O mito do conflito entre ciência e religião: até quando?

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Transcrição:

O mito do conflito entre ciência e religião: até quando? Tiago Valentim Garros 1 RESUMO Ciência e religião são ainda vistas como inimigas lutando por um mesmo território. No entanto, essa tese do conflito tem raízes bastante conhecidas e já foi academicamente superada nos países anglófonos. Ademais, vê-se claramente uma aproximação entre os campos através de múltiplos esforços de diálogo. Apontaremos neste artigo alguns destes esforços e recomendaremos que a academia brasileira volte os olhos para essa nova e promissora área de pesquisa. Palavras-chave: Ciência e Religião; Tese do Conflito. ABSTRACT Science and religion are still seen as enemies battling for the same territory. However, this conflict thesis has very well-known roots and has been academically surpassed in English-speaking countries. Also, one can observe an approximation between the areas through numerous dialogue efforts. In this article we will point out some of these efforts and will recommend that the Brazilian academy turn its eyes to this new and promising field of studies. Keywords: Science and Religion; Conflict thesis. Considerações iniciais O célebre scholar das relações entre as ciências naturais e a religião Ian G. Barbour (1923-2013) apontava o modelo do conflito como um dos 4 modelos possíveis de se entender as relações entre as duas áreas. Segundo tal modelo, ciência e religião estariam em eterno conflito, competindo por um mesmo espaço no campo da busca pela verdade. A questão da evolução biológica e do criacionismo dentro do cristianismo exemplifica muito bem tal concepção. Segundo Sanches, o cenário atual parece forçar o indivíduo a fazer uma escolha do tipo ou/ou : a) aceito a Bíblia, logo não aceito a evolução: sou criacionista; b) aceito a evolução, logo, questiono a Bíblia e tenho problema com o cristianismo (SANCHES, 2009, p.12). Na era da informática participativa, basta ver toda e qualquer notícia publicada em qualquer portal de notícias que trate de alguma 1 Mestre e doutorando em Teologia pelas Faculdades EST, licenciado em Ciências Biológicas pela UFRGS (2004). Bolsista Oxford-Templeton em Ciências e Religião no Ian Ramsey Centre for Science and Religion, University of Oxford (2016) e bolsista do CNPq. Todas as traduções são próprias. Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 1

descoberta ou novidade no campo das ciências naturais. Invariavelmente, os comentários abaixo da reportagem versarão sobre religião e ciência, normalmente pendendo para o lado do ceticismo quanto à validade ou veracidade da descoberta científica, pois sua aceitação parece indicar a negação da crença do indivíduo em Deus, ou para o completo rechaço de toda e qualquer religião e crença em um Criador. Estão aí colocados os dois grupos dicotômicos: os defensores da ciência, que se sentem ultrajados ao verem comentários de religiosos em uma notícia que não lhes pertence, e os defensores da fé, que, por sua vez, sentem sua crença agredida ao verem qualquer menção sobre um cosmos sem menção ao Criador deste cosmos. É a ciência e a religião como duas narrativas equivalentes, com perspectivas competitivas, tratando do mesmo objeto: a natureza da realidade. E é preciso escolher uma delas. Os inteligentes, ou como prefere Richard Dawkins, os brights 2, obviamente escolherão a ciência, pois religião é coisa de obscurantistas, retrógrados, intolerantes, ou, em bom português, idiotas, burros e estúpidos. Muito tem se falado sobre o papel do chamado neo-ateísmo de Dawkins para popularização dessas ideias, e não é nosso intuito tratar especificamente deste movimento aqui. Mas o fato é que tal concepção de conflito é lugar comum tanto na sociedade como na academia, e no Brasil isso não é diferente. Mesmo quem deveria saber melhor, a saber, os acadêmicos, em grande medida ainda se encontram presos a esta ideia de que há um conflito intrínseco, de nível epistemológico e até histórico entre ciência e religião. O problema é que nada pode ser mais longe da realidade e isso pode ser confirmado tanto por estudos (nem tão) recentes, como por exemplos de ordem prática do que tem acontecido nos últimos 20 anos na área acadêmica chamada Ciência e Religião. Nas poucas páginas a seguir tentaremos explorar brevemente essas questões. A criação do mito do conflito A literatura especializada em história da ciência hoje é unânime em afirmar que o que hoje chamamos de tese do conflito entre ciência e religião (chamado em inglês de conflict thesis ou warfare model) é uma fabricação do século XIX. Ronald Numbers, 2 O termo bright foi uma sugestão do biólogo Paul Geisert e da educadora Mynga Futrell para encabeçar uma campanha que tentava substituir o termo atheist devido as suas conotações negativas, e assim, estimular que os ateus saíssem do armário e aumentassem a sua influência na sociedade. Ele serve para identificar os adeptos do movimento hoje conhecido como neo-ateísmo. Cf. GORDON, Flávio. A Cidade dos Brights: Religião, Ciência e Política no Movimento Neo-Ateísta. xii; 411f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2010, p. 19-22. Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 2

respeitado historiador das relações ciência/religião, chama a tese de historicamente falida (NUMBERS, 1985, p. 80) e esclarece: Durante a maior parte da história moderna, ciência e religião não estiveram em um estado de conflito. O conflito, ou melhor, a noção de um conflito, surgiu mais ou menos nos últimos 130 anos. Certamente, isso não ocorreu durante a chamada revolução científica do século XVII, quando, em geral, a ciência e a religião eram fundidas em um empreendimento comum chamado de filosofia natural. (...). Especialmente no final do século XVIII, vemos muito mais um esforço conjunto para tentar separar os dois e colocá-los um contra o outro. Isto ganha momento no século XIX, [quando] havia um sentimento entre algumas partes que ciência e religião poderiam estar em conflito em certas questões. Mas o público, em sua imensa maioria, acreditava que a ciência poderia ser harmonizada com a religião. Afinal, um dos modelos mais prevalecentes foi chamado de "dois livros", de que Deus se revelou tanto no Livro da Natureza como nas Escrituras. E que como Deus foi o autor de ambos os livros, era impossível que os dois pudessem entrar em conflito. Somente interpretações errôneas de um ou do outro levariam ao conflito (NUMBERS, s.d., entrevista). Determinante para a concepção de que ciência e religião estavam em conflito foi a publicação de dois livros até hoje bastante influentes, mas que estudos dos últimos 40 anos revelaram ser cheios de imprecisões e marcados por má qualidade de pesquisa acadêmica. São eles A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom de Andrew Dickson White (1896) e o History of the Conflict between Religion and Science de John William Draper (1874). Ferngren afirma: Enquanto alguns historiadores sempre consideraram a tese de Draper-White como simplista e que distorce uma relação complexa, no final do século XX ela sofreu uma reavaliação mais sistemática. O resultado tem sido o reconhecimento crescente entre os historiadores profissionais de que a relação entre religião e ciência tem sido muito mais positiva do que se pensa. Embora as imagens populares de controvérsia continuem a exemplificar a suposta hostilidade do cristianismo a novas teorias científicas, vários estudos têm mostrado que o cristianismo tem, por vezes, nutrido e incentivado o esforço científico, enquanto outras vezes os dois coexistiram sem nem tensão e nem tentativas de harmonização. Se Galileu e o Julgamento Scopes vêm à mente como exemplos de conflito, eles eram exceções e não a regra (FERNGREN, 2000, p. xii). Segundo as pesquisas mais recentes, as relações entre ciência e religião são diminuídas e mal representadas quando se sugere apenas o que White e Draper sugeriram. Por isso, John H. Brooke prefere utilizar a tese da complexidade para se referir aos modos de relacionamento entre ciência e religião (BROOKE, 2014). Sobre isso, David C. Lindberg, no mesmo volume citado acima, comenta: Não havia guerra entre a ciência e a igreja. A história da ciência e do cristianismo na Idade Média não é uma história de supressão, nem de seu oposto polar, apoio e encorajamento. O que encontramos é uma interação que exibe toda a variedade e complexidade que conhecemos em outros âmbitos do empreendimento humano: conflito, acordo, compreensão, mal-entendido, Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 3

acomodação, diálogo, alienação, construção de causa comum e o andar em caminhos separados (LINDBERG, 2000, p. 303, In: FERNGREEN, 2000). Se do ponto de vista histórico o conflito entre ciência e religião é fundado em parcialidade analítica e uma boa dose de má informação, do ponto de vista epistemológico também não há fundamento para a afirmação de que se tratam de duas narrativas em competição. Por razões de espaço, deve ser suficiente mencionar a famosa ilustração usada por John Polkinhorne sobre níveis de explicação (POLKINGHORNE, 2007, p. 74). Imagine uma chaleira fervendo ao fogo. Por que ela está a ferver? O cientista oferece a sua explicação: a combustão de hidrocarbonetos gera calor que eleva a temperatura da água até que sua pressão de vapor seja igual à pressão atmosférica e depois ferva. O teólogo, a seguir, expõe a sua explicação: quero fazer uma xícara de chá. Ambas as explicações estão corretas, e de maneira nenhuma competem entre si. Estão apenas em níveis diferentes. O próprio Polkinghorne admite que tal ilustração não nos leva muito longe no estudo da interação entre ciência e religião, que se dá de forma muito mais rica e complexa, mas ela já serve para ilustrar que ambas as narrativas não estão em conflito intrínseco. E, como veremos, o diálogo entre as áreas pode ser enriquecedor e merece ser feito. Avanços contemporâneos no estudo de Religião e Ciências Naturais Por se tratar de campo com complexas inter-relações, um grande esforço no intuito de compreender melhor essa interface de ciência e religião e promover um diálogo sadio e honesto entre as áreas tem sido visto, principalmente nos países de fala inglesa desde meados dos anos 90. Em 1997, Greg Easterbrook escreveu na revista Science um artigo sobre estes esforços. Intitulado Science and God: a Warming Trend? ( Ciência e Deus: uma tendência em ascensão?, em tradução livre), o autor destacava as iniciativas de aproximação entre os dois campos com a criação de projetos que estimulam o diálogo entre cientistas e religiosos. Os dois principais são o DoSER - Dialogue on Science, Ethics and Religion, da AAAS a American Association for the Advancement of Science, e outras iniciativas da NAS a National Academy of Science. Tais agências são as duas mais importantes instituições de fomento e apoio às ciências dos EUA. Note bem o que isso significa: as duas maiores entidades americanas no que diz respeito às ciências estabelecendo projetos para estimular o diálogo entre ciência e religião. Grandes universidades mundiais também têm criado institutos de pesquisa e estímulo ao convívio pacífico entre ciência e religião, como a Universidade de Oxford, Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 4

com o Ian Ramsey Centre for Science and Religion, que possui inclusive um projeto voltado para o fomento desta área de pesquisa na América Latina (ver www.cyral.org). Esta mesma universidade tem um curso de Mestrado e Doutorado em Ciência e Religião, que já é uma conhecida subárea acadêmica nos países anglófonos, com direito a amplos espaços nas prateleiras das bibliotecas. Também a Universidade de Cambridge, com o Faraday Institute, se dedica a explorar a interface entre as ciências naturais e a religião. Ambas instituições, Oxford e Cambridge, já até promoveram curso e workshop no Brasil sobre esta área de pesquisa. Outras universidades com centros de pesquisa semelhantes são a Universidade de Chicago, com o Chicago Center for Religion and Science, além de Princeton, Berkeley e diversas outras com cursos e matérias dedicadas ao diálogo entre as áreas. Easterbrook também enfatiza no artigo a abertura por parte dos religiosos aos achados da ciência, ressaltando o pedido de desculpas do Vaticano a Galileu e a declaração do Papa João Paulo II à época de que a evolução é mais que uma hipótese (EASTERBROOK, 1997, p. 835). Outra tendência que merece destaque também é o surgimento de organizações e associações de cristãos ativos nas ciências, que têm procurado estabelecer diálogos com as comunidades de fé, tais como a Fundação Biologos (fundada pelo diretor do Projeto Genoma Humano, Dr. Francis Collins, cristão evangelical convicto e árduo defensor da evolução teísta), e a Red Ibero Americana de Ciencia y Fé, entidade ainda em processo de organização. No Brasil, temos a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, fundada em Novembro de 2016. Isso sem falar nas já antigas Christians in Science da Inglaterra e a American Scientific Affiliation, nos EUA, dentre diversas outras. Periódicos reconhecidos sobre o tema também têm surgido, como por exemplo a já consagrada revista Zygon, bem como alguns bastante recentes, como a Revista Quaerentibus. Um outro artigo que demonstra que, pelo menos na América do Norte, o mito do conflito não se confirma nem mesmo com cientistas é o de Larson e Witham, na revista Nature, também em 1997. Ali, os autores divulgam os resultados de uma pesquisa em que 40% dos cientistas responderam SIM a duas perguntas reveladoras: 1) Eu creio em um Deus que está em comunicação intelectual e emocional com a humanidade, isto é, um Deus para quem alguém pode orar na expectativa de receber uma resposta. Por resposta entende-se mais do que o efeito psicológico subjetivo da oração. 2) Eu creio na continuação da pessoa depois da morte em outro mundo (LARSON; WITHAM, 1997, p. 435 436). Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 5

Tal número 40% - surpreendeu os autores da pesquisa, levando-os a concluir que cientistas ainda estão mantendo a fé (o título do artigo em inglês). Aparentemente, o velho chavão de que cientistas não podem ser religiosos, sofreu mais uma baixa (LARSON; WITHAM, 1997, p. 436). Neste ano de 2016, em 20 de setembro, um terceiro artigo importante fez notícia na Revista Nature. Em seu Religion and science can have a true dialogue ( Religião e ciência podem ter um verdadeiro diálogo ) Kathryn Pritchard, que trabalha no Conselho de Arcebispos da Igreja Anglicana, advoga por mais conversa e mais experiências de compartilhamento entre cientistas e religiosos (PRITCHARD, 2016, p. 451). Outro sinal de que o mito do conflito entre ciência e religião vem paulatinamente perdendo espaço é a acusação cada vez mais frequente de que as vozes que normalmente levantam a bandeira do conflito não falam por toda a comunidade científica, assim como aquelas que falam pelos religiosos também não representam a opinião oficial da religião. Um exemplo é a recente matéria no jornal britânico The Independent em que um grande número de cientistas ouvidos em pesquisa sobre a representação pública da ciência declaram que Richard Dawkins, ex-professor de compreensão pública da ciência em Oxford, prejudica a ciência por deliberadamente afastar as pessoas religiosas e mal representar o papel que a ciência tem na sociedade (GRIFFIN, 2016). 3 Considerações Finais Dessa forma, vemos que existe tanto na Europa como na América do Norte uma forte tendência de aproximação entre as áreas de ciência e religião, não com o intuito de reduzi-las a uma coisa só, mas sim como um convite de ambas para sentar à uma mesa comum e conversar. Isso tem se dado tanto na academia como na sociedade civil, através de associações, comunidades, etc. Infelizmente, essa tendência mundial de aproximação dá pouquíssimos sinais de existência no Brasil, onde o clima de inimizade entre as áreas ainda perdura fortemente, principalmente nas universidades públicas. O exíguo número de cursos que estudam academicamente o fenômeno religioso é evidência disso. 4 Cremos que, em grande parte, esse cenário deve-se à prevalência, por aqui, do mito do eterno 3 Um detalhe interessante é que a pesquisa nem mencionava o nome de Dawkins, mas nas respostas, ele apareceu frequentemente. Veja aqui um comentário em português sobre a notícia: <http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/tubo-de-ensaio/ficou-feio-pro-dawkins/>. 4 Por exemplo, há apenas 4 Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião em Universidades públicas no Brasil: UFJF (Juiz de Fora/MG), UFSe (Sergipe), UFPb (Paraíba) e UEPA (Estadual do Pará), dentre 3225 PPGs com mestrado acadêmico e/ou doutorado registrados na Plataforma Sucupira da CAPES. Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 6

conflito. Acreditamos que um primeiro passo é o de revisar historicamente tal mito, como brevissimamente tentamos fazer aqui, para depois sentarmos à uma mesa e conversarmos, cientistas e religiosos, e, é claro, junto daqueles que são cientistas-religiosos, que sabemos que estão escondidos por aí. A sociedade só tem a ganhar quando as duas forças talvez mais poderosas na sociedade ocidental contemporânea resolverem ouvir uma à outra e trabalhar para o bem comum. Referências: BROOKE, John Hedley. Science and religion: some historical perspectives. United Kingdom: Cambridge University Press, 2014. EASTERBROOK, G. Science and God: A Warming Trend? Science, v. 277, n. 5328, p. 890 893, 1997. FERNGREN, Gary B.; LARSON, Edward J.; AMUNDSEN, Darrel W. (Orgs.). The history of science and religion in the Western tradition: an encyclopedia. New York: Garland Pub, 2000. (Garland reference library of the humanities, v. 1833). GORDON, Flávio. A Cidade dos Brights: Religião, Ciência e Política no Movimento Neo-Ateísta. xii; 411f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2010. GRIFFIN, Andrew. British scientists really, really dislike Richard Dawkins, new study discover. The Independent. 31 Out 2016. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/science/richard-dawkins-atheism-criticismatheist-study-rice-university-science-scientists-a7389396.html>. Acesso em: 20 dez. 2016. LARSON, Edward J.; WITHAM, Larry. Scientists are still keeping the faith. Nature, v. 386, n. 6624, p. 435 436, 1997. NUMBERS, Ronald L. Interview: Ron Numbers. Counterbalance Foundation. [S.l.:s.n. s.d.] Transcrito de Entrevista. Disponível em <http://www.counterbalance.org/transcript/num-frame.html>. Acesso em: 04 Jan. 2014.. Science and religion. Osiris, v. 1, p. 59-80, 1985. POLKINGHORNE, J. C. One world: the interaction of science and theology. Philadelphia: Templeton Foundation Press, 2007. PRITCHARD, Kathryn. Religion and science can have a true dialogue. Nature, v. 537, n. 7621, p. 451 451, 2016. SANCHES, Mário A. Os cristãos são criacionistas? In:. (Ed.) Criação e Evolução: Diálogo Entre Teologia e Biologia. São Paulo: Ed. Ave-Maria, 2009. p. 11-33. Revista Nures Ano XIV Número 34 setembro-dezembro de 2016 Página 7