A angústia na cena contemporânea e os avatares da masculinidade

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Transcrição:

A angústia na cena contemporânea e os avatares da masculinidade A angústia na cena contemporânea e os avatares da masculinidade Cássio Eduardo Soares Miranda Resumo O presente trabalho 1 discute o mal-estar masculino na cena contemporânea, levando-se em consideração o quadro de angústia instalado no campo da masculinidade diante das exigências que são impostas ao novo homem. Apostamos que a angústia e o mal-estar encontram-se associados às modificações identificatórias na contemporaneidade que fizeram vacilar as representações fundadas no contexto edipiano. Assim, buscaremos discutir como esse novo homem, que é construído pelo discurso midiático 2, forma um imaginário social em torno da virilidade, causando aquilo que pode ser chamado de crise de identidade. Por fim, defendemos a ideia de que a crise de identidade masculina, com seu efeito angustiante, relaciona-se a um certo declínio do pai, com seus variados efeitos no laço social. Palavras-chave Angústia, Laço social, Declínio paterno, Masculinidade. Introdução De um modo um tanto quanto excessivo e com um tom um tanto quanto alarmante, a mídia brasileira tem afirmado e sustentado, nos últimos 15 anos, a crise que se criou no mundo em torno dos papéis masculinos e femininos. Em 1995, a revista Isto É anunciou: O machão falhou, enquanto que, em 1996, a revista Veja mostrou como matérias já estampadas em sua capa A angústia do macho e Mulheres liberadas intimidam o apetite sexual masculino. São apenas alguns exemplos entre tantos outros no mundo da imprensa. Neste artigo, interessa-nos o que tem sido localizado como um mal-estar masculino no mundo contemporâneo. Apresentado sob termos tais como a angústia do macho, o macho perdido, dentre outros, esse tema nutre-se de trabalhos vindos de campos interdisciplinares diversos que discutem basicamente a questão da identidade masculina. Nolasco (1995), por exemplo, afirma que homem, mulher, masculino, feminino são construções, noções que nos ajudam quanto à orientação, mas que frequentemente nos induzem ao erro, uma vez que o sujeito se revela perpetuamente 1. O presente trabalho foi apresentado na XVIII jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, realizada em outubro de 2009, na cidade de Belo Horizonte. É resultado das pesquisas desenvolvidas pelo autor no âmbito de seu projeto de pós-doutorado realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). 2. Tivemos a preocupação em pensar como há uma dependência do humano ao campo das imagens. Sabemos que o eu é constituído por um conjunto de identificações imaginárias e, por isso, o campo das imagens é um espaço de batalhas para ele: lá ele se aliena para, ao mesmo tempo, constituir-se. Seguindo essa hipótese é que optamos por pensar nos efeitos do discurso midiático sobre os sujeitos, enquanto um mestre contemporâneo. No entanto, por questões de recorte metodológico e de tempo, trabalharemos isso em outra oportunidade. Reverso Belo Horizonte ano 32 n. 59 p. 55-60 Jun. 2010 55

Cássio Eduardo Soares Miranda deslocado em relação ao seu corpo sexuado. Do mesmo modo, verificamos que uma equivalência entre o sexo biológico e a posição do sujeito diante de sua sexualidade não é necessariamente coincidente. Sabemos, a partir de Freud e Lacan, que a constituição do sujeito se dá no campo do Outro e aquilo que funciona como definição da masculinidade e da feminilidade a partir dos corpos gera o que poderíamos chamar de identidade de gênero. Como se sabe, tal conceito inclui o sexo biológico, associado aos valores e considerações que a cultura confere a tal sexo. No entanto, apostamos que masculino e feminino dizem respeito a uma posição que o sujeito ocupa no discurso e, a partir de uma incidência imaginária, masculinidade e feminilidade constituem-se a partir de elementos identificatórios que criaram uma identidade masculina ou feminina. Assim, se ficarmos atentos a alguns sinais como os destacados nos parágrafos precedentes, veremos que nos tempos atuais as relações entre homens e mulheres parecem ser sustentadas por uma mulher multimídia, ser humano eficiente, que se deslocou na cultura e que propõe um novo rumo ao amor. O que nos leva a pensar em como as relações amorosas assumem uma nova configuração na contemporaneidade marcadas pelo discurso da ciência que coloca a química do amor e se ampara por pressupostos genéticos que aparece como o definidor da nova lógica amorosa. Ao lado da nova mulher, o novo homem parece ser assim conduzido a assumir, quase que obrigatoriamente, uma certa fragilidade diante das relações entre os dois sexos. A palavra crise surge então de modo exacerbado e insistente. Para uns, ela é o resultado da multiplicidade de identidades promovidas pela hipermodernidade. Para outros, refere-se a um modo de existência ancorado pela liquidez das relações e, também, por um certo nomadismo que se instaurou nos laços humanos 3. Se há uma crise, é possível sustentar que ela tende a suscitar papéis estereotipados tanto para o homem como para a mulher, demarcando-lhes espaços fixos, preestabelecidos, refletindo e refratando uma dada realidade. 1. Psicanálise e crise de identidade masculina Conforme já antecipamos, os deslocamentos com os quais a identidade masculina se vê confrontada no mundo contemporâneo constituem o que tem sido chamado de crise de identidade masculina. Pensar em identidade é partir de um princípio de coincidência 4, ou seja, é verificar que um sujeito coincide consigo mesmo e, consequentemente, a crise implica em uma não coincidência do sujeito consigo mesmo. Assim, verificamos que as bases nas quais foram construídas a noção de identidade masculina no Ocidente, e de modo mais específico, no Brasil, passam pelo campo das construções discursivas realizadas no decorrer do tempo. Sabemos, a partir disso, que masculinidade e feminilidade, longe de serem realidades objetivas e muito menos fenômenos naturais calcados em elementos anátomo-biológicos, são, antes, noções dependentes das formas culturais dentro das quais tais noções emergem. Um exemplo disso são as afirmações cotidianas que demarcam o campo da masculinidade: homem é homem ou homem que é homem... ; ao recaírem sobre o ser, permitiriam ao sujeito afirmar: eu sou homem, a partir do efeito que o significante tem sobre o sujeito. Desse modo, podemos dizer que a crise da identidade masculina 3. Cf.: BAUMAN, 2004; 2005. 4. É oportuno lembrar que, do ponto de vista da lógica matemática, Identidade pode referir-se a uma igualdade que permanece verdadeira quaisquer que sejam os valores das variáveis que nela apareçam, isto para fazer distinção com igualdade matemática, que é verdadeira apenas sob condições mais particulares. 56 Reverso Belo Horizonte ano 32 n. 59 p. 55-60 Jun. 2010

A angústia na cena contemporânea e os avatares da masculinidade é, ao mesmo tempo, uma crise das representações através das quais o imaginário social define o que é ser homem e, por conseguinte, é uma crise das identificações. A nosso ver, como de algum modo já dissemos, os deslocamentos do feminino promoveram um deslocamento do masculino e fizeram com que, de certa forma, os homens fossem abalados em seus referenciais sobre o que é a masculinidade. O que é ser um homem? O que é ser uma mulher? Acreditamos que a denominada crise dos papéis masculinos e femininos surgiu exatamente no ponto em que as mulheres deixaram as posições nas quais elas tradicionalmente foram colocadas: o lugar de esposas dedicadas, dependentes de seus maridos, voltadas para os filhos e condicionadas ao espaço do lar. Desse modo, os lugares atribuídos a homens e mulheres mudaram drasticamente em relação aos séculos precedentes, o que teve por efeito uma produção de novas e inéditas fantasias. No entanto, em razão de nossa proposta de trabalho, não discutiremos tal situação neste artigo. Assim, dos diversos elementos construídos discursivamente em torno da masculinidade, verificamos que os deslocamentos ocorridos nas últimas décadas em função de uma série de fatores, fizeram vacilar o campo dos ideais e, consequentemente, provocaram uma crise na identificação. Basta lembrarmos que, em Freud, a identificação é resultado de um processo de idealização, o que é fundamental para a formação da identidade e do efeito de massa. Diz-nos Freud: Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego (FREUD, 2005; p. 126). Desse modo, entendemos que a Crise ocorre exatamente no momento em que as certezas se fazem vacilar e têm o efeito de fazer o sujeito interrogar: suas relações com o Outro do amor, da sua posição enquanto sujeito, de seus modos de gozo e do acesso que se tem ao seu desejo. No entanto, clinicamente torna-se evidente que tais situações não são muito simples e normalmente são acompanhadas de angústia. Assim, pensar na angústia na cena contemporânea no que diz respeito ao masculino é pensar nos avatares que fixam o sujeito em uma posição estável e, por vezes, em uma posição de alienação, protegido da angústia. Todavia, para nós também é evidente o fato de que tal crise acontece e se sustenta, não se dá apenas pelas modificações que ocorrem nos modos de gozo no decorrer da história e fazem com que as representações construídas imaginariamente fracassem. Tal crise aparece também pela oferta de novas representações, embora encontremos no mercado de imagens contemporâneo uma série de ofertas imaginárias com as quais o sujeito possa se identificar (MI- RANDA, 2008). Dessa maneira, entendemos que as modificações na esfera do que é ser um homem e ser uma mulher ocasionam a busca de padrões identificatórios que dirão ao sujeito como se portar na vida. Sabemos que tanto a condição de masculinidade como a condição de feminilidade passam necessariamente por formações imaginárias e pelo circuito dos ideais, e a clínica nos mostra que a formação da masculinidade se dá essencialmente através da relação do menino com o pai via identificação, associada às particularidades do sistema social no qual está inserido. 2. Um pai, seu filho e o declínio do viril Segundo Miller (2006), a ideia do declínio do viril, e mesmo de sua desaparição no mundo contemporâneo, tem todo o seu interesse. Sem dúvida, ela não é pensável sem o declínio do pai. Com esse autor, observamos que Lacan assinala o declínio da imago paterna já em 1938, no seu texto sobre Os complexos familiares na formação do indivíduo. No citado tex- Reverso Belo Horizonte ano 32 n. 59 p. 55-60 Jun. 2010 57

Cássio Eduardo Soares Miranda to, Lacan afirma que o declínio social da imago paterna se mostra condicionado pela migração das populações concentrando-se nas grandes cidades. Este fato produz efeitos sobre a estrutura familiar observável no crescimento das exigências matrimoniais, acarretando o protesto da esposa lançado ao marido. Em suas discussões teóricas Lacan afirma: Não somos daqueles que se afligem com um pretenso afrouxamento do laço familiar (...). Mas um grande número de efeitos psicológicos nos parece se originar em um declínio social da imago paterna (...). Seja qual for seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja a essa crise que devamos reportar a aparição da própria psicanálise (LACAN, 1997, p.60). Além desse texto, podemos também, a partir da releitura do caso clínico do Pequeno Hans, de Lacan, 1957, formular a tese de que o homem, o viril não existe (MILLER, 2006, p.181). Na leitura lacaniana, Hans não completa o percurso significante da castração; devido a uma inoperância paterna, ele não chega a integrar a sua masculinidade. Em função disso, a vida amorosa de Hans fica marcada pela identificação feminina; isso se manifesta em uma posição passiva, em certo estilo masculino que é o da geração de 1945, ou seja, o daqueles encantadores rapazes que esperam que as iniciativas venham das damas (LA- CAN, 1995[1956-1957], p. 429). Dito de outro modo, Lacan caracterizou os homens de sua época como os homens tipo Hans e que seriam homens angustiados frente às mulheres, homens que não tomam a iniciativa no campo sexual, protótipo de homens passivos que esperam que a mulher-mãe faça por eles. Desse modo, a pergunta o que é ser homem? necessariamente leva-nos a interrogar: o que é um pai?. Lacan nos diz que o pai é uma metáfora, é um significante que substitui outro significante. Nesse momento, a posição masculina é também definida enquanto metafórica: na medida em que é viril, um homem é sempre mais ou menos a sua própria metáfora (LACAN, 1999, p. 201). Se há uma identificação do filho ao pai, a identidade sexual do sujeito masculino é marcada por um certo declínio em função de um certo declínio do pai. No entanto, não nos esqueçamos, do ponto de vista lacaniano, é preciso pensar nos avatares da masculinidade a partir dos discursos que circulam na sociedade. Assim, pensar no declínio do masculino aponta para uma angústia masculina em função das mudanças ocorridas no campo discursivo. 3. O discurso como princípio do laço social Nos anos 1970, o pensamento lacaniano centra-se na presença dos discursos na sociedade e o modo como eles constituem laço social. A partir da noção de significante mestre (S1), estamos autorizados a que os giros dos discursos fazem com que tais significantes que dão uma sustentação imaginária à masculinidade se localizem não mais em um lugar fixo, mas em lugares diversos. Se um significante representa o sujeito para outro significante, o sujeito identificado ao S1 significante que o representa encontra-se alienado em sua condição. No entanto, se a identificação, por algum motivo, vacila, a não identidade aparece e a divisão do sujeito se presentifica. Desse modo, interrogamo-nos se na vida contemporânea a partir da relação dos traços identificatórios da masculinidade com a angústia não estaria sofrendo uma passagem do discurso do mestre ao discurso da histérica. O que nos leva a pensar assim? Ora, de alguma forma, quando o sujeito se divide temos no discurso da histérica o questionamento que o sujeito faz sobre sua própria sexualidade. Além dis- 58 Reverso Belo Horizonte ano 32 n. 59 p. 55-60 Jun. 2010

A angústia na cena contemporânea e os avatares da masculinidade so, lembremos-nos que homem e mulher são efeitos de discurso 5. Entretanto, precisamos pensar também que nossa civilização é a civilização do objeto a, em que os objetos são colocados no mundo como objetos de mais-gozar, de puro gozo. É nesse sentido que podemos pensar que a angústia na cena contemporânea refere-se mais ao fato de o mais-gozar ser causa de desejo (SOLER, 1988) do que a uma dimensão do ideal. Essa autora observa que nossa civilização é a civilização da ciência e dos objetos por ela produzidos; tais objetos parecem ser a saída para os desejos humanos. Sabemos que há um mercado que parece realizar o desejo dos sujeitos tomados um a um e, por isso, O consumo está de acordo com o tempo presente. 4. Considerações finais Se aquilo que se passa no campo da identificação não se realiza completamente, podemos pensar que, talvez, a angústia na cena contemporânea, no que diz respeito à masculinidade, aparece em função tanto de um certo declínio da imago paterna quanto a uma oferta de objetos de mais-gozar. De um lado, verificamos que a função paterna está cada vez menos privilegiada. Na prática clínica observamos que, em muitos casos, o pai não orienta mais a família. Da mesma maneira, as parcerias contemporâneas são muito mais diversificadas: há casais homoparentais, famílias recompostas com padrastos e madrastas, mulheres solteiras que buscam a adoção de embriões, ou seja, a cultura moderna descobriu que o pai é uma máscara, um semblant, que pode ser usada por qualquer um. De outro lado, percebemos que há uma proliferação de objetos de mais gozar na cena contemporânea. Ora, Jacques Lacan, em Televisão, já sustentava que o discurso do capitalismo viria a balizar nosso tempo, uma vez que esse discurso se encontra regulado pela ação do saber científico. O discurso capitalista, associado ao Saber do discurso da ciência, produz objetos de mais-de-gozar, que por sua vez criam um imperativo de gozo frente ao consumo, junto com uma insaciabilidade em adquiri-los. Do mesmo modo, parece-nos que falta alguma coisa no que tange à transmissão do pai no que diz respeito ao como desejar uma mulher. Nestes termos, podemos convocar Lacan (1975), com sua noção de père-version para nos ajudar a encerrar: Um pai só tem direito ao respeito e ao amor se o dito respeito é [...] pére-versamente [...] orientado, quer dizer que faz de uma mulher objeto a que causa seu desejo. ϕ 5. A esse respeito, conferir o Seminário 17, de Jacques Lacan (O avesso da psicanálise). Além disso, é oportuno verificar os trabalhos de Maria Rita Kehl sobre a temática, principalmente os livros Deslocamentos do feminino e Masculino e feminino: a mínima diferença. Reverso Belo Horizonte ano 32 n. 59 p. 55-60 Jun. 2010 59

Cássio Eduardo Soares Miranda THE ANGST IN THE CONTEMPORARY SCENE AND THE AVATARS OF MASCULINITY Abstract This paper discusses the male malaise in the contemporary scene, taking into account the context of anxiety installed in the field of masculinity in the face of demands that are imposed on the «new man». We theorises that anguish and distress are related to changes in contemporary Identification correlateded with the representations waver based on oedipal context. So, we try to discuss how this «new man» which is constructed by the media discourse, as a social imaginary about virility, causing what might be called identity crisis. Finally, we support the idea that the crisis of male identity, with its harrowing effect, relates to a certain decline of the father, with their varied effects on the social bond. Keywords Anxiety, The social bond, Decline paternal, Masculinity. Bibliografia BAUMAN, Z. O amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BAUMAN, Z. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. FREUD, S. (1921). Psicologia das massas e a análise do ego. In: Edição Standard Brasileiras das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 2005. LACAN, J. (1956-1957). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. LACAN, J. (1975). O seminário: R.S.I. Inédito. LACAN, J. (1957-1958). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MILLER, J. A. El Outro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 2006. MIRANDA, Cássio Eduardo Soares. Uma abordagem do discurso amoroso na perspectiva da análise do discurso e da psicanálise. 342f. Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte: 2008 (Tese de doutorado). NOLASCO, S. A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. SOLER, Colette. Finales del analisis. Buenos Aires: Manantial, 1988. RECEBIDO EM: 01/04/2010 APROVADO EM: 01/05/2010 SOBRE O AUTOR Cássio Eduardo Soares Miranda Psicólogo. Psicanalista. Doutor em Letras pela UFMG. Pós-Doutorando pela FALE. FALE-UFMG/FAPEMIG. Endereço para correspondência: Rua Antônio de Albuquerque, 717/603 Savassi 30.112-010 BELO HORIZONTE MG Tel.: (31)3327-7462 E-mail: cassio.edu2007@gmail.com 60 Reverso Belo Horizonte ano 32 n. 59 p. 55-60 Jun. 2010