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O CLARÃO

O CLARÃO

Obras da autora ROMANCE O sexophuro, 1981 O Papagaio e o Doutor, 1991, 1998 (França, 1996; Argentina, 1998) A paixão de Lia, 1994 O clarão, 2001 (Finalista do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura) O amante brasileiro, 2004 Consolação, 2009 ENSAIO Manhas do poder, 1979 Isso é o país, 1984 O que é amor, 1983; E o que é o amor?, 1999 Os bastidores do carnaval, 1987, 1988, 1995 (França, 1996) O país da bola, 1989, 1998 (França, 1996) ENTREVISTA A força da palavra, 1996 O século, 1999 (Prêmio APCA) CRÔNICA Paris não acaba nunca, 1996, 2008 (China, 2005) Quando Paris cintila, 2008 CONSULTÓRIO SENTIMENTAL Fale com ela, 2007 INFANTIL A cartilha do amigo, 2003 TEATRO Paixão, 1998 A paixão de Lia, 2002 O amante brasileiro, 2004 Brasileira de Paris, 2006 Adeus, Doutor, 2007

Betty Milan O CLARÃO (ficção)

para Carlito Maia, o amigo dos amigos

Tudo, na amizade, nasce do coração. Cícero, De amicitia

O PEDIDO

1 Quem não está sujeito à crença?

João mudo? Da noite para o dia... Não, isso não. Resta chorar. Ou recorrer à Mãe d Água, fazer um pedido. Possa João me telefonar. Diz isso para si mesma, pega a rosa do vaso e sai de casa. Atravessa a rua com os olhos postos no mar. Verdade que ele não pode falar, como está escrito no fax? Ou terá sido uma piada de mau gosto? Impossível. Quem ia fazer isso no último dia do último ano do milênio? Para que, Deus meu? Não querendo acreditar no fato, Ana caminha duvidando do que sabe. Já no calçadão se lembra de uma frase de João enviada aos conhecidos todos no ano anterior: Penso nos outros logo existo A frase não é penso logo existo, e sim penso nos outros logo existo. O que é bem diferente. João não concebe a sua existência sem levar em conta a dos outros e por isso é querido. Ele não é só um publicitário, é um filósofo popular. A sua verdadeira estrela é a generosidade. Nunca mais ouvir João? Ficar sem o Por que você não faz isso Ana, se é isso que você de fato quer? Ou então Você está certa de que o caminho é este? O caminho talvez seja outro. 14

Ana não suporta a ideia da mudez. O amigo faz por ela o que ela não pode fazer por si. Tanto vê quanto ouve o que ela não é capaz de ver nem de ouvir. Por isso mesmo, aliás, ele é um amigo. Quem melhor para clarear as ideias e iluminar o caminho quando a paixão cega? Assim, na esperança de que Iemanjá receba a flor e atenda ao pedido, desce até a praia, que está vazia. Move os pés de um lado para o outro, acariciando-os na areia. Com o movimento, afunda-se um pouco, e daí, implantada, olha o sol que nasce no horizonte e vai eliminando uma a uma as nuvens. Até o urubu que plana voando em círculos fica radioso neste céu. E a orla de Copacabana evoca a lua. Talvez esta praia seja mágica por isso. Talvez pela cadeia de montanhas que a bruma torna irreal. Copacabana é a lua e a bruma. A paisagem velada, o mar que cintila Como um céu molhado de estrelas. Uma piroga que passa, um homem na proa e outro na popa. E a gaivota como uma letra no céu, um V que se abre e se fecha e tchum mergulha para pescar. Não há uma só nuvem neste primeiro de janeiro e a esperança de Ana cresce. O seu pedido não há de ser feito em vão. A presença da estrela da manhã disso a certifica. Não sabe explicar o porquê e não se importa. Quem não prefere a certeza da cura à incerteza da doença? 15

Alguns passos e ela está diante de uma cova de areia, duas palmas vermelhas no centro. Olhando para a frente, vê que o chão até o mar é feito das mesmas covas, todas elas abertas ao som dos atabaques ainda agora, madrugada do dia 31. O meu pedido vai ser um entre os outros. O pedido de Ana, que diz eu não acredito em nada e agora espera socorro da fé. Mas como não esperar? Além de inacreditável, a mudez de João não é concebível. Nem uma só palavra para quem sempre disse não à censura e ensinou que, na falta de saída, a gente escapa pela entrada! Agora, o silêncio, a clausura. E quem está enclausurado é o amigo da liberdade, é João. Sim, o amigo de Ana, a que também se quer livre e, por isso, nele se espelha. 16

2 A graça depende do pedido

Precisa fazer o pedido logo, entregar a rosa para Iemanjá. Por que não subir na Pedra do Leme e de lá jogar a oferenda? Lá de cima, lá do alto? Caminha ouvindo o marulho e observando o raio de sol que segue os seus passos. Já na base da Pedra se detém porque vê nela um seio monumental. O seio da Mãe Terra que a Mãe d Água acaricia. É a força, a cura de João. Ele falando e eu com a certeza de que ele vai telefonar. Para cima Ana, pelo Corredor dos Pescadores. Um cacto. Mais um. Outro. Todos eles como serpentes... A mesma arrebentação de sempre. Vem, bate e volta. Dois pés fora da água? Sim. Um morto será? Uma criança que mergulha, um menino negro com saudade de Iemanjá. Sau-da-de... Saudade, Deus meu! Mas e a baiana o que faz? Turbante, duas argolas nas orelhas e uma saia de babados até o chão. Branco da cabeça aos pés. A praxe é estar de branco para o pedido. E eu aqui de verde. Iemanjá pode não me dar ouvidos. Mas voltar já não é possível. No fim do corredor, Ana enxerga o mar aberto, deixando-se tomar pelo azul-marinho que é feito da noite das águas e da luz. Marinho, azul, azul-marinho, repete. Para que faz isso? Para invocar a Mãe d Água? 18

Sabe como é grave o momento; sabe que do pedido depende a graça. Pode a atriz ignorar a força da palavra? Não, e ela não quer que a fala lhe escape. Porém, é isso que acontece e Ana se ouve dizendo: João não é mudo, ele está mudo. Murmura a frase até se dar conta de que expressa o desejo de ver o amigo restabelecido. Não, não é mudo. Apenas está. Vai se curar. E o que restaria de nós se ele perdesse a fala definitivamente? Agora que eu estou no Rio e ele em São Paulo. E, ainda que nós estivéssemos na mesma cidade, o que restaria? Verdade que a só presença do amigo pode bastar. Não quando um dos dois se encontra impossibilitado de falar e a impossibilidade é um tormento. Iemanjá, acrescenta ela, antes de possa João se curar. Daí, abrindo a mão, entrega a rosa ao mar. 19