Revelação de Deus e acção para o bem A Bíblia Uma leitura redutoramente historialista da Bíblia, tão estulta quanto uma leitura do mesmo tipo de qualquer obra que não é historiográfica em sua essência e substância, revela uma tensão entre um Deus de amor, em sentido técnico, isto é, um Deus que quer o bem de esses de quem é Deus, e um Deus que, muitas vezes, não é um Deus de amor. Não interessa, sequer, saber quais as razões supostamente históricas que tal originaram, pois não é possível aceder a elas e tudo o que se possa afirmar e já se afirmou é meramente especulativo, quer dizer, do ponto de vista epistemológico-historiográfico, nada vale. Não se sabe, historicamente, quem escreveu o quê, precisamente. Muito menos se sabe por que razão, exactamente, o fez. Historicamente, a psicologia, a sociologia, mesmo a nosologia subjacentes, por exemplo, à escrita humana do Pentateuco serão para sempre desconhecidas. Por absurdo, podemos especular que o autor X, em determinado momento da narrativa, resolveu lá pôr um deus violento e ressentido porque ele, o autor, humano, humanamente, estava com uma terrível dor de dentes. Anedoticamente, podemos estender este procedimento não apenas a toda a Bíblia, como a qualquer escrito, de Gilgamesh ao Senhor dos anéis, das tragédias de Ésquilo, aos escritos de Confúcio. Podemos fazê-lo, imediatamente, estaremos a cair sob a alçada da crítica de Xenófanes, que nos alerta para a projecção do que somos sobre as 1
entidades sobre que pensamos, sobre que escrevemos. O papel da crítica, de toda, não apenas da textual, deve centrar-se no sentido que cada narrativa procura veicular, no contexto cultural que é o seu, mais ou menos vasto. Tudo o mais é impositivo, perigosamente ideológico, tendencialmente mentiroso. Assim sendo, todas as grandes narrativas que até nós chegaram, como chegaram, com maior e melhor ou menor e pior passagem por meios críticos honestos, merecem, no que são e pelo que são, respeito. Sem respeito, sem este respeito, mais vale que se ignorem, deixando-as, assim, na paz que a distância à estupidez redutora permite. Por exemplo, no velho Ésquilo, podemos ver tudo, menos a libertação da humanidade e do cosmos da tirania alógica do capricho de poderes estúpidos porque caprichosos: que a guarda do mundo deixa de ser coisa de bestas vingadoras as Erínias para passar a ser coisa de entidades maximamente lógicas, as Euménides, as que realizam, que actualizam o bem. Ora, na Bíblia, pode ver-se o que se quiser, dada a riqueza narrativa que possui. Pode, mesmo, ver-se apenas aquilo que satisfaz a nossa fraqueza ou a mesma disfarçada de violenta força, fraqueza dos impotentes travestidos. Pode ver-se um deus tão violento quanto eu; um deus tão cobarde quanto eu; um deus tão invejoso quanto eu; um deus tão estúpido quanto eu. Pode. Isso e muito mais. Tudo recai sob a crítica fundamental a que já se aludiu. Mas, de este todo possível de se ver na Bíblia, faz parte um Deus cuja grandeza activa não cabe na minha capacidade: esse que cria, sem que eu possa criar (não estamos a falar de co-criar a partir do que foi criado, mas de criar em sentido pleno); faz parte um Deus que ama infinitamente em acto, algo que eu não consigo e não consigo sequer imaginar ou inventar a partir do nada: algo que tive de receber precisamente através da narrativa, do 2
«mito» em sentido técnico, se se quiser. Em caso de dúvida, experimente-se amar infinitamente em acto. A Bíblia, mesmo como tecnicamente mito, não é uma narrativa histórica, em que tudo se situa onto-cronicamente ao mesmo nível ontológico. Há, nesta narrativa, um «logos» fundamental que é não apenas o essencial e substancial da sua mensagem, mas é, sem mais a sua mensagem, o seu «alpha» e o seu «omega». Este «logos» é a salvação. Salvação para todo o ser. Salvação especial para o ser humano. Fica o convite para que se leia toda a Bíblia como o compêndio da salvação. Pode dizer-se que tal leitura não é nova. Erro: será nova para quem o fizer: que já tenha sido feito interessou a quem o fez, não nos interessa a nós, os que ainda o não fizemos. Mais: tal leitura não é algo que se faça uma vez, não é um acto de erudição ou de devaneio; é acto permanente de uma vida e deve ser feito em co-leitura com o acto presente da realidade em que estou e que semanticamente sou e, nele, está também isso a que chamo o mundo, comigo. A criação, narrada no Génesis, não é acto historiográfico, mas esse acto que consubstancia a primeira e a grande graça de Deus para com o mundo: pô-lo em ser. A criação do ser humano corresponde à possibilidade de haver uma entidade que pode ser como auto-poeta de seu ser e, sendo-o, de sua própria salvação. Mas salvação a partir do dom de Deus, isto é, sempre com Deus. Um Deus que acompanha, mas não se substitui. Um Deus que convida, mas que nunca força; um Deus que é Pai, mas não é autómato escravo dos caprichos do filho; um Deus que permite que se peque, para que se possa não pecar; um Deus que não é sedativo, mas que também não diminui a alegria. Um Deus livre que permite a liberdade da criatura. 3
Seria uma besta tirânica um deus que roubasse a alegria à criatura alegre, porque a alegria é de quem a é em acto; que nome atribuiríamos a um Deus que roubasse o sofrimento a esse que é sofrimento? Tão bestial é roubar a alegria quanto roubar o sofrimento. Se queremos que Deus nos não roube a alegria, queremos que Deus nos roube o sofrimento? Na relação com Cristo, o Pai nunca lhe rouba coisa alguma deixaria de poder ser Deus, passaria a ser uma besta como eu sou. Deus nunca diminui a alegria de Cristo; Deus nunca diminui o sofrimento de Cristo. Acredita-se que uma e o outro, em Cristo, têm eco espiritual no Pai. O drama é ainda mais profundo e a cena do cálice põe a possibilidade da própria salvação de Cristo. É o momento narrativo pré-trágico mais profundo que se conhece: e se Cristo tivesse falhado o bem que se lhe pedia? Como não ter tal acto eco no Pai? Eis a real possibilidade da morte de Deus, muito mais profunda do que a forma psicológica como Nietzsche a perspectivou. Aí, Deus morreria mesmo. Cumprida a missão, morto Cristo, nessa e por essa morte, que é afirmação suprema de vida, pois é absoluta fidelidade ao bem, ressuscitado, cumpre-se, neste ómega de realidade de salvação, o alfa de sua promessa e possibilidade, dado na e com a criação. Posto isto, quem quiser continuar a preferir, na e da Bíblia, a narração da humana lixeira que lá se mostra porque é real, tem aí adequada recompensa. Uma das possíveis razões para que tal esteja no texto deve mesmo ser essa. Ainda assim, a contemplação do lixo da acção do humano, desde que não-auto-complacente, pode ser caminho de salvação. Santo Agostinho, esse grande perito em lixo da acção humana, que o diga. E diz. É lê-lo. 4
Julho de 2017 Américo Pereira 5