A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE NA VISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Sadraque Oliveira Rios (UFBA) Vera Lúcia Peixoto Santos Mendes (UFBA) RESUMO O presente artigo investiga as diretrizes teóricas que sustentam o paradigmático julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) no Agravo Regimental contra a decisão na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175/2010 (AG. REG. STA 175/2010). São estabelecidos em blocos os argumentos que divisam a controvérsia e identificada a posição do STF para a matéria. Por fim, são esquematizados os parâmetros técnico-jurídicos estabelecidos na aludida decisão para a judicialização do direito à saúde, particularmente, quanto ao fornecimento de medicamentos. Palavras-chave: Políticas Públicas. Saúde. Judicialização.
OBJETIVO O objetivo do presente artigo é analisar as teorias e os argumentos que sustentam o paradigmático julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) no Agravo Regimental contra a decisão na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175/2010 (AG. REG. STA 175/2010), em que ficaram estabelecidos parâmetros técnico-jurídicos para a judicialização do direito à saúde, particularmente, quanto ao fornecimento de medicamentos. REFERENCIAL TEÓRICO A judicialização do direito à saúde constitui etapa inelutável do atual estágio de desenvolvimento das Democracias Modernas. O fortalecimento institucional do Judiciário e o estabelecimento de um vasto rol de direitos sociais no Brasil pós-ditadura, os quais envolvem uma prestação (positiva) pelo Estado, constitui a gênese da judicialização das políticas públicas como forma de atribuir efetividade à Constituição Federal de 1988. Neste cenário, os estudiosos dividem-se, basicamente, em duas correntes. Primeiro, há aqueles que defendem: a autonomia do Executivo na formulação de suas agendas políticas, incluindo o planejamento e a execução do orçamento em saúde; a rigidez das competências de organização e manutenção do Sistema Único de Saúde; e a escassez de recursos financeiros públicos como elemento condicionante da existência de direitos fundamentais (reserva do possível). Neste grupo, destacam-se a professora e epidemiologista Rita Barradas Barata e os professores Gustavo Amaral e Danielle Melo, dentre outros. A segunda corrente busca legitimar os seguintes argumentos: existência de um núcleo mínimo de direitos (incluindo a saúde) que não pode ser objeto de restrição pelo Estado; responsabilidade solidária entre os entes políticos na prestação de ações de saúde, podendo qualquer um deles ser acionado judicialmente pelo cidadão; possibilidade do Judiciário colmatar a omissão governamental em políticas públicas de saúde, a fim de impedir o retrocesso das conquistas sociais alcançadas pela Constituição Federal de 1988, atribuindo-lhe ampla e irretocável eficácia. São expoentes desse segundo grupo, os professores Gilmar Mendes, J. J. Gomes Canotilho, Guido Calabresi e Carlos Valder do Nascimento. Enfim, as discussões teóricas polarizadas são relevantes para a compreensão do objeto deste artigo, sobretudo na investigação da conduta do Supremo Tribunal Federal no julgamento em referência. METODOLOGIA Este artigo desenvolve uma breve pesquisa de natureza qualitativa. Para tanto, realiza-se estudo do seguinte caso: julgamento do Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental contra a decisão na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175/2010, por representar singular apreciação do Judiciário no elenco de decisões em matéria de políticas públicas. Dentre as técnicas metodológicas existentes, é utilizada a análise descritiva de documentos, especificamente, dos votos vencedores dos ministros do Supremo Tribunal Federal para o julgamento em questão, bem como o resultado da audiência pública que precedeu o julgamento, visando a identificar, por afinidade e em blocos, os argumentos e as teorias que lhe subsidiam, a partir do referencial teórico aqui estabelecido. Finalmente, como estratégia de análise, foi estabelecida a análise de discurso, como forma de descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos,
conduzindo a exames sistemáticos e a uma compreensão de seus significados em um nível que vai além de uma leitura comum. RESULTADOS E DISCUSSÃO Na primeira parte dos resultados encontrados, observam-se o agrupamento, em blocos opostos, das seguintes principais teorias: 1º BLOCO Teoria da reserva do possível, teoria dos custos dos direitos e a teoria da separação dos poderes - âncoras da defesa do Executivo contra a interferência do Judiciário no âmbito de implementação de políticas de saúde. 2º BLOCO Intangibilidade do mínimo existencial, escolhas trágicas, vedação ao retrocesso de direitos sociais, supremacia da dignidade da pessoa humana, responsabilidade solidária dos entes federativos em matéria de saúde pública, combate à erosão da consciência constitucional e à omissão inconstitucional. Na segunda parte dos resultados, verificou-se a nítida adesão do STF ao segundo bloco teórico para decidir questões envolvendo políticas de saúde. Finalmente, no último segmento de resultados, identificaram-se os critérios técnicojurídicos adotados pelo STF, a partir da realização de audiência pública com especialistas e entidades representativas na matéria de saúde, para decidir questões nesta seara, tendo assim o esboço analítico: 1. Considerar a existência de política pública que abranja a prestação de saúde reivindicada pelo Autor da ação. Em caso positivo: o Judiciário não estará criando política pública, mas determinando o seu cumprimento. Em caso negativo: Distinguir se a não prestação decorre de uma omissão legislativa/administrativa, de uma decisão administrativa em não fornecê-la ou uma vedação legal à sua dispensação. 2. Examinar as razões que levaram o SUS a não fornecer a prestação desejada. 3. Privilegiar o tratamento fornecido pelo SUS, em detrimento da opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política pública existente. 4. Atentar para a necessária e periódica revisão dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS. No caso de inexistência de tratamento na rede pública, convém distinguir: Tratamentos puramente experimentais: os tratamentos experimentais (sem comprovação científica da eficácia) são realizados por laboratórios ou centros médicos de ponta, consubstanciando-se em pesquisas clínicas; a participação nesses tratamentos rege-se pelas normas que regulam a pesquisa médica e, portanto, o Estado não pode ser obrigado a fornecê-los. Novos tratamentos ainda não testados pelo SUS: a ausência de protocolo clínico no SUS pode ser impugnada no Judiciário, contudo exige ampla (e maior) instrução probatória.
CONCLUSÃO A judicialização de políticas públicas constitui a nova feição do Judiciário moderno nas Democracias Constitucionais. Afinal, a preocupação em conceituar os Estados ocidentais contemporâneos como Estados de Direito requer a existência de mecanismos que assegurem a plena eficácia e integridade dos direitos básicos garantidos aos cidadãos. Neste panorama, dentre as variadas e antagônicas teorias relacionadas à implementação da Política de Saúde, cujo direito básico do cidadão tem berço constitucional, verificou-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AG. REG. STA 175/2010, aderiu ao segundo bloco teórico acima descrito, ainda que contemporizando alguns rigores teóricos, já que estabeleceu o SUS como via preferencial. De qualquer modo, o STF privilegiou a solução que compele o Poder Público, em face da insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras escolhas trágicas, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial (complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna), em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Constituição Federal de 1988. BIBLIOGRAFIA AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos? In: SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. ASENSI, Felipe Dutra; ROSENI, Pinheiro (orgs.). Direito sanitário. São Paulo: Elsevier - Campus, 2011. BARATA, Rita Barradas; CHIEFFI, Ana Luiza. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e eqüidade. Cadernos de Saúde Pública. vol. 25. nº 8. Rio de Janeiro. Ago. 2009. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.. O mínimo existencial e algumas fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. In: TORRES, Ricardo Lobo (org). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Revista de Direito do Estado, n. 3 (jul./set. 2006). pp. 17-54. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira Mendes. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. EMENTA: Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento. STA 175 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES (Presidente), Tribunal
Pleno, julgado em 17/03/2010, DJe-076 DIVULG 29-04-2010 PUBLIC 30-04-2010 EMENT VOL-02399-01 PP-00070. CALABRESI, Guido; BOBBITT, Philip. Tragic Choices. New York: W. W. Norton & Company, 1978. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014. CIARLINI, Álvaro Luis de A. S. Direito à Saúde - paradigmas procedimentais e substanciais da Constituição - Série IDP. São Paulo: Saraiva, 2013. GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. (reimp.) Coimbra: Almedina, 2003. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: why liberty depends on taxes. New York: W. W. Norton & Company, 2000. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Ariel, Barcelona, 1983. KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2011. KRELL, Andreas J.. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2002. MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2014. NASCIMENTO, Carlos Valder do. Direito fundamental à saúde. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de direito constitucional. V. 2. São Paulo: Saraiva, 2012. SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html Acesso em: 01 set. 2014. TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.