Ciência e Fé Módulo II Filosofia Grega e Cosmologia Grega. Outubro de 2011 a Fevereiro de 2012

Documentos relacionados
PARTE 2 do curso Ptolomeu, Copérnico e Galileu

PARTE 2 do curso Ptolomeu, Copérnico e Galileu

Modelos do Sistema Solar. Roberto Ortiz EACH/USP

Modelos do Sistema Solar. Roberto Ortiz EACH/USP

POR QUE GEOCENTRISMO PREVALECEU?

Movimento dos Planetas

Movimento dos Planetas

Movimento dos Planetas

Movimento dos Planetas

Fundamentos de Astronomia Turma (T)

Ensino de Astronomia

Colégio Santa Cruz - Ensino Médio - Profª Beth

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Física Departamento de Astronomia Fundamentos de Astronomia e Astrofísica: FIS2001 Prof. Rogéri

Colégio Santa Cruz - Profª Beth

Colégio Santa Cruz - Profª Beth

A Ciência em Alexandria. Reconstrução do Átrio da Biblioteca de Alexandria

A Ciência em Alexandria. Reconstrução do Átrio da Biblioteca de Alexandria

-Tales de Mileto (585 a.c.) geometria dos egípcios aplicada ao céu- previsão de um eclipse solar em 5 de Maio de 585 a.c. -Pitágoras (500 a.c.

-Tales de Mileto (585 a.c.) geometria dos egípcios aplicada ao céu- previsão de um eclipse solar em 5 de Maio de 585 a.c. -Pitágoras (500 a.c.

Leis de Kepler Miguel Migu Net N a, 2, j 0 a 0 n 8 eiro de 2019 [Imagem:

PARTE 2 do curso Ptolomeu, Galileu e Copérnico

-Tales de Mileto (585 a.c.) geometria dos egípcios aplicada ao céu- previsão de um eclipse solar em 5 de Maio de 585 a.c. -Pitágoras (500 a.c.

Profº Carlos Alberto

A filosofia Moderna. Colégio Cenecista Dr. José Ferreira Filosofia Professor Uilson Fernandes 1º Ano Ensino Médio Terceiro Trimestre

Sumário. O Universo. Modelo geocêntrico

Física Básica RESUMO. Física dos corpos celestes. Física 1

Capítulo 6. Gravitação Universal

Curso dedicado à formação de astrólogo clássico.

Introdução. Aula 5 - Movimento dos planetas: o modelo heliocêntrico de Copérnico.

O Universo e o Sistema Solar

Introdução à Astronomia Fundamental. A Astronomia da Antiguidade aos Tempos Modernos

1. GRAVITAÇÃO PARTE I

Ondas & Mecânica MEEC/IST Aula # 14

DE TALES A PTOLOMEU: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO DOS PRINCIPAIS SISTEMAS COSMOLÓGICOS GREGOS

Introdução à Astronomia Semestre:

O que é a gravidade? Thiago R. P. Caramês

Curso de Astronomia Básica. 1.1 História da Astronomia

Aula 1: Modelo geocêntrico (Aristóteles Ptolomeu)

das primeiras galáxias estrelas Idade das trevas Galáxias modernas 380 mil anos 300 milhões de anos 1 bilhão de anos Hoje

Problemas com o modelo de Ptolomeu.

INTRODUÇÃO. Um pouco de História...

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 1- Gravitação Física II

Zaqueu Vieira Oliveira 2. Palavras-chave: Adriaan van Roomen. Esferas Celestes. Círculos Celestes.

Questão 01) TEXTO: 1 - Comum à questão: 2

Educação Matemática MATEMÁTICA LICENCIATURA. Professora Andréa Cardoso

1. Mecânica do Sistema Solar (I)

Aulas Multimídias Santa Cecília Professor Rafael Rodrigues Disciplina: Física Série: 1º ano EM

Dinâmica: Algumas Forças Especiais Parte 1

telescópios, apenas utilizando intrumentos inspirados nos instrumentos gregos e das grandes navegações para medidas precisas das posições de

GRAVITAÇÃO: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

HISTÓRIA DA ASTRONOMIA

Fundadores da Ciência no Mundo Demócrito Sócrates Ptolomeu. Alvaro Davi Stangue de Lara Gilberto Aparecido Galvão 1

Preconceito muito pra frente

Tarefa online 8º EF. Física - Prof. Orlando

Movimentos da Terra. Gastão B. Lima Neto Vera Jatenco-Pereira IAG/USP. Agradecimento ao Prof. Roberto Boczko pelo material cedido

Modelo geocêntrico: Terra no centro do Universo. Corpos celestes giravam ao seu redor. Defensores: Aristóteles e Cláudio Ptolomeu.

Movimentos da Terra e da Lua e eclipses. Gastão B. Lima Neto IAG/USP

MODELOS PLANETÁRIOS I 5

1. Observe a ilustração de um planeta do Sistema Solar:

Gravitação Universal. Física_9 EF. Profa. Kelly Pascoalino

Tópicos Especiais em Física

Ensino de Astronomia. Curso de extensão Ensino de Astronomia no ABC

Planetas: corpos errantes

GRAVITAÇÃO UNIVERSAL. Professor Danilo. Folha 33

Esfera Celeste: estrelas fixas

I Curso Introdução à Astronomia Jan A Terra e a Lua. Daniel R. C. Mello. Observatório do Valongo - UFRJ

SISTEMA SOLAR: O MOVIMENTO DOS PLANETAS E SATÉLITES

MODELANDO O COSMO CSA 9ºANO

Mini-Curso de Astronomia do Museu do Eclipse

Geodésia II - Astronomia de Posição: Aula 02

Curso Astronomia Básica. O sistema solar. Marcelo Moura. Abril Centro de Estudos Astronômicos de Minas Gerais

AS LEIS DE KEPLER A LEI DA GRAVITAÇÃO UNIVERSAL

Idade Moderna. Revolução copernicana. Com diversos slides de Roberto Boczko

Ensino de Astronomia

Algumas Dúvidas Frequentes

Astrofísica Geral. Tema 01: Astronomia Antiga. Alexandre Zabot

Esfera Celeste: estrelas fixas

SISTEMA SOLAR: O MOVIMENTO DOS PLANETAS E SATÉLITES

Astrofísica Geral. Tema 01: Astronomia Antiga

ESCOLA SALESIANA DE MANIQUE TESTE DE AVALIAÇÃO DE CIÊNCIAS FÍSICO-QUÍMICAS ANO LECTIVO 2010/2011

Material de Aperfeiçoamento de Estudos MAE 5ª série 1º Bimestre Professora MaristelA Borges

Teoria do Big Bang CURSO EFA DR4

Universidade da Madeira. Movimento real e. Grupo de Astronomia. aparente das estrelas e dos Planetas. Laurindo Sobrinho. 15 de fevereiro de 2014

Duração do dia: é sempre igual?

Lista de Revisão Prova Mensal de Física 3 o Bimestre Professor Fábio Matos 3 o EM

Movimentos da Terra. Gastão B. Lima Neto Vera Jatenco-Pereira IAG/USP. Agradecimento ao Prof. Roberto Boczko pelo material cedido

Breve introdução histórica

Escola de Atenas, Rafael, 1509

IFRS Câmpus Rio Grande Física IV LISTA I - GRAVITAÇÃO UNIVERSAL

GALILEU GALILEI ( )

DINÂMICA DO SISTEMA SOLAR

/augustofisicamelo. 16 Terceira Lei de Kepler (2)

Introdução À Astronomia e Astrofísica 2010

Movimento real e aparente das estrelas e dos Planetas

HISTÓRICO GEOCÊNTRICO MODELOS: HELIOCÊNTRICO

10 as Olimpíadas Nacionais de Astronomia

A história da Astronomia

Noções de Astronomia e Cosmologia

Explorando o Universo: dos quarks aos quasares. Astronomia de Posição. Professor: Alan Alves Brito Agradecimento: Professor Roberto Bockzo

Transcrição:

Ciência e Fé Módulo II Filosofia Grega e Cosmologia Grega Outubro de 2011 a Fevereiro de 2012

Ciência e Fé Estrutura do Curso I - Introdução II - Filosofia grega e cosmologia grega III - Filosofia medieval e ciência medieval IV - Inquisição e Ciência V e VI - O caso Galileu VII - A revolução científica VIII - Darwin e a Igreja Católica IX - Os Argumentos Cosmológico e Teleológico X - Filosofia da Mente e Inteligência Artificial XI - Milagres e Ciência XII - Desafios ao diálogo entre Ciência e Fé

Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 2

Física aristotélica O Cosmos é eterno Toda a coisa que se move (que muda) é movida (mudada) por outra Todo o movimento é contínuo e não há vazio (contra Demócrito e os indivisíveis dos atomistas) Os corpos celestes são radicalmente distintos dos terrestres (sublunares) O movimento celestial é circular (esferas de cristal no éter), uniforme e incorruptível (eterno) O movimento terrestre ideal é rectilíneo, vertical e de velocidade constante Quer a esfera das estrelas fixas, quer as esferas dos planetas, são movidas pelo seu motor imóvel No topo está o primeiro motor imóvel, origem de todo o movimento, regendo todos os motores imóveis O movimento terrestre não ideal deve-se a colisões e à geração e corrupção Os fenómenos de aparente irregularidade nos céus (cometas, supernovas) são meteorológicos Aristóteles (c. 384-322 a.c.) 3

Física aristotélica Os quatro elementos que compõem as coisas terrestres: 1. Terra (fria, seca): uma potencialidade para esfriar e para secar 2. Água (fria, húmida): uma potencialidade para esfriar e para humidificar 3. Ar (quente, húmido): uma potencialidade para aquecer e para humidificar 4. Fogo (quente, seco): uma potencialidade para aquecer e para secar Estes elementos não existem como substâncias mas como potências das substâncias Cada elemento pode transformar-se num elemento vizinho com quem partilhe uma potencialidade FOGO QUENTE SECO AR TERRA HÚMIDO FRIO ÁGUA 4

Física aristotélica Movimento natural: cada corpo em movimento tende para o seu lugar natural O lugar natural de um corpo depende da proporção dos elementos que o compõem 1. Terra em preponderância: tende para o centro do Cosmos (onde está o planeta Terra) 2. Água em preponderância: idem, mas acima da Terra 3. Ar em preponderância: tende para longe da Terra, mas abaixo do Fogo 4. Fogo em preponderância: idem, mas acima do Ar e abaixo da esfera lunar Em diagramas antigos, os elementos surgem idealizados em esferas sublunares concêntricas 5

Eudoxo de Cnido, Εὔδοξος (c. 410-408 a.c. c. 355-347 a.c.) Astrónomo, matemático e filósofo; foi aluno de Platão Apresenta o primeiro sistema astronómico conhecido, tentando de explicar os movimentos planetários Aristóteles adopta e comenta o sistema de Eudoxo (na Metafísica, e na obra Do Céu ) 1. A Terra está no centro do Universo 2. Todo o movimento celestial é circular (ideia que perdurará até Kepler) 3. Todo o movimento celestial é regular 4. O centro do caminho percorrido por qualquer movimento celestial é idêntico ao centro do movimento 5. O centro de todo o movimento celestial é o centro do Universo 6

Salvar os fenómenos ( sozein ta phainomena ) A Terra roda diariamente sobre o seu eixo de Oeste para Este (o Sol pôe-se sempre a Oeste) O Sol e todos os planetas (excepto Vénus) possuem essa rotação axial Oeste-Este No contexto da física aristotélica, a Terra está imóvel no centro do Universo Logo, o movimento (aparente) diário dos céus era explicado, pelos gregos, com sendo Este-Oeste Os planetas exteriores também exibem um movimento anual lento Oeste-Este contra o fundo estelar Quando a Terra ultrapassa um planeta exterior, esse planeta parece retrogredir de Este para Oeste: Marte retrogride durante 72 dias a cada 25,6 meses Júpiter, durante 121 dias a cada 13,1 meses Saturno, durante 138 dias a cada 12,4 meses Urano, durante 151 dias a cada 12,15 meses Neptuno, durante 158 dias a cada 12,07 meses Este fenómeno explica-se pela maior velocidade angular dos planetas mais próximos do Sol Eudoxo criou um modelo para explicar este fenómeno Eudoxo não atribuía realismo a este modelo, era apenas instrumental, concebido para salvar os fenómenos 7

Salvar os fenómenos ( sozein ta phainomena ) Todos os planetas apresentam um troço de movimento retrógrado no seu percurso Oeste-Este: πλανήτης αστήρ planētēs astēr «astro errante» Como descrevê-lo com base em movimentos circulares uniformes? Eudoxo supôs duas esferas concêntricas rodando em sentidos opostos O eixo de rotação da esfera interior (O-M) está oblíquo ao da exterior (O-N) Juntando mais uma esfera para explicar o nascer e o pôr de um planeta, e outra para o seu movimento anual Oeste-Este, este sistema gera este padrão: 8

Cláudio Ptolomeu (90-168 d.c) Astrónomo, matemático, geógrafo e astrólogo, egípcio helenizado, cidadão romano Autor do mais antigo tratado astronómico a chegar aos nossos dias, o Almagesto (c. 150 d.c) Ptolomeu baseou-se amplamente nas observações dos caldeus (Babilónia) «O Almagesto partilhou o destino de muitas outras grandes obras na história da ciência. Foi falado por muitos, mas estudado a sério apenas por poucos. No entanto, foi tão importante para a ciência antiga como foram os Principia de Newton para o século XVII, e não há dúvida de que foi um feito científico maior do que o De revolutionibus [de Copérnico] que obliterou a sua fama, do mesmo modo que Copérnico ofuscou Ptolomeu como um génio astronómico.» - Olaf Pedersen (1920-1997) Cláudio Ptolomeu (90-168 d.c.) Κλαύδιος Πτολεµαῖος 9

O Almagesto Requer vários conhecimentos prévios: geometria euclideana, matemática, observação astronómica A obra contém um modelo geométrico que se adapta muito bem a um grande número de observações A grande qualidade da obra é mérito de Ptolomeu, mas também do acervo da Biblioteca de Alexandria O método de Ptolomeu não é indutivo, partindo dos dados para chegar ao modelo, mas vice-versa Seguindo a tradição grega, o método de Ptolomeu é geométrico e não algébrico (como o dos caldeus) O Almagesto só chega à Europa (em traduções do grego ou do árabe) no século XII O modelo ptolemaico ajusta-se aos dados astronómicos pelo uso de epiciclos, deferentes e equantes Epiciclo O planeta gira numa órbita (epiciclo) Deferente O centro do epiciclo gira noutra órbita (deferente) Equante O centro do epiciclo mantém velocidade angular constante em relação ao ponto equante 10

Epiciclos, deferentes e equantes 1. Princípio do movimento excêntrico: A Terra não é postulada no centro das órbitas planetárias mas num ponto excêntrico a essas órbitas Função: explicar a variação anual do brilho dos planetas e a (aparente) variação na velocidade 2. Princípio do epiciclo: Cada planeta revolve em torno de um círculo (epiciclo) cujo centro por sua vez revolve em torno de outro círculo (deferente); mais epiciclos podem ser acrescentados se necessário Função: explicar os troços estacionários e retrógrados nas órbitas planetárias 3. Princípio do equante: Cada planeta revolve em velocidade angular constante face a um ponto (o equante) distinto do centro do deferente Função: explicar as variações anuais na velocidade angular dos planetas O equante agravou ainda mais o divórcio entre a física aristotélica e a astronomia ptolemaica Física aristotélica Divórcio Astronomia ptolemaica Pretendia explicar a estrutura da Natureza e a causa dos movimentos na Natureza Reinou durante 19 séculos Pretendia apenas salvar os fenómenos, ou seja, calcular os movimentos celestiais Reinou durante 14 séculos

Modelos heliocêntricos antigos O pitagórico Filolau (470-385 a.c.) defendia que a Terra e uma anti-terra orbitavam um fogo central Heráclides do Ponto (c. 390-310 a.c.) explica a aparente rotação das estrelas num período de 24 horas pela rotação diurna Oeste-Este da Terra Aristarco de Samos (310-230 a.c.) troca o fogo central de Filolau pelo Sol Com base em estimações do tamanho do Sol e da Lua e das suas distâncias à Terra, Aristarco intuiu que o Sol seria muito maior que a Terra Por essa razão, Aristarco supôs que a Terra orbitaria o Sol O heliocentrismo grego não teve sucesso porque contrariava o senso comum, porque era incompatível com o aristotelismo e pela falta da paralaxe Só com Copérnico é que o heliocentrismo é recuperado Aristarco de Samos (310-230 a.c.) Ἀρίσταρχος Página (parcial) de uma colecção de astronomia grega compilada no séc. X, contendo a obra de Aristarco, Sobre os tamanhos e distâncias [do Sol e da Lua] (Περὶ µεγεθῶν καὶ ἀποστηµάτων [ἡλίου καὶ σελήνης])

Conclusão «É verdade que na história da astronomia, Ptolomeu foi principalmente o Ptolomeu do Almagesto, e por razões bastante óbvias. Foi de longe o seu maior tratado astronómico, no qual todas as teorias planetárias foram construídas através de modelos geométricos cujos parâmetros foram derivados de observações reais. Adicionalmente, o Almagesto foi composto num contexto de rigor disciplinado, definindo um padrão muito elevado para a literatura astronómica séria. Ninguém pode escapar à sensação de profundo respeito e admiração para com uma obra de tal clássica beleza e força. Não admira que o Almagesto tenha conseguido marcar o desenvolvimento da astronomia durante séculos. De facto, o principal trabalho de Ptolomeu deve ser considerado como a fonte derradeira de toda a astronomia no mundo Ocidental até que foi finalmente substituído, através dos esforços de Kepler e Newton.» - Olaf Pedersen (1920-1997) 13