Resenha. Paulo Renato Flores Durán *

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Transcrição:

Resenha Resenha Paulo Renato Flores Durán * O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo. 2ª ed. revista e ampliada. Nogueira, Marco Aurélio. Paz e Terra São Paulo: 2010, 333 p. O cavaleiro andante : unidade e articulação na biografia intelectual de Joaquim Nabuco Certos livros tornam-se, desde cedo, clássicos indispensáveis, tanto não só para uma compreensão da trajetória intelectual de um personagem e ator fundamental de nossa moderna história, quanto como também para reflexões e leituras críticas do processo de democratização fundamental. Nos dois aspectos, tanto é o caso do livro de Marco Aurélio Nogueira que, agora, ganha segunda edição, revista e ampliada, quanto o das reflexões e interpretações de Joaquim Nabuco sobre a sociedade política brasileira. É justamente sobre a produção nabucoana que se debruça o livro de Nogueira. Reeditado depois de 25 anos, o livro de Marco Aurélio Nogueira surpreende ou ainda continua a surpreender pela atualidade. Escrito como tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, defendida em 1983, e logo depois publicada pela editora Paz e Terra com o título As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a monarquia e a república, o livro de Nogueira procura descrever e desvendar a tecitura narrativa das interpretações de Joaquim Nabuco sobre as transformações nas sociedade e política brasileiras. Por meio de sua trajetória intelectual, essa tecitura narrativa é analisada em três tempos, que correspondem a três décadas da vida e trajetória intelectual e política de Nabuco: entre 1879 e 1888 abolicionista de vanguarda ; 1889 e 1898 monarquista errante e recluso ; e 1899 e 1910 diplomata pan-americanista (Nogueira, 2010, p. 37). Se para um grande número de estudiosos da vida e obra de Nabuco existiriam personagens antagônicos e rupturas bruscas (como, por exemplo, entre o radical da campanha abolicionista e o diplomata da maturidade, este último, mais afim com o pensamento conservador), para Nogueira, ao contrário, há continuidade, unidade e articulação em sua biografia intelectual (Nogueira, 2010, p. 19). * Paulo Durán é professor agregado do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio. É mestre em Ciências Sociais pela PUC-Rio e doutorando em Saúde Pública na ENSP/FIOCRUZ. Contato: paulofduran@gmail.com Desigualdade & Diversidade Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, nº 7, jul/dez, 2010, pp. 259-264259

Paulo Renato Flores Durán Assim, podem ser considerados três os eixos mediante os quais Nabuco vivenciou um encontro com a política, com o modus operandi da política brasileira. Esses três eixos de interpretação sobre nossa vida nacional estão associados à questão da escravidão, que marcara Nabuco tão fortemente desde sua infância tal como ressaltado por ele no famoso capítulo Massangana, de Minha formação. A escravidão, para nosso cavaleiro andante, institucionalizara-se entre nós enquanto verdadeiro regime político, social e econômico. Em primeiro lugar, regime político porque criava classes políticas atávicas que, sob nomes de partidos Conservadores, Liberais e Republicanos, somente guardavam similaridades com as teses do primeiro. Ou seja, o argumento clássico conservador teria, entre nós, um forte apelo: não somente no plano político, no qual se defendia a ausência de mudanças (reformas, diga-se logo), mas também no plano social, em que Nabuco via uma nação sem cidadãos que pudessem se auto-organizar e organizar seus próprios interesses, estes pela via associativa. Ainda no plano de regime político, a escravidão criara uma espécie de burocracia patrimonial: de um lado, uma classe de funcionários voltados unicamente para a defesa da obra do Estado (o Império) e do direito patrimonial (dos senhores de terra); de outro, indivíduos apegados ao beletrismo e à cultura do bacharelismo, em que as ideias abstratas e vagas tinham mais força do que o real, e no qual, por último, o império do efêmero se distanciava, para essa classe de homens, do império do real. Segundo, criara a escravidão um regime social por meio do qual, como já colocado, uma nação sem cidadãos não conseguira quebrar o vínculo fisiológico entre os partidos constitucionais e o paternalismo das classes políticas. Assim, igualmente espremia cidadãos sem cidadania em um regime de trabalho sem contrato, portanto, sem justiça. Por último, atirava ao léu todos aqueles que serviam, com trabalho físico, aos donos do poder. Aqui, a aguçada interpretação nabucoana do estado de nossa sociedade pode estabelecer uma associação entre escravidão, pobreza crônica e miserabilidade; ou seja, a questão social não atingira o plano da política ao contrário, este se encarregaria de se afastar cada vez mais daquele ponto este ressaltado tanto por Nogueira como também por Nabuco, em suas críticas análises ao imobilismo do Estado monárquico (Nogueira, 2010, p. 211). Por último, a escravidão tornara-se um regime econômico. Nabuco se referia, nesse sentido, não somente àquele regime ou ciclo econômico em que a escravidão era a mão de obra, mas, principalmente, a um regime que procurava impedir a duras custas, diga-se de passagem o capitalismo moderno de se institucionalizar entre nós. Indo um pouco mais além, a reação contra certo tipo de capitalismo, nos parece, insinuava-se como reação à mentalidade do homo oeconomicus que vinha atrelada à formação cultural do capitalismo moderno. Ou, ao surgimento do self-made man burguês vincular-se-iam características próprias do capitalismo: autonomia, livre empreendimento, liberdade, entre outras. Era, portanto, o regime econômico brasileiro refratário à figura do empresário moderno que guarda, por exemplo, em Mauá, um símbolo. Assim, em sua análise social, Nabuco acreditava que a permanência do regime de 260

Resenha escravidão inviabilizaria todos e quaisquer meios de realização das reformas necessárias para que a nação pudesse se desenvolver na via da democratização fundamental. Tal como na questão do vértice, liberdade e trabalho, a primeira sem o segundo, e vice-versa, criaria a escravidão da miséria (Nogueira, 2010, p. 154), que, de resto, seria como a miséria da escravidão. Mas Nabuco sabia que a questão do regime de escravidão não era mera, ou somente, uma tese de fundo partidário. Em sua visão, não poderíamos chegar às reformas necessárias no caso, a do regime escravocrata sem passar pelo fundo moral e ético da causa abolicionista, porque não bastaria que produzíssemos belas leis sobre (ou contra) o regime de escravidão se antes não olhássemos para as reformas morais de que precisavam a sociedade e a vida política. Ou seja, seria necessária a construção da sociedade política com robusta cultura cívica e sujeitos políticos marcados pela causa. Em última instância e esse é um dos marcos da interpretação nabucoana a abolição refere-se, e vai além, da questão do regime escravocrata. Nela está contida uma sede por autonomia e liberdade, ideias constituintes da formação do indivíduo e da nação nos marcos da modernidade. Assim, na interpretação de Nogueira, encontramos um Nabuco que não separava o plano da reflexão sobre as razões maiores da humanidade daquele em que se poderiam efetivar práticas virtuosas de ação política. Então, antes de ser um analista da política, Nabuco baseava-se em uma ampla, densa e crítica teoria da sociedade brasileira, de modo que pudesse manifestar seus argumentos céticos ou apologistas - sempre baseados em fina estética literária e em rico manancial teórico. Nogueira aponta para esse importante dado da trajetória intelectual e tecitura narrativa da obra de Nabuco, a partir da constatação de que, [...] a argumentação de Nabuco sempre buscou respaldar-se numa teoria da sociedade brasileira [...]. Se é verdade que no Brasil o que deve ser permanente muitas vezes converte-se em transitório, e tudo pode ser derrubado sem resistência, isso acontece não porque as instituições não tenham raízes, mas porque o solo não tem consistência e suas areias o menor vento revolve. [...] A base o povo, aquele vasto inorganismo era duplamente incapaz. Primeiro por ser mero imitador da cúpula, depois por viver em constante agitação: carecia ser protegido, educado, posto sob controle. (Nogueira, 2010, pp. 227 e 228, ênfases minhas e no original) Vale lembrar que seguindo o argumento de que não haveria descontinuidades, mas, sim, o contrário, na vida e obra de Nabuco, mesmo nos momentos de afastamento, Nogueira deixa transparecer que a narrativa nabucoana nunca perdera o élan entre processos históricos e fatos da política e da vida nacionais. Assim, seria sempre numa certa busca de medida entre os encontros e desencontros de nosso peculiar processo de construção nacional (national-building), e aquele promovido pelo poder constituinte 261

Paulo Renato Flores Durán das grandes revoluções que agitaram o mundo europeu entre os séculos XVIII e XIX, que Nabuco nos relegara lições importantíssimas. Essa busca, que deixara nele marcas profundas, pode ser colocada da seguinte forma: Na América, a perspectiva humana não se encontrava com a paisagem, com a vida ou com a arquitetura, ao passo que na Europa parecia faltar a pátria. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país (Nogueira, 2010, p. 298, ênfases minhas) Nesse sentido, em tal estágio de vida intelectual, Nabuco buscou ser, mais que um ator político, um propagandista; isto porque seu entusiasmo e convicção com a causa monarquista já se perdera na passagem ao momento republicano. Esse momento será o das concertações não das que deveriam ligar sociedade e Estado, mas aquelas que alargariam ainda mais o fosso entre a política e a vida social. Nesse sentido, Nogueira coloca que não haverá política em seu monarquismo que será, sobretudo, contemplativo. Em carta dirigida a Eduardo Prado, em janeiro de 1899, Nabuco escreveria, lúcido de sua opção: [...] tornei-me assim um monarquista platônico (Nabuco apud Nogueira, 2010, p. 230). Nesse período, Nogueira explicita a diferença do Nabuco agitador (da causa abolicionista, da crítica ao imobilismo da política brasileira), daquele personagem que, agora, se encontra retraído e se retira das lides no campo político. A fina análise de Nogueira demonstra como Nabuco interpretou a cultura política brasileira, vivenciando as desventuras de um cavaleiro andante. A causa abolicionista, na forma como defendia Nabuco, deveria se institucionalizar na consciência nacional como verdadeiro projeto de reformas que atingissem o nervo da sociedade política. Para tanto, seria necessário que o poder monárquico, elevando-se acima dos partidos oligárquicos, produzisse as reformas necessárias no interesse da nação, e não nos interesses das concertações. Nesse sentido, tanto a interpretação de Nogueira, como a de outros autores, demonstra o embate entre a defesa do democrata-monarquista (Nabuco) e a causa dos oligárquicos-republicanos. O monarquismo liberal esposado por Nabuco contrapunha-se a um republicanismo encapuzado ou a um autoritarismo disfarçado (Nogueira, 2010, capítulo 1). Essa contraposição possibilitava que Nabuco expusesse os vieses que acompanhavam a passagem do Império para o momento republicano. Por exemplo, na questão acerca do federalismo, ficava claro para Nabuco a aposta dos republicanos em um modelo unitarista, capaz, portanto, de frear a autonomia local das províncias. Para Nabuco era estritamente necessário retirar o Estado de um imobilismo que o levaria à morte. Por isto a defesa de um federalismo monárquico em que ao centralismo se contraporia uma crítica à inoperância governamental, ao empreguismo e à hipertrofia estatal (Nogueira, 2010, p. 201). 262

Resenha Vencido pela instauração da República, em 1889, nem por isso Nabuco abandonaria uma coerência fina, apresentada por vigas mestras que se mantiveram ao longo de sua vida como político, escritor, historiador, memorialista, entre tantos outros personagens. Como expõe Nogueira, em apêndice à obra que se reedita, É impossível permanecer impassível diante da surpreendente evolução daquele aristocrata refinado que, de um quase republicanismo na juventude, passa sem vacilações para o monarquismo parlamentar, torna-se abolicionista militante nos anos 1880, depois federalista, relê em chave conservadora o liberalismo após a queda da Monarquia, reaproxima-se da religião ao mesmo tempo em que se proclama pan-americanista, num ziguezague que ele próprio sempre procurou justificar. (Nogueira, 2010, p. 295, ênfases minhas) E complementa, afirmando que, Os múltiplos Nabucos não são prova de fragilidade ou de inconsistência, menos ainda de desarticulação ou falta de harmonia e unidade. São, ao contrário, uma demonstração da capacidade que teve o intelectual de traduzir o ziguezaguear da realidade, de permanecer aberto para a revisão de posições e ligado às agendas e urgências de sua época. (Nogueira, 2010, p. 322) Last but not least, o livro traz uma robusta e principalmente crítica apresentação da segunda edição, na qual Nogueira não somente dialoga com uma vasta literatura produzida entre as duas últimas décadas do século XX e a primeira do século XXI em torno de Joaquim Nabuco, como também procura trazer à tona uma leitura, por vezes amarga, da realidade sociopolítica brasileira. O que mais intriga, na ponte entre a convergência de significado da produção nabucoana e o presente, é a ausência imperativa de uma ampla reforma (principalmente política e social) que possa amparar um regime democrático sustentado pelos valores de uma Constituição welfareana. Nesse ponto, certamente que a inconclusão de nossa democracia welfareana não passaria desapercebida por Nabuco. E não somente pelo fato de que o nosso constitucionalmente sonhado Welfare State ainda seja uma promessa a modo de exemplo, a universalização e a integralidade dos sistemas de proteção social; mas, igualmente por ser uma agenda inacabada, certamente Nabuco nos prenderia com sua acirrada forma de defesa da democratização fundamental, nesse particular. Talvez, mesmo em sua segunda edição e ao final da primeira década do século XXI, realmente não encontremos no livro de Nogueira respostas aos desafios contemporâneos do país; mas, certamente, tal como fazia Joaquim Nabuco traçando, sempre, em cada 263

Paulo Renato Flores Durán uma de suas intervenções, linhas de ação possíveis para uma possibilidade de transformação possamos vislumbrar agendas políticas necessárias para o aprofundamento de uma democracia em constante processo constituinte. Notas 1. A banca de Marco Aurélio Nogueira foi composta pelos seguintes professores: Oliveiros S. Ferreira (orientador), Raymundo Faoro, Oracy Nogueira, Francisco Weffort e José Augusto Guilhon Albuquerque. 264