Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On- line n 19

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Transcrição:

O SUJEITO DO GOZO NA PSICOSE Núbia Aparecida Ferreira de Melo 1 Resumo A autora, interessada na afirmação de que o sujeito da psicose não é o sujeito do significante, mas sim o sujeito do gozo, procura localizar, na obra de Lacan, este conceito e as mudanças que ele efetiva nos estudos e tratamento da psicose. Palavras-chave: Gozo, Psicose, Sujeito do Significante, Sujeito do Gozo. Abstract Based on Lacan s affirmation that the subject of the psychosis isn t the subject of the signifier, but it is about the subject of the enjoyment, the author seeks to localize, in Lacan s work, this concept and changes accomplished for it in the studies and the treatment of the psychosis. Keywords: Enjoyment, Psychosis, Subject of the signifier, Subject of the enjoyment. 1 Psicóloga graduada e pós-graduada em Psicanálise: Teoria e Prática, pela Universidade FUMEC. Aluna do curso de Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2014-2016. nubiafmelopsc@hotmail.com Página 1 de 7

O SUJEITO DO GOZO NA PSICOSE A foraclusão generalizada e as psicoses ordinárias, tema do quarto módulo do curso de psicanálise, realçaram os desenvolvimentos posteriores de Lacan no que concerne aos estudos e tratamento da psicose. Se no Seminário. Livro 3: As Psicoses (1955-1956), bem como em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose ([1958] 1998, p.537-590), Lacan enfatiza o registro simbólico e a ausência de seus índices: Nome do Pai e significação fálica recursos para representar a falta a ser e o gozo que se perde como elementos balizadores da psicose extraordinária ou desencadeada, algo de novo se põe quando um modo diferente de entrar na psicose se apresenta. Neste texto, o objetivo não é enveredar por toda a teorização acerca do primeiro e segundo ensino de Lacan sobre as psicoses, ainda que o elemento que nos interessa situar, o sujeito do gozo, derive da passagem de um ensino ao outro. É quando se formula que o sujeito da psicose não é o sujeito do significante, mas sim o sujeito do gozo. E que a clínica da psicose vai tratar da solução de gozo e não do significante. Dois eventos realizados na França, entre 1996 e 1999, A Conversação de Arcachon, com Os casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica, seguida da A Convenção de Antibes, que resultou no livro A Psicose Ordinária, são formalizadores de casos atípicos de psicose que requerem um manejo outro do gozo não localizado, que ataca o ser do sujeito. Os casos são centrados em uma experiência que devemos entender como confrontação a um gozo do Outro, que o sujeito sente como totalmente enigmático, não lhe atribuindo outro lugar senão o de objeto, colocando-o em perigo extremo. Trata-se do real difícil de simbolizar que pode ocasionar passagens ao ato, como suicídios e assassinatos, ou formas inusitadas de tentar localizar o gozo: cortes no corpo, escarificação, tatuagem, uso de drogas e outros. Tudo são maneiras de tentar extrair o objeto que fica no corpo, num excesso, alcançando alguma pacificação do gozo desregulado daí a formulação de que o psicótico traz seu objeto no bolso, colado ao corpo. Miller (2011), no seu texto Efeito do retorno à psicose ordinária, menciona que esta psicose também poderia ser nomeada como comum. Trata-se apenas de um termo, um significante, e não um conceito. No entanto, por se apresentar Página 2 de 7

discretamente, por desligamentos sucessivos do Outro, tornando difícil precisar o diagnóstico, requer tomar em consideração a polaridade entre sujeito do gozo e sujeito do significante, orientando a clínica pela questão do real e do aparelhamento do gozo, o que traria mais perspectivas para alguns tratamentos na atualidade. Miller afirma ainda que Lacan insiste nesta mudança de perspectiva, uma vez que passa a dar todo o lugar à clínica borromeana, contemporânea dos Seminários RSI e O Sinthoma, sem se desconsiderar a clínica estrutural que distingue entre neurose e psicose, em função da presença ou ausência do operador que é o Nome do Pai. É também num outro texto, La Verdad Mentirosa ([2009]2011, p.146), que Miller vai mencionar que é somente quando se considera que a finalidade do aparato significante é o gozo, incluindo aí o real, que Lacan escreveu a pedido seu, na primeira tradução francesa das Memórias do Presidente Schreber el sujeto del gozo. E si no lo repitió, fue porque no se sostenía. Miller segue comentando que foram necessários mais dez anos para se apresentar o parlêtre como o ser que fala de seu gozo, gozo este que é a razão última de seus ditos. O que se encontra na Apresentação das Memórias de um doente dos nervos (Outros Escritos, 1966/2003, p.219-223)? Lacan retoma a importância do texto de Schreber em Freud dizendo que a liberdade que Freud se deu aí foi simplesmente aquela, (...), de introduzir o sujeito como tal.... Ou seja, que não se trata de avaliar o louco em termos de déficit, ou de que lhe falta algo que se precisa recompor. E prossegue, sobre o mesmo texto: A temática que avaliamos pela paciência exigida pelo terreno em que temos de fazê-la ouvida, na polaridade a mais recente promovida do sujeito do gozo e do sujeito que o significante representa para um significante que é sempre outro, não estará nisso o que nos permitirá uma definição mais precisa da paranoia como identificando o gozo no lugar do Outro como tal? (LACAN, 2003, p.221). O que se torna elucidado, a partir do que se coloca, é que a clínica borromeana interroga o que pode manter ligados, ou fazer ficarem juntos os três registros da estrutura: Real, Simbólico e Imaginário, acolhendo outras soluções e invenções para além do Nome do Pai. Cada um pode fazer o seu sinthoma que amarra. Há psicóticos que fazem isso, e foi o que Lacan procurou demonstrar com Joyce, caso paradigmático de uma amarração do sujeito com sua escrita não estava delirando, levando-o à formulação de Joyce, o sinthoma. Schreber, sem Página 3 de 7

narcisismo, faz uma construção delirante: Ser uma mulher copulada por Deus e tudo que vai construir, delirantemente, é para amarrar isso. No livro A Psicose Ordinária (2012) menciona-se a posição ética do psicótico, tantas vezes ressaltada por Lacan em expressões como escolha da liberdade, ou insondável decisão do ser etc., nos seguintes termos: o psicótico é aquele que se recusa a trocar o gozo pela significação (MILLER, 2012, p. 56). Daí ser necessária uma outra lógica na direção do tratamento que leve em conta a relação do sujeito psicótico com lalíngua e não com a articulação significante. As amarrações que um sujeito psicótico faz não precisam ter, necessariamente, um sentido. São construções ou produções que funcionam como um Nome do Pai para o sujeito, e o estabilizam ou religam ao Outro. Sujeito do gozo, portanto, vem indicar a posição do sujeito como resposta do real e como escolha segundo o modo de gozo. Para concluir, faremos um breve relato sobre o documentário A Céu Aberto (2014), de Mariana Otero, cineasta francesa, no que ele revela algo do sujeito tomado pelo gozo desregrado. Otero, interessada no enigma da loucura, escolhe entre as instituições o Le Courtil, na fronteira entre a França e a Bélgica, um espaço que acolhe crianças autistas e psicóticas, para a sua produção. Com uma câmera amarrada ao corpo, deixando livres suas mãos para interagir com os internos, filma cento e oitenta horas, em 2012, o que foi essa experiência, lançada entre 2013 e 2014. Comentando a respeito de seu trabalho, a cineasta dirá que não encontrou ali a loucura, mas sim o modo singular, a língua própria de cada um, diferente da língua da maioria das pessoas. A céu aberto é o que Lacan formula sobre o inconsciente do psicótico, no Seminário, Livro 3, As Psicoses. O inconsciente exposto, sem nenhuma censura. Esquisitices ditas, sem nenhum pudor, marca do que perturba a relação do sujeito com a realidade, tal como a paciente dele que diz numa sessão: Eu venho do salsicheiro (LACAN, 1985, p.60). A cineasta mesmo parece ter-se constituído, com sua presença discreta e sua câmera-olhar, um Outro ao qual as crianças podiam se enlaçar. Um objeto fora do gozo de seus corpos, algo a que se endereçar. Amina, que não utilizava as palavras com clareza, interessa-se pela câmera e por quem está por detrás dela. Pergunta: o que é isso? Otero responde: a câmera. E isto, referindo-se a Otero. Sou eu, Página 4 de 7

Amina, Mariana. Você me conhece! A criança prossegue dizendo que vai querer uma câmera como a dela, quando crescer. Perguntada sobre o que faria, a criança responde que vai filmar lá fora, o céu, as aves... Alysson, uma menina de 12 anos, completamente invadida pelo gozo sexual, não para quieta com suas mãos, inclusive sobre os genitais, o que se acentua quando perto de algum menino. Com um gomo de mexerica na boca, balança-se freneticamente e diz estou chupando. Em outro momento, chega a gritar sexo. No jardim começa a se interessar por minhocas e outras coisas que desenterra. Vai convocar o olhar da cineasta, mostrando para a câmera a minhoca que desliza na palma de sua mão. Em outra cena, Alysson a convoca, colocando-se em três lugares diferentes com a pergunta: e aqui? Ao que Mariana responde: eu te vejo, também te vejo, vejo também, a cada uma de suas posições. Constituição de um corpo para Alysson, cujo diagnóstico é de esquizofrenia, psicose em que o gozo retorna no próprio corpo? O documentário termina com Alysson pegando uma trilha no campo por onde corre e chama: venha, Mariana, por aqui, sempre convocando esse olhar para si. Jean-Hughes, um dos mais velhos, 14-15 anos, fala, delira e pensa sem cessar. Sabemos quanto o Outro do psicótico é tomado como mau, abusador e invasivo. Otero consegue se fazer o Outro dócil que apenas acompanha o psicótico, como sugere Miller. Jean-Hughes a recebe em seu quarto e faz uma apresentação minuciosa de seus objetos. Aliás, é sempre ele que a convida com bom-dia, olá, ou até mesmo fazendo passinhos de dança em frente à sua câmera. Ela nunca o invade. Soube manter a distância que o autista estabelece do Outro insuportável para si. Como Otero pôde funcionar assim, com tanta sensibilidade, não sendo uma profissional com conhecimento do manejo delicado que requer a clínica da psicose? Operava com o mesmo cuidado de cada um dos interventores e demais profissionais do Le Courtil: Véronique Mariage, Dominique Holveoet, Marie Brémant e outros. Todos mergulhados no mundo da singularidade dessas crianças e adolescentes, propiciando e acompanhando as invenções que pudessem constituir alguma borda entre o corpo e a linguagem. Alvarenga, em seu texto Psicoses Freudianas e Lacanianas, propõe que aquele que acompanha o sujeito psicótico na sua experiência enigmática opera, ao contrário do que faz na clínica da neurose, com o mínimo de enigma possível, tentando, de alguma forma, reatar a pulsão à cadeia significante (ALVARENGA, 2000, p.43). Página 5 de 7

Com Alysson, a direção do tratamento foi ocupar suas mãos, que já se ocupavam da terra, com as massas de bolo. Deu para observar sua hesitação quando Marie lhe disse: Agora terá de misturar. Era comum a menina ter dificuldade para prosseguir, queixando-se de dor na barriga, ou na cabeça, nesses momentos em que a finalidade era que o sujeito pudesse ceder um pouco da carga de gozo que afeta seu corpo. Evanne, de 8 anos, roda até cair. Possivelmente, uma representação de suas crises epilépticas, em que cai e se debate. Numa oficina de música, Dominique propõe ao violonista que faça pausa na música e interponha algumas perguntas que a criança tenha que responder, parando-a um pouco em seu gozo de rodopiar incessantemente. A canção dizia: vovó foi à padaria e o que comprou? A criança para e responde: baguete. Quanto custou? Nova parada nos rodopios e um valor: três euros. Logo após, a brincadeira se interrompe com uma fala da criança: fiz cocô. Um esforço para perder, ou esvaziar o gozo que o invade. Jean-Hughes delirava, mas também desenhava e tentava falar do gozo invasivo, na escuta atenta de Marie que se assenta com ele em seu quarto, dizendo não posso deixá-lo assim. Ele que gritava para os italianos o deixarem em paz, diz: Não aguento viver desse jeito, falando sem parar e com tudo isso dentro da minha cabeça. Marie lhe diz que vai ficar ali e que não precisa falar. Segue-se uma conversa em que o orienta sobre como pinçar e não raspar os pelos da sobrancelha que o incomodam, pois demorariam mais para crescer. Jean lembra que já fez isso com seu pai uma vez, e vai ficando visivelmente apaziguado. O tratamento conduzido nessa instituição vai constituindo um novo céu para as crianças e jovens em tratamento, não as deixando à deriva do gozo em seus corpos, que expõe o inconsciente a céu aberto. Referências ALVARENGA, Elisa. Psicoses Freudianas e Lacanianas. Revista Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.28, 2000, p. 40-43. BATISTA, Maria do Carmo Dias; LAIA, Sérgio (Orgs). A psicose ordinária A Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum, 2012. LACAN, Jacques. (1966). Apresentação das Memórias de um doente dos nervos. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.219-223. LACAN, Jacques. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.537-590. Página 6 de 7

LACAN, Jacques. (1955-1956). O Seminário. Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. MILLER, Jacques-Alain. (2009). La Verdad Mentirosa. In: Sutilezas Analíticas, Buenos Aires: Paidós, 2011, p137-147. Página 7 de 7