AS ALTERNÂNCIAS VOCÁLICAS E AS HIPOSSEGMENTAÇÕES EM TEXTOS ESCRITOS EM PORTUGAL E NO BRASIL UM ESTUDO DIACRÔNICO DA LÍNGUA PORTUGUESA

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Transcrição:

1 AS ALTERNÂNCIAS VOCÁLICAS E AS HIPOSSEGMENTAÇÕES EM TEXTOS ESCRITOS EM PORTUGAL E NO BRASIL UM ESTUDO DIACRÔNICO DA LÍNGUA PORTUGUESA João Henrique SILVA-PINTO Cristiane NAMIUTI Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia j.henrique.uesb@gmail.com cristianenamiuti@gmail.com Resumo: Os textos antigos apresentam variação gráfica, e em alguns casos essa variação pode ser explicada ou por processos fonológicos ou pela etimologia. Comparou-se a variação de grafia presente nas cartas de denúncia portuguesas àquela presente nas cartas de alforria brasileiras. Trabalhou-se com um corpus de textos portugueses e um brasileiro. Foi necessário levantar as palavras escritas com uma grafia não moderna. Os resultados mostraram que há diferença nas variações de grafia encontradas nos textos portugueses e das registradas nos textos brasileiros. Verificaram-se nos textos portugueses, manifestações de processos fonológicos, como metátese, epêntese, e fenômenos relacionados com a elevação e redução de vogais. Já nos textos brasileiros verificou-se um alto índice de variações relacionado com a segmentação (hipo e hipersegmentação), envolvendo palavras funcionais e clíticos sintáticos e fonológicos. Palavras-chave: Segmentação; Grafia; Variação; 1. Considerações iniciais Os manuscritos que sobreviveram à ação destruidora do tempo podem fornecer pistas interessantes sobre a língua em épocas passadas. Logo, os manuscritos de época têm um grande alcance testemunhal da língua que se falava e, por isso, muitos autores ressaltam a importância das fontes judiciais para o conhecimento da história de uma língua. Visa esse artigo mostrar a variação (orto)gráfica 1 atestada em textos portugueses seiscentistas e setecentistas e em textos brasileiros oitocentistas. Para tanto, dividiu-se esse artigo da seguinte forma: na seção 1, estão abordadas questões referentes à grafia inábil bem como à importância da preservação dos documentos antigos para a história, sociedade e mesmo como valor linguístico. Na seção 2, mostram-se os corpora da pesquisa de uma forma 1 Utiliza-se o termo (orto)gráfica, pois na época em que os documentos foram escritos, ainda não havia, no português, um sistema ortográfico unificado como o é atualmente. Portanto, não se pode dizer que há uma variação ortográfica (no sentido em que é atribuído hoje), mas variações gráficas.

2 simplificada bem como materiais e métodos; a seção 3 está reservada para os resultados e discussões; as considerações finais encontram-se na última seção. 2. As variações gráficas Os documentos antigos podem fornecer pistas sobre as mudanças linguísticas bem como fomentar estudos para a compreensão do funcionamento das gramáticas das línguas, entende-se aqui gramática no sentido gerativista, isto é, [...] uma gramática gerativa é um sistema formal (de regras, mais tarde de princípios e parâmetros) que torna explícito os mecanismos finitos disponíveis para o cérebro produzir sentenças infinitas de uma forma que tenha consequências empíricas e podem ser testadas, como nas ciências naturais 2 (tradução do autor) (CAMPBELL, 2007, p. 13-14). O trabalho com os documentos antigos fomenta estudos comparativos entre os estados diacrônico e sincrônico da língua, contribuindo para a compreensão do funcionamento do sistema linguístico. Noutras palavras, podem-se buscar fenômenos nos textos antigos que evidenciam mudanças linguísticas. Adicionalmente, são os documentos antigos também fontes de estudos interessantes para o próprio conhecimento da sociedade da época e para a preservação da memória. Algumas mudanças linguísticas são mais facilmente percebidas nos textos escritos por mãos pouco hábeis. Marquilhas (1998a) define a escrita de gente pouco letrada como mãos inábeis, isto é, produtores de textos sem muita familiaridade com a escrita. Quando escreviam seus textos, os mãos inábeis, por não dominaram os princípios logográficos e fonográficos, acabaram produzindo erros ortográficos. Não se podem corresponder esses erros ao conceito que eles têm atualmente, visto que, na época em que os documentos foram escritos, o português ainda não tinha uma ortografia uniforme como o é hoje em dia. Naquela época, vigorava o que se pode chamar de ortografia pluriforme (cf. MARQUILHAS, 1997, 1998b). Marquilhas (1997) ainda argumenta que a pouca exposição a produtos gráficos também foi responsável pela criação de mãos inábeis em Portugal, uma vez que os indivíduos não eram expostos às formas corretas de grafar as palavras. Essa pouca exposição se deveu primeiro ao fato de a escrita estar sob o domínio dos copistas e por não haver uma 2 [ ] a generative grammar is a formal system (of rules, later of principles and parameters) which makes explicit the finite mechanisms available to the brain to produce infinite sentences in ways that have empirical consequences and can be tested as in the natural sciences (CAMPBELL, 2007, p; 13-14).

3 generalização do processo de escrita. Vale ressaltar que a escrita feita pelos copistas se tratava de um treino scriptológico, ou seja, não era o domínio da fonologia, mas das scriptae. A partir do momento em que a escrita se difundiu e deixou de ser um trabalho exclusivo dos copistas e passou a fazer parte do cotidiano do povo em geral, o formalismo scriptológico não teve mais condições de se impor a todos aqueles que se utilizavam da tecnologia gráfica. Isso significa dizer que, por falta desse convencionalismo sobre essa nova escrita, começa a haver a falta de correspondência entre unidades da língua oral e unidades da língua escrita (MARQUILHAS, 1997, p. 163). Devido a essa falta de correspondência, podem ser atestadas mudanças fonéticas, fonológicas e o próprio caráter prosódico da língua. Há também nas fontes inábeis erros gráficos que são facilmente relacionados com a etimologia. As variações (orto)gráficas presentes em textos antigos escritos em português tanto europeu quanto brasileiro podem ser influenciadas por questões de ordem fonológica ou etimológica. Sendo assim, os aspectos da língua podem ser acessados, nessas variações, e interpretados dentro de uma corrente linguística, nesse caso, a Linguística Histórica. Essa, amparada em grandes teorias, tenta explicar as mudanças pelas quais passa a língua. Os dados que são utilizados para análise, nesse trabalho, encontram-se na forma de documentos manuscritos ou tipográficos, então é necessário transpor esses dados para um meio digital no qual o tratamento é mais fácil. Dessas questões ocupa-se a seção seguinte. 3. Corpus da pesquisa e questões metodológicas Os dados analisados neste trabalho são provenientes de dois corpora: um conjunto de cartas da Inquisição portuguesa e um de cartas de alforria oitocentistas brasileiras. Esses dois corpora serão discriminados a seguir. Para os textos portugueses, escolheu-se trabalhar com as cartas de denúncia da Inquisição portuguesa, por estarem disponíveis digitalmente no Corpus Histórico do Português Anotado Tycho Brahe, já transcritas e editadas. As cartas de denúncia são partes integrantes dos arquivos da Inquisição Portuguesa e possuem um potencial valor linguístico. Esses documentos, em sua maioria escritos no século XVII, foram utilizados por Marquihas (1997) em sua tese de doutoramento. Para os textos brasileiros, investiu-se na transcrição de cartas de alforria oitocentistas pertencentes ao banco de textos do corpus DOViC. O corpus DOViC é um banco de textos composto de documentos notariais e cartas de alforria da região do sudoeste da Bahia. Esse corpus é um produto do projeto Memória Conquistense: recuperação de documentos

4 oitocentistas na implementação de um corpus digital desenvolvido na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia por Santos et al. (2009). Estão ainda envolvidos nesse projeto professores de outras instituições como a UNICAMP, UEFS, UFBA e USP além de estudantes de graduação da própria UESB. Esse projeto visa à construção de um corpus digital que parte de documentos manuscritos dos séculos XVIII e XIX. Também são objetivos do projeto Memória Conquistense a organização e a recuperação desses documentos. Para isso, é necessária a criação de um banco de dados com informações acerca dos documentos. Uma vez criado o banco de textos, abrem-se caminhos para pesquisas nas mais diversas áreas do saber, como a Linguística, História e Filologia e demais áreas do conhecimento científico. Adiciona-se a isso, o fato de que a recuperação dos documentos preservará tanto o patrimônio linguístico quanto o histórico da região sudoeste da Bahia. O conjunto de textos portugueses já se encontra no formato de texto digital, o que torna sua manipulação mais fácil. Desse corpus selecionou-se um grupo de cinco cartas e procedeu-se a busca pelas palavras ou conjuntos de palavras que se diferenciavam dos padrões ortográficos atuais. Quanto aos dados provenientes do corpus DOViC, investiu-se na transcrição de cartas de alforrias. Essas se encontram fotografadas. Após a transcrição das cartas e reportação dos manuscritos transcritos do corpus DOViC para o meio digital, levantaram-se os dados de variação de grafia de ambos os corpora separadamente usando o editor de texto Word. Uma vez identificados os dados com variação gráfica nos textos dos dois corpora, agruparam-se os dados por corpus, por texto, e por autor. Em seguida, utilizando-se da catalogação por corpus, descreveram-se os dados brevemente de acordo com os tipos de variação gráfica encontrados; utilizou-se nessa etapa, bem como nas próximas, o aplicativo Excel. Classificaram-se os dados, de acordo com tipo de variação gráfica que esses apresentavam, em quatro tabelas (processos fonológicos envolvendo consoantes em coda e onset ramificado metátese e epêntese; alterações vocálicas; variações gráficas; e segmentação). Os textos portugueses (corpus Mãos Inábeis) apresentaram estes quatro tipos de variação, já os textos brasileiros (corpus DOViC) apresentaram apenas três e foram organizados em três tabelas (alterações vocálicas; variações gráficas; e segmentação). Nas tabelas de cada corpus, os dados foram organizados em grupos de acordo com o tipo específico da alteração fonológica, gráfica ou segmentação. Os dados foram quantificados e extraíram-se as frequências com que cada tipo de variação ocorria em cada corpus para a elaboração de gráficos.

5 Diante do exposto até aqui, é interessante ilustrar esses aspectos de variação na forma de exemplos extraídos dos textos antigos bem como explicações desses mesmos aspectos. Ocupar-se-á desses temas a próxima seção. 4. O que revelam os dados? Percebe-se que há uma grande variação (orto)gráfica entre os textos seiscentistas e setecentistas portugueses e os documentos oitocentistas brasileiros, no entanto, Marquilhas (1998b) adverte que nem sempre há explicações fonológicas por trás dessa variação, mas que é interessante buscar explicações fonológicas, sobretudo, nos equívocos ligados à escrita segmental. Analisar-se-á primeiramente as variações em que os processos fonológicos de métatese e epêntese são recorrentes. A metátese é uma reordenação de fonemas no interior das palavras, isto é, a troca de posição de fonemas, conforme Spencer (1998), Metathesis is the reordering of phonemes, as when in child speech or certain dialects the verb ask is pronounced /aks/. Metathesis often accompanies affixation (when it is frequently little more than a phonological repair of an illicit phonotactic combination resulting from the affixation), but on occasion it gives the impression of being the sole exponent of morphological property (SPENCER, 1998, p. 139). E, nos corpora analisados, ela está relacionada principalmente com as consoantes líquidas /l/ e /r/. Faz parte dessa classificação dados como prugatorio, livirnho, crelego (com ortografia atual: purgatório, livrinho, clérigo, respectivamente). Pode-se observar nesses dados que houve reordenação do fonema /r/ em posição de coda para onset ramificado na primeira palavra (prugatorio purgatório), desse mesmo fonema houve a mudança de posição de onset ramificado para coda no segundo exemplo (livirnho livrinho) e a métatese dupla do fonema /r/ e /l/ na última palavra (crelego clérigo). Outro processo fonológico que é presente na escrita inábil é a epêntese. Trata-se da inserção de um fonema, comumente a vogal /i/ no português. Geralmente os contextos em que esses fenômenos ocorrem, na escrita inábil, são os de onsets ramificados. Collischonn (2000) argumenta que a epêntese vocálica é a inserção de um segmento que não é representado na escrita de acordo com os padrões vigentes de ortografia, mas que é facilmente percebido na fala. Nos textos antigos escritos dos mãos inábeis, a inserção é representada também na escrita conforme demostra os seguintes exemplo: ciristam e Coimbera (na grafia atual:

6 Cristão e Coimbra, respectivamente). Pode-se verificar nesses dados a inserção de dois fonemas, o fonema /i/ em ciristam (cristão) e do fonema /ə/, na forma gráfica E Coimbera (Coimbra). Esses exemplos mostram que para os mãos inábeis a sílaba é uma unidade óbvia, como também para as crianças em fase de aquisição de linguagem preferem o padrão CV (consoante-vogal) (cf. ABAURRE; SILVA, 1993; MARQUILHAS, 1997, 1998a). Esses fenômenos fonológicos envolvendo métateses e epênteses estão presentes apenas nos documentos portugueses do corpus dessa pesquisa. Nenhum caso foi notificado em cartas de alforria oitocentistas brasileiras trabalhadas nessa pesquisa. Considerando os números de fenômenos referentes às vogais, há dados que representam a alternância vocálica, além de outros fenômenos envolvendo vogais no conjunto de cartas que faz parte do corpus de mãos inábeis; esse mesmo tipo de fenômeno não é muito produtivo nas cartas de alforria que são integrantes do corpus DOViC, além de apresentar qualidades de vogais diferentes no envolvimento dos fenômenos. Enquanto os textos portugueses alternam /a/ e /e/ sobretudo em posição pré-tônica, os textos brasileiros alternam /o/ e /u/, /e/ e /i/, sobretudo em posição pós-tônica. Tal fato pode evidenciar uma diferença na pronúncia portuguesa e brasileira captada na escrita, pois se sabe que o ritmo do Português Europeu atual é caracterizado pela drástica redução das vogais prétônicas enquanto o ritmo do Português Brasileiro possui as sílabas com seus centros vocálicos bem pronunciados. As frequentes alternâncias vocálicas observadas na escrita inábil do século XVIII podem ser uma pista do início do padrão prosódico do Português Europeu de hoje. Castro (2006) e Marquilhas (2003) já tinham detectado que os fenômenos de redução das vogais pretónicas no Português Europeu já vinham em franca expansão antes da primeira metade do século XVIII, e as cartas da Inquisição portuguesa, documentos escritos durante em sua maioria no século XVII, e analisadas aqui, vai de encontro às discussões empreendidas por Castro e Marquilhas. Outra variação muito circular nos documentos antigos são os fenômenos envolvendo a segmentação das palavras. Segundo Marquilhas (1998b) o domínio da escrita alfabética só é possível mediante a captação de um princípio fonológico. Segundo esse princípio, as realizações orais são combinações temporalmente lineares de segmentos consonânticos e vocálicos (MARQUILHAS, 1998b, p. 242). Logo a língua escrita permite uma possibilidade de espelhamento dessa organização fonológica (MARQUILHAS, 1998b, p. 242) através de sinais gráficos equivalentes a cada segmento individual e que também são concebidos linearmente. Noutras palavras, esse espelhamento é feito através do uso das vogais e das consoantes.

7 As crianças em fase de aquisição de escrita, ao segmentar o discurso oral na escrita, adquirem uma consciência fonológica na qual é possível reconhecer as unidades segmentais (cf. MARQUILHAS, 1998a). Além do mais, as crianças, apesar de saberem ler uma escrita segmental, elas preferem as sílabas inteiras como unidades de segmentação (cf. MARQUILHAS, 1998a). Os mãos inábeis podem ser fixadas nessa época, quando há a capacidade de escrever consoantes e vogais e a incapacidade de analisar a estrutura no interior da sílaba (MARQUILHAS, 1998a, p. 243). Concernente a segmentação, há dois tipos de diferenças gráficas. A hipersegmentação e a hipossegmentação. Esta se trata da falta de inserção de branco gráfico entre unidades separáveis, enquanto aquela é a inserção de branco gráfico entre unidades não separáveis. Noutras palavras, pode-se dizer que é a segmentação não-canônica das palavras (cf. KAJITA, 2009). Conceitos esses que serão facilmente compreendidos com as exemplificações abaixo. Em se tratando de hipersegmentações, os dados dos mãos inábeis não apresentaram nenhuma ocorrência, enquanto nas cartas de alforria brasileiras dois casos foram detectados apenas exemplo: des em bargados (grafia atual: desembargados). A hipossegmentação é um fenômeno a ser tratado com mais cuidado, pois envolve clíticos. Sabe-se que os clíticos, principalmente os pronominais, são complexos per si. Dentro da fonologia, define-se clítico como qualquer elemento não acentuado prosodicamente que não é nenhuma flexão ou derivação afixal 3 (HALPERN, 1998, p. 101). E os casos de hipossegmentação envolvem principalmente as palavras funcionais (preposições, artigos e conjunções) e clíticos pronominais. Pois essas palavras não dispõem de acentos primários, daí a necessidade de elas se apoiarem numa palavra adjacente. Outro ponto relevante a ser discutido é a questão da natureza dos clíticos pronominais. Esses, segundo Abaurre e Galves (1998), são bastante complexos, uma vez que se situam nos limites da fonologia e da sintaxe e ainda podem ser um lugar onde é facilmente verificável operações com outros módulos da gramática, tais como a fonologia/morfologia/sintaxe. E ainda podem-se distinguir dois tipos de clíticos: os fonológicos e os sintáticos. Vale ressaltar que os primeiros nem sempre são clíticos na sintaxe, enquanto os últimos são sempre clíticos fonológicos também. Então, os clíticos sintáticos são fonológicos à medida que são desprovidos de um acento primário e daí sua necessidade de se apoiar em outra palavra. Na estrutura-s, os pronomes átonos encontram-se afixados a um elemento verbal, sendo, por isso, 3 Confere o original: In some uses, clitic denotes any prosodically weak (unaccented) element which is not a canonical inflectional or derivational affix. This is the sense in which term is usually used in the discussion of phonological issues. (HALPERN, 1998, p. 101).

8 dominados por uma flexão. Isso mostra, segundo as autoras, que os clíticos pronominais átonos se movem como núcleos. Então, os clíticos são extraídos de dentro de um sintagma, onde eles possuem alguma função gramatical na oração por um movimento que os afixa a um outro elemento nuclear da oração (ver ABAURRE; GALVES, 1998). Nos textos portugueses, os dados mostram que a frequência em que ocorrem a hipossegmentação com palavras funcionais é muito menor do que a que envolve clíticos pronominais, sobretudo em contexto de ênclise. Adiciona-se a isso o fato de que não há nos dados analisados, pronomes átonos amalgamados a palavras de outra natureza que não a verbal. Como exemplo de segmentação não canônica envolvendo palavras funcionais pode eleger-se amde e amdecomfecar (grafia atual: hão de e hão de confessar, respectivamente). Em contextos com clíticos pronominais, basta citar dizlhe e emcomedase (grafia atual: diz-lhe e encomenda-se, respectivamente). Os dados apontam que as palavras dos textos brasileiros sofrem mais hipossegmentação do que as dos portugueses. Da mesma forma que os dados portugueses, a hipossegmentação tendem a ocorrer com palavras funcionais e clíticos. Nos documentos do corpus DOViC, as hipossegmentações em sua maioria envolvem as preposições de e em, a conjunção que e os artigos. Por exemplo: dacosta (da Costa), dequeo (de que o), adita (a dita) É também bastante produtivo os casos com clíticos pronominais em posição proclítica mereporto e merepresenta (me reporto e me representa, respectivamente). 5. Considerações finais Conclui-se, então, que tanto os textos portugueses quanto os brasileiros possuem uma gama de variação na grafia. No entanto, essa variação é apresentada de diferentes formas nos dois continentes. Enquanto na Europa a variação relevante concentra-se nas alterações vocálicas e nos processos fonológicos de metátese e epêntese, na América, nos dados analisados, ela está na segmentação. No que concerne a hipossegmentação envolvendo clíticos pronominais, é interessante ressaltar a preferência de amálgama dos clíticos: (1) e emcomedase a elas q. lhe ualham os seus trabalhos (e encomenda-se a elas que lhe valham os seus trabalhos). (2) egoardando metodo o respeito(e guardando-me todo respeito).

9 Como mostram os exemplos acima, a preferência de direcionalidade da hipossegmentação com clíticos pronominais, nos textos portugueses, tende a ser à esquerda (clítico à direita da base lexical) (1), enquanto que nos textos brasileiros essa tendência é à direita (clítico à esquerda da base lexical) (2). Isso comprova o caráter enclítico do Português Europeu e proclítico do Português Brasileiro. Além disso, as constantes alternâncias vocálicas e a diferença de direcionalidade das amálgamas dos clíticos sintáticos atestadas nesses textos podem fornecer pistas sobre a diferença prosódica do Português da Europa e do Brasil. Adicionalmente, essas mesmas variações esses textos fornecem dados que mostra que estudar as diferentes grafias presentes nos textos antigos é pertinente para linguística, pois demostra o caráter de interface entre os diferentes módulos da gramática de uma língua. Pois, sabe-se que uma diferença prosódica que aconteceu no Português Europeu por volta do final do século XVIII é apontada como responsável pelo padrão enclítico do português de Portugal (cf. Galves, 1993). Assim, a explicação de alguns fenômenos linguísticos, como a colocação de clíticos, requer a extrapolação da fronteira puramente sintática rumo à morfológica e fonológica.

10 Referências ABAURRE, M. B. M.; GALVES, C. As Diferenças Rítmicas Entre O Português Europeu e O Português Brasileiro: Uma Abordagem Otimalista e Minimalista / Rhythmic Differences Between European And Brazilian Portuguese: An Optimalist And Minimalist Approach. DELTA - Revista de Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 377-403, 1998. ABAURRE, M. B. M.; SILVA, A. O desenvolvimento de critérios de segmentação na escrita. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, n. 1, p. 89-102, 1993. CAMPBELL, L. The History of Linguistics. In: MARK, A; REES-MILLER, J. The Handbook of Linguistics. Oxford: Blackwell Publishing, 2002. CASTRO, I. Introdução à história da língua portuguesa. Lisboa: Edições Colibri. 2006 COLLISCHONN, G. A epêntese vocálica no português do sul do Brasil: análise variacionista e tratamento pela teoria da Otimalidade. Letras de Hoje, Porto Alegre, 2000. GALVES, C. M. C. Preenchedores sintáticos nas fronteiras de constituintes. In: (Org.). Gramática do Português Falado: as abordagens. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993, v. 3, p. 235-271. HALPERN, A. L. Clitics. In: SPENCER, A.; ZWICKY A. M. (Orgs.). The Handbook of Morphology. Oxford: Blackwell Publishing. 1998. p. 101-122. KAJITA, A. S. A segmentação inábil: um estudo da segmentação ortográfica nãocanônica. 254 p. Dissertação. [Mestrado em Linguística]. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, 2009. MARQUILHAS, R. A Faculdade das Letras. Leitura e Escrita em Portugal no Século XVII. Tese. [Doutorado em Linguística]. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1997. MARQUILHAS, R. Analógica e elevação das vogais pretónicas. In: CASTRO, C; CASTRO, I. (Orgs) Razões e emoção. Miscelânea de Estudos em homenagem à Maria Helena Mira Matheus. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 7-18. MARQUILHAS, R. Importância das fontes judiciais no português seiscentista. Estudos Lingüísticos e Literários, n. 19. p. 163-178, 1998a. MARQUILHAS, R. Mãos inábeis nos arquivos da Inquisição. Fontes para o estudo fonológico do português do século XVII. In: KREMER, D. Homenaxe a Ramón Lorenzo. Tomo II. Vigo: Galaxia, 1998. p. 761-767b. SANTOS, J. V.; NAMIUTI, C. T. Memória conquistense: recuperação de documentos oitocentistas na implementação de um corpus digital. Vitória da Conquista: UESB, 2009. Projeto de pesquisa. SPENCER, A. Morphophonological Operations. In: SPENCER, A.; ZWICKY A. M. (Eds.). The Handbook of Morphology. Oxford: Blackwell Publishing. 1998. p. 123-143.