Fidelidade e liberdade em tradução na Alemanha no século XVII visitando o texto de Georg Philipp Harsdörffer Stéfano Paschoal Neste breve texto, discutiremos os conceitos de liberdade e fidelidade na Tradução na Alemanha no século XVII, considerando para tal os preceitos de Georg Philipp Harsdörffer (1607-1658) sobre imitação (Nachahmung), em sua obra Poetischer Trichter (1653). O conceito de imitação nos remete à Retórica clássica. Ele aparece primeiramente em Aristóteles, em suas obras Retórica e Poética. O discurso aristotélico refere-se à imitatio naturae, ou seja, imitação da natureza. Dentre os variados assuntos discutidos pela Retórica clássica, figuram as possíveis formas de assimilação de uma cultura mediante a imitação. Assim, a imitação de determinadas obras, com o intuito de assimilar formas e conteúdos diversos, denomina-se imitatio veterum ou imitatio auctorum (imitação dos mais velhos ou imitação de autores) e diferencia-se substancialmente da imitatio naturae. Na medida em que os autores da Antigüidade Latina se apropriaram das obras do Período Helênico, construíram, principalmente mediante a tradução, uma identidade cultural própria. Para isto, difundiam o conceito de uma língua pura, escrita com correção e elegância. A imitação das obras do Período Helênico, pelos autores da Antigüidade Latina, não se reduz a uma cópia fiel, em que apenas o código é alterado, mas sim a uma emulação, i.e., o texto resultante da imitação deveria ser igual ou superior ao texto original. Desta forma, para os clássicos latinos, imitatio e aemulatio são termos sinônimos. A imitação/emulação ocorria pela via da tradução, e a tradução visava a transformar a coisa apropriada em coisa própria. Georg Philipp Harsdörffer (1607-1658), intelectual alemão que realizou diversas traduções e que incentivou o cultivo da língua alemã na Alemanha no século XVII, através da escritura de obras específicas, recebeu, assim como seus contemporâneos, uma escolarização de base retórica, mais especificamente na Retórica latina.
Na Alemanha no século XVII, nas aulas de Retórica, incentivava-se a tradução de autores clássicos para assimilação de seus conteúdos e estilos. Logo se passou a privilegiar a língua alemã nas aulas de Retórica (mesmo que estas, ainda no século XVII, fossem ministradas em latim). Em meio à Guerra do Trinta Anos (1618-1648), incentivados pelo ideal da fundação de um símbolo de identificação cultural para os povos de fala alemã (língua e literatura), imbuídos de espírito nacional, e por isso motivados a produzir uma literatura que se equiparasse à literatura de outros países da Europa Ocidental, os intelectuais alemães do século XVII fundaram várias sociedades lingüísticas (Sprachgesellschaften) e, através principalmente de traduções, iniciaram um programa cultural que tirasse a Alemanha das trevas em que estava já desde muito tempo, conforme declara o próprio Harsdörffer no prefácio de sua tradução da Diana Enamorada, de Caspar Gil Polo: Durante muitos anos, os alemães não escreveram nada, diferentemente dos hebreus, gregos e latinos. É bem possível que seja esta a razão pela qual o mundo inteiro os veja como bestas, que nada sabem fazer além de guerrear, comer excessivamente e se embriagar. 1 É neste cenário que ocorre o cultivo da língua presente nas Poéticas escritas na Alemanha no século XVII. A obra de Harsdörffer a que nos referimos neste trabalho Poetischer Trichter é uma dessas Poéticas e trata, dentre muitos outros temas, da tradução. Sobre a tradução em Harsdörffer 2 Em sua abordagem acerca da imitação, Harsdörffer aconselha o tradutor a se manter mais próximo das estruturas do alemão, do que à língua-base (da tradução), por ele chamada de Grundsprache, defendendo a opinião de que, às vezes, sutilezas do pensamento expressas pela linguagem não podem ser transferidas com exatidão para a língua de chegada, como vemos em: Embora seja tarefa do tradutor ater-se com exatidão ao que se expressa na língua-base, por vezes os pensamentos emanados de espíritos sensíveis ele- 1 Die Teutschen haben vor Jahren nichts geschrieben / wie die Ebreer / Griechen und Lateiner / deßwegen müssen sie in aller Welt Bestien heissen / die nichts mehr können / als kriegen / fressen und sauffen. 2 O termo Dolmetschung, utilizado por Harsdörffer, recobre o conceito atual de Übersetzung. 2
vam-se de tal modo às alturas, que não podem ser conveniente e exaustivamente explicados e nem claramente reproduzidos em nossa língua. 3 Neste ponto, embora Harsdörffer reconheça que a tarefa do tradutor é ater-se às idéias do original, ele aponta os riscos de uma empreitada de imitação malfadada, nos casos em que os pensamentos alçam vôos mais elevados, quer dizer, para além do uso comum da linguagem. Principalmente num contexto em que os intelectuais buscavam formas de expressão literária para sua língua, conforme pode ser visto, por exemplo, na quarta e última parte da Poetischer Trichter, de Harsdörffer, composta por um glossário de termos poéticos, é pouco provável que eles aproveitassem termos literários de outras línguas, mesmo porque isto geraria um texto artificial e contrariaria o princípio do cultivo da língua, marca do século XVII na Alemanha. O conceito da emulação gera um texto traduzido que não contém resquícios da tradução. A emulação é defendida por Harsdörffer, quando diz que a melhor tradução é aquela que ninguém percebe como tradução. 4 A opinião contrária de Harsdörffer à tradução literal pode ser vista em: Se eu, no entanto, mantenho integralmente a idéia de um outro e apenas a apresento com outras palavras, isto se assemelha ao quadro, que reproduz o primeiro modelo, pintado por mãos hábeis, só que com outras tintas. 5 Fica claro, portanto, que Harsdörffer defende e incentiva a imitação, entendida aqui, numa acepção atual, como tradução não-literal. A proposta de Harsdörffer abarca duas questões: uma coisa é a idéia, outra coisa é a falta de recursos lingüísticos usados para se expressarem algumas idéias as mais elevadas. Isso aponta justamente para a importância e a necessidade da emulação, que revela os pontos em que a língua tem ainda de se desenvolver. Assim, ele declara: Some-se a isto, que esta imitação deve não apenas se igualar ao original, mas pode ser ainda consideravelmente melhorada pelo mestre na arte de imitar. 6 3 4 5 (...) Ob nun wohl dem Dolmetscher obliegt, bei der Grundsprache Meinung genau zu verbleiben, so sind doch die Gedanken der subtilen Geister zuweilen so hoch aufgestiegen, daß sie in unsrer Sprache nicht füglich ausgeredet und vernehmlich gegeben werden können ( ) (...) Ich will sagen, daß die beste Dolmetschung ist, welche man für keine Dolmetschung hält. ( ). Isto não deve ser entendido como o fazemos atualmente, a partir de um critério de fluência, mas dentro do quadro conceitual da emulação. (...) Wann ich aber eines andern Meinung gantz behalte und nur mit andern Worten ausrede, ist solches gleich dem Gemälde, welches mit andern Farben dem ersten von guter Hand gemalten Stücke nachgemalet wird ( ) 3
Os elementos que propiciam esta superação estão ligados ao contexto sóciohistórico em que está inserido o intelectual alemão do século XVII, que traduz, e constitui-se, em sua maioria, de alterações na caracterização das personagens e na forma de narrativa, plena de cerimoniais e regras de etiqueta. Isto numa época de contestações ao destino e em que a etiqueta servia para mostrar a hierarquia existente numa sociedade de corte absolutista. Desta forma, podemos afirmar que, para Harsdörffer, a tradução deve se distanciar do que se entende por literal e o tradutor, mediante as liberdades que a aemulatio, pela via da escolarização retórica, lhe concede, deve apossar-se do texto a ser imitado e modificá-lo, obedecendo a critérios do programa cultural que visava à fundação de uma língua e literatura nacionais para a pátria alemã. Assim, o texto traduzido deveria soar como um texto original. Para a sala de aula Em qualquer curso de Tradução ou mesmo de Letras, em que se estuda tradução (embora acredite que deveria haver cursos de Tradução à parte, uma vez que esta ela constitui, per se, uma ciência), uma das primeiras discussões é sobre liberdade e fidelidade na tradução. Os conceitos de fidelidade e liberdade não podem, assim como qualquer outro texto, ser vistos isoladamente do contexto que os abrigam. O que se chama de plágio, por exemplo, é um conceito relativamente moderno, e não poderia ser válido para um texto do século XV. É necessário que o aluno de Tradução reconheça a necessidade de investigação da fidelidade e da liberdade de textos. Para isto, deve levar em conta a época em que o texto foi escrito, a intenção do autor (se é identificável ou se está relacionada a uma proposta que envolve uma determinada época) e, principalmente, os aspectos sociais e históricos da época em que viveu o tradutor, pois todo ser humano, independentemente de sua vontade, está inserido num contexto social e acaba por refletir, em suas produções, marca deste contexto. 6 (...) Es füget sich auch, daß diese Nachahmung nicht nur dem urständigen Stücke (Original) gleich, sondern von dem Meister der Kunst noch wohl besser gemacht wird. ( ) 4
Além de o trabalho na sala de aula de Tradução (alemão) com um texto do século XVII remeter a questões interessantes do ponto de vista da língua em si, apresenta outros valores, como: 1. Para a relatividade dos conceitos nos Estudos da Tradução por exemplo, os conceitos de imitação e de fidelidade ao longo do tempo. Em cada tempo e lugar, os conceitos guardam relação com seu entorno e não podem ser tomados, portanto, como absolutos; 2. Inversamente, o estudo de conceitos a partir de exemplos concretos pode fornecer elementos que, associados a aspectos históricos e outros, ajudam a traçar um panorama mais completo de uma época e de uma forma de pensar; 3. A despeito disso, é possível perceber, numa camada mais profunda, linhas de continuidade (e, é claro, também de ruptura). Um continuum, enfim, que rastreado, pode nos ajudar a entender melhor as ênfases que foram dadas e os matizes que adquiriram, ao longo do tempo, questões caras ao traduzir e à tradução; e 4. Por fim, a questão da criatividade, contida no exercício da aemulatio, destitui a tradução de seu caráter, consensualmente aceito, de atividade mecânica. A inserção de um sujeito seja para imitar de forma inábil, seja para superar o autor do original (o Mestre da Arte ) recupera para a tradução sua função de motor propulsor do aprimoramento da língua. Bibliografia HARSDÖRFFER, Georg Philipp. Der schönen Diana, Andern Theil (1646). Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1970. HARSDÖRFFER, Georg Philipp. Poetischer Trichter (1647-1653). Berlin, Die Raubenpresse 1939. 5