos dois contos, o que poderia ser identificada com uma identidade oriental dos imigrantes são bem delineadas pelos narradores: parece haver um reconhecimento da maneira de ser das personagens que as legitimam como orientais: além das características físicas, havia o modo de trabalho, o sorriso, o aspecto contemplativo. Yao Tsing-Lao é apresentado como Sem cabaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com mínima mímica, cabeça rapada, bochêchas, o rosto plenilunar. Trastejava, de sol-nascente a vice-versa, sério sorrisoteiro, contra rumor ou confusão, por excelência de técnica (ROSA, 2001, p. 160). Magro, trabalhador incansável, cuidava dos afazeres de sol-nascente a vice-versa trabalhava tanto no Oriente e quanto no Ocidente ou trabalhava de manhã ao entardecer e era sério, mas sorridente. KazukiKurokawa era pequeno e de olhinhos apertados e miúdos (HATOUM, 2009, p. 30). Como Quim, aparentava ser incansável: Não parecia combalido pelo fuso horário, nem pelas vinte horas de voo com três escalas, nem pelo calor do começo da tarde (ibid.), era uma figura magra e pequena (ibid., 2001, p. 32). Recusou, sorrindo, a oferta de descansar antes do passeio no rio. Há ainda o aspecto da eficiência no trabalho. Quando a narradora é chamada para levar as cinzas do japonês, ela replica afirmando que não poderia faltar ao trabalho na universidade, mas o cônsul ora, um japonês já tinha à mão uma autorização da reitoria liberando-a do serviço. Os olhos do japonês admirou em silêncio (HATOUM, 2009, p. 31) o teatro Amazonas, e, De volta ao porto, Kurokawa não arredou o pé do barco. Sentado na proa, observava o rebuliço na praia. Quim ficava também era observador: Sentava-se, para decorar o chinfrim de pássaros ou entender o povo passar. Traçava as pernas. Esperar é um à toa muito ativo (ROSA, 2001, p. 161). Ambos os orientais aparecem nas narrativas como observadores, contempladores do cenário local. Eles desfrutam também da boa recepção dos moradores locais e tinham qualidades reconhecidas: Sábio como sal no saleiro, bem inclinado. Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade. Sabia pensar de-banda? Dele a gente gostava. O chinês tem outro modo de ter cara (ibid., p. 161-162, grifo nosso). O mesmo ocorreu com o

japonês. Além da simpatia que demonstrou com a anfitriã e com o comandante do barco, na praia: Kurokawa conversava com uma cabocla. Pareciam animados com a conversa; o cientista tocou no ombro da mulher e os dois riram quando ele apontou o rio Negro. Despediu-se com um aperto de mão e caminhou até o barco com passos apressados, chapéu de palha na cabeça. [...] Américo, talvez para se exibir, tocou o sininho da partida. (HATOUM, 2009, p. 31) Quim era reconhecido como sábio, imagem recorrente em relação ao oriental no imaginário ocidental e era bem quisto pelos moradores. Em relação ao japonês, a mesma coisa: além da cabocla anônima, o capitão Américo também tinha simpatia por ele, tanto que mais tarde confia-lhe, alugando, o próprio barco. No interior do Brasil, nesses contos, pelo menos, o imigrante, tanto o formal, o chinês, quanto o potencial, o japonês, são abertamente acolhidos, apesar de suas diferenças e transformações. 3 Interações e mundos desconhecidos A interação entre o mundo Ocidental e o Oriental não foi pacífica, não pelo menos para o chinês. Rita Rola, além de não entender o fato do marido não sentar em cadeiras, rejeitando, segundo ela, uma das características mais humanas, acusava-o: Não sou escrava! Disse: Não sou nenhuma mulher-da-vida... Dizendo: Não sou santa de se pôr em altar (ROSA, 2001, p. 162). Não se sabe de onde Rita tirou essas acusações, que revelam e obscurecem, ao mesmo tempo, dados do relacionamento íntimo dos dois, inacessíveis ao narrador. Será que o chinês a mantinha em regime de submissão, como é característico na relação entre homens e mulheres em muitas sociedades orientais? Será que ele a reprovava em relação a alguma conduta ou atitude sexual, ou acusava-a, por exemplo, de trai-lo? Ou Rita, simplesmente, talvez não gostava do tratamento que Quim lhe dava, mimando-a, vestindo-a com sedas e acessórios? O silêncio e o desaparecimento de chinês não dão as respostas para essas questões. A vida íntima do casal é desconhecida para o narrador, assim como o Oriente o é para Rita. Não se sabe para onde Quim foi, muito menos o porquê de ter ido parar o interior de Minas Gerais. O estojo que Kurokawa dá para a pesquisadora que o recebe em Manaus é significativo tanto para a história do japonês quanto para o do chinês. O ideograma inscrito no objeto era: No lugar desconhecido habita o desejo (HATOUM, 2009, p. 30).

Yao Tsing-Lao não era de Minas Gerais e, lá, em uma terra desconhecida para ele, encontra o amor, Rita Rola. Rita Rola, depois de abandonada, sente falta do companheiro que sumiu e instiga-se sobre seu paradeiro: Desapareceu suficientemente aonde vão as moscas enxotadas e as músicas ouvidas. [...] De que banda é que aquela terra será? Apontou-se-lhe, em esmo algébrico, o rumo de Quim chim, Yao o ausente, da Extrema-Ásia, de onde oriundo: ali vivem de arroz e sabem salamaleques. [...] Tivesse tido um filho... ao peito as palmas das mãos. (ROSA, 2001, p. 163) Em um local desconhecido para Rita agora habita o objeto de desejo dela: na Extrema- Ásia, Quim. De onde vem esse amor que não foi capaz de superar os conflitos culturais, por exemplo que agora faz com que Rita volte-se para um local, o Oriente, mas ao qual ela, cada vez mais, aproxima-se através de seu próprio corpo? O local desconhecido estaria dentro dela? Ela não teve um filho dele, uma forma de mantê-lo ou de tê-lo, mesmo Quim estando ausente. Como ela não o teve, ela então transforma-se, mantendo o Oriente em seu próprio corpo, como manteria se tivesse ficado grávida, por exemplo. Ela migra sua própria forma, aos poucos, para lá, para o desconhecido onde o desejo habita. Ela se homogeneíza com os chineses, como se tivesse migrado para a China. O ideograma também é significativo para o japonês, como aponta a narradora. Não se sabe de onde vem a forte relação dele com a Amazônia, não se sabe o que ele fez nos dias em que navegou sozinho, para querer que suas cinzas voltassem para o local visitado, não se sabe o porquê de querer que a pesquisadora que o recebeu fosse quem jogasse as cinzas naquele determinado ponto do rio. De qualquer maneira, Kurokawa transformou-se em pó, podendo assim manter seu corpo inseparável da Amazônia. 4 Símbolos da transitoriedade Korokawa queria que suas cinzas fossem espalhadas em um local bem específico. Depois de subirem o Rio Negro por horas e entrarem em um de seus afluentes, a narradora chega em um remanso grande, quase um lago, ou belo como um lago de águas espelhadas. Um círculo de águas clamas (HATOUM, 2009, p. 34). Em meio a um grande deslocamento Oriente-Ocidente e tantas transformações oriental-ocidental, vida-morte, em meio a tanto fluir, o pesquisador escolheu um local calmo, quase estático, onde suas cinzas seriam espalhadas.

O rio e o fluir de suas águas simbolizam a possibilidade universal e a fluidez das formas (F. Schuon), o da fertilidade, da morte e da renovação. O curso das águas é a corrente da vida e da morte (CHEVALIER, 2009, p. 780, grifo do autor). Todo o significado simbólico do rio está compreendido pela transformação. E ele é um símbolo que impregna Um oriental na vastidão: o japonês era biólogo de água doce, e deseja viajar pelo Rio Negro depois conhecer vários rios na África e na Ásia; a personagem retirou-se no rio quando visitou Manaus pela primeira vez; ele escolheu ter as cinzas depositadas no rio; toda essa relação dele com rios resultou em metamorfoses. A possibilidade universal e a fluidez das formas que o rio representa pode ser abordada como a possibilidade de o ser humano se transformar: Kurokawa se transforma em caboclo do norte do Brasil depois da viagem no rio, ele assume uma outra forma entre tantas outras possíveis para um ser humano. Depois, a forma dele fica mais fluida quando transformada em cinzas e, dessa forma, com o advento da morte, ele pode se fundir melhor com o espaço, migrar melhor nele. Misturado ao rio, ele continua a existir, a existir na Amazônia, renovado, a existir em uma nova forma. Ao final da cerimônia fúnebre, o sol está se pondo no rio. Depois Não havia mais claridade, e a superfície escura do remanso alcançava o céu (HATOUM, 2009, p. 35). O sol nasce no Oriente para se pôr no Ocidente, e, com o desaparecimento da luz, com o anoitecer, o rio se mistura ao céu, assim como as cinzas de Kurokawa se misturaram à escuridão das águas do Rio Negro. O japonês nasceu onde o sol nasce e, com a morte, foi para onde o sol se põe, morre. O desejo de assumir a forma do rio pode vir de um possível desejo de Kurokawa de tornar-se parte vivente daquelas águas escuras; e, curiosamente, por meio da noção de cor, pode se explicitar essa vontade de pertencimento. O japonês fica da cor morena depois do passeio, e, para o comandante Américo, isso o deixava parecido com os caboclos; ele compara, na margem do rio, a cor da pele da cabocla, uma nativa, com a cor do rio; por que não, então, assumir a cor do rio fazendo parte dele e, assim, pertencer definitivamente ao lugar? Em Orientação o rio também aparece em uma imagem significativa do conto. Após narrar sobre a transformação que se inicia em Rita Rola e comentar sobre o amor do chinês pela sertaneja, o narrador postula: O mundo do rio não é o mundo da ponte (ROSA, 2001, 161). O narrador parece não compreender a metamorfose que se empreende na moça, nem o tipo de admiração do chinês por ela.

Como ele já sabe do desenlace da relação ao narrar, parece já anunciar a incompatibilidade deles ou a impossibilidade dos dois darem certo como casal. Se o rio é o mundo das possibilidades universais e das formas fluidas, a ponte é um mundo de duas opções, estar de um lado ou de outro, e impõe ao homem uma escolha, que pode salvá-lo ou condená-lo (CHEVALIER, 1990). Em Orientação, os dois mundos existem, apesar de não complementarmente. Por um lado, Quim e Rita conseguem transitar pelo mundo do rio: o chinês adapta-se ao Brasil, vira Sêo Quim, com propriedade e mulher na nova terra; Rita fica mais bonita e, mais tarde, transforma-se com mais intensidade. Ao mesmo tempo, durante os conflitos conjugais, parecem perderem a fluidez e maleabilidade e assumirem o mundo da ponte: e a escolha, pelo menos para Rita, foi uma condenação, ela não ficou feliz sem o marido que não sentava em cadeiras.quim fez a escolha de continuar como sempre foi, contra rumor e confusão (ROSA, 2001, p. 160), e saiu Sínico, sutilzinho, deixou-lhe a chácara, por polidez, com zumbaia (ibid., 2001, p. 163). E, sem saber do paradeiro dele, não se sabe se a escolha de desaparecer o salvou ou o condenou. Diferentemente deles, Kurokawa era claramente do mundo do rio, tanto que preferiu unir-se em essência a ele, tornar-se fluido como ele. Sem Quim, Rita assume de vez a fluidez do mundo do rio: Rita-a-Rola, em tanto em quanto, apesar de si, mudara, mudava-se. Nele não falava; muito demais. [...] Aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem sim. Sua pele, até, com reflexos de açafrão. (ibid., 2001, p. 163) Rita torna-se cada vez mais oriental. O modo de ficar quieta e contemplativa, ciente, além do sorriso, a aproxima bastante da descrição que os narradores fazem de Quim e Kurokawa. Além disso, ela detém uma das características que explicitam o pertencimento a um determinado local, uma das que também explicita em Um oriental na vastidão: a cor da pele, que, no caso de Rita, já ganhava tom de açafrão, amarelava. 5 O Oriente persiste no Ocidente O Oriente não persiste só em Rita Rola e na Bacia Amazônica, mas também no discurso e na memória dos narradores. E ele já está presente no próprio título dos contos: o de Guimarães Rosa expressa o processo de transformação em oriental, o de Milton Hatoum, o oriental em meio a grandiosidade da floresta.

Em Um oriental na vastidão não está explícito, mas Kurokawa não é o primeiro imigrante japonês na Amazônia, como talvez Quim seja o único chinês daquela região no tempo em que transcorre o que é narrado. Os primeiros conterrâneos do biólogo chegaram em Manaus no final da década de 1920, formando uma colônia que se tornou responsável pelo desenvolvimento agrícola da região. Como aparece no conto, Manaus conta com um consulado geral, o cônsul é quem pessoalmente organiza a cerimônia fúnebre de Kurokara. O Oriente ainda aparece simbolicamente no meio do país quando a narradora lembra que havia Na popa da lancha do consulado, a bandeira do Japão entre as do Amazonas e do Brasil (HATOUM, 2009, p. 33). Fora dessa ideia de observar o Oriente no meio do Ocidente, isso seria um dado irrelevante. De qualquer forma, ela identifica as bandeiras. Ela é uma pesquisadora acadêmica, e tem certo conhecimento de mundo, assim como quem narra a saga de Quim no interior do Brasil. Já o narrador de Orientação injeta em todo o relato, do começo ao fim, elementos que remetem à China: ópio, bambus, pólvora, porcelana, seda, dragão, bússola. Assim, dentro da narrativa ocidental dele não há somente a história de um oriental no sertão, mas também elementos orientais com uma função. A presença deles parece ser uma tentativa de manter o interlocutor ligado ao Oriente, de maneira que a imagem do local de origem de Quim não fosse esquecido. O Oriente não está só nas personagens, está, dessa forma, no própria constituição do discurso. A partir da variação fonética gerada pela pronúncia do nome de Rita pelo chinês, o narrador aplica na sertaneja que se orientaliza, jogando com o nome dela, a sombra da personagem de uma famosa obra da literatura ocidental: Lolita. Claro que o modo de ser lolita não está atrelado ao tempo e ao espaço, mas é, na narrativa, um ícone cultural do Ocidente que é aplicado à uma mulher que está em processo de orientação. É, de certa forma, como se Oriente e Ocidente não pudessem se separar, pelo menos no discurso de quem narra. Esse jogo com Lolita revela outros dados: a história é contada depois de 1955, ou seja, depois da publicação do livro de Nabokov, visto que o nome passa a ser aplicado para caracterizar determinado comportamento a partir da publicação do romance. Além disso, revela o nível de instrução do narrador: ele sabe aplicar o termo, pode ter lido o livro. Ele ainda joga, em mais um sinal de erudição, assim como com o nome da personagem do escritor russo, com a famosa expressão latina Veni, vidi, vici. Na narrativa, ela aparece como vindo, vivido, ido (ROSA, 2001, p. 160). Não deixa de aplicar novamente uma nova sombra ocidental em uma personagem do conto: desta vez, a sombra de César.

Ambos narradores foram testemunhas desse Oriente que pode existir dentro do sertão. O narrador de Guimarães Rosa afirma: Dele a gente gostava. Mas esse a gente pode ser tanto nós, o narrador incluído, quanto a população local que acolheu o chinês, eles, o povo. De qualquer forma, ele tem conhecimento da história e ela persiste na memória dele, assim como a história do japonês persiste na memória da pesquisadora. Os dois, dessa maneira, também foram transformados: o Oriente está dentro deles. As migrações, nos contos, não são, consequentemente, somente geográficas, mas também de formas de ser. Tanto Quim quanto Kurokawa vieram, viveram e foram, cada um a sua maneira. Por causa deles, o Oriente permaneceu no sertão do Brasil: um pouco do Japão misturou-se nas águas da Bacia Amazônica; um pouco da China manifestou-se no corpo da sertaneja Rita Rola. Por causa deles, permaneceu na memória dos narradores e agora figura também na literatura brasileira. Referências CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. FREIRE, Sérgio. Amazonês: expressões e termos usados no Amazonas. Manaus: Valer, 2011. KYMLICKA, Will. Multicultural Odysseys: Navigating the New International Politics of Diversity. New York: Oxford University Press, 2007. ROSA, João Guimarães. Orientação. In: ROSA, João G. Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 160-163. HATOUM, Milton. Um oriental na vastidão. In: HATOUM, Milton.A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.