A AUDIÇÃO DA CRIANÇA NOS PROCEDIMENTOS QUE CORREM NAS CONSERVATÓRIAS DO REGISTO CIVIL

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Transcrição:

A AUDIÇÃO DA CRIANÇA NOS PROCEDIMENTOS QUE CORREM NAS CONSERVATÓRIAS DO REGISTO CIVIL A Lei n.º 5/2017, de 2 de Março, veio estabelecer o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais por mútuo acordo junto das conservatórias do registo civil em caso de separação de facto e de dissolução da união de facto, bem como entre pais não casados, nem unidos de facto. Esta alteração legislativa regula o mesmo tipo de procedimento que já existia para os pais casados no âmbito de um processo de divórcio por mútuo consentimento na conservatória do registo civil (Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro), somente com a diferença de que, no novo regime legal, os pais não casados apenas resolvem a questão do exercício das responsabilidades parentais dos seus filhos menores, e não todas as questões que estão subjacentes ao divórcio por mútuo consentimento (artigo 1775.º do Código Civil). No divórcio por mútuo consentimento administrativo, o conservador do registo civil que recebe o requerimento dos cônjuges deve enviar o acordo destes sobre o exercício das responsabilidades parentais ao Ministério Público junto do tribunal judicial de 1.ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição da residência da criança (artigo 274.º-A, n.º 4, do Código de Registo Civil, na redacção dada pela Lei n.º 5/2017), para que este se pronuncie sobre o mesmo no prazo de trinta dias. Não havendo oposição do Ministério Público, o processo é remetido ao conservador do registo civil para homologação, produzindo esta

homologação os mesmos efeitos das sentenças judiciais sobre idêntica matéria (n. os 5 e 6 do mesmo artigo). O n.º 4 do artigo 274.º-B do Código de Registo Civil (na redacção dada pela referida Lei n.º 5/2017) refere que o Ministério Público deve promover a audição da criança 1 para recolha de elementos que assegurem a salvaguarda do seu superior interesse, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível. Estes direitos de audição e de participação da criança nos processos tutelares cíveis têm expressão noutros instrumentos de direito internacional, europeu e interno, que, em suma, exigem que a autoridade judicial, antes de tomar uma decisão, deva verificar se, em função da sua idade ou maturidade, a criança deve ser ouvida com vista poder exprimir livremente a sua opinião relativamente aos assuntos que lhe dizem respeito (artigo 6.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças e artigo 24.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como as Directrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça Adaptada às Crianças). Concretizando as obrigações para os Estados decorrentes do artigo 11.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, o artigo 13.º, 2.º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980) 2 estabelece que a autoridade judicial pode fundamentar a recusa do regresso de uma criança quando verifique que esta se opõe a esse regresso e a mesma tenha atingido uma idade e um grau de maturidade que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. 1 A formulação utilizada é semelhante à que consta do n.º 2 do artigo 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível relativamente ao juiz. 2 Aprovada pelo Decreto n.º 33/83, de 11 de Maio.

A audição e a participação da criança nos processos judiciais em que sejam intervenientes, de acordo com a sua idade e maturidade, é também particularmente relevante enquanto condição essencial para o reconhecimento e execução de decisões relativas aos direitos de convívio da criança com os seus progenitores ou relativas à deslocação ou retenção ilícita de crianças (artigos 23.º, alínea b), 41.º, n.º 3, alínea c), e 42.º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (CE) n.º 2203/2001, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental). Também a Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade Parental e de Medidas de Protecção das Crianças (concluída na Haia em 19 de Outubro de 1996) 3 dispõe que o reconhecimento das decisões pode ser recusado se a medida tiver sido tomada, salvo em caso de urgência, num processo judiciário ou administrativo sem se ter concedido à criança a possibilidade de ser ouvida, violando-se, assim, os princípios fundamentais dos procedimentos do Estado requerido (artigo 23.º, n.º 2, alínea b), da Convenção). Da conjugação de todas estas disposições normativas resulta que, mesmo nos processos de divórcio ou de dissolução da união de facto que corram termos nas conservatórias do registo civil, deve caber ao Ministério Público, no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais, realizar a audição da criança, especialmente se estiverem em causa situações que a possam justificar pela idade e maturidade da criança ou quando se esteja perante uma situação jurídica plurilocalizada que justifique ou imponha o futuro reconhecimento e execução daquela decisão homologatória num outro Estado. 3 Aprovada pelo Decreto n.º 52/2008, de 13 de Novembro.

Mais ainda: a audição da criança realizada pelo Ministério Público nunca pode constituir fundamento para a recusa do reconhecimento e execução da decisão de regulação do exercício das responsabilidades parentais, quer ao abrigo da Convenção da Haia de 1996, quer ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 2203/2001. Com efeito, o próprio artigo 23.º, n.º 2, alínea b), da Convenção da Haia de 1996 estabelece que essa medida pode ser tomada no contexto de um processo judiciário ou administrativo e o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 dispõe que no conceito de tribunal abrange todas as autoridades que, nos Estados Membros, tenham competência nas matérias abrangidas pelo referido Regulamento (artigo 2.º). Estas disposições devem ainda ser interpretadas à luz do disposto no artigo 12.º, 2.º, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, o qual dispõe que é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem ( ), segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional. Considerar a criança como um ser autónomo e dotado de plenos direitos implica conferir-lhe a possibilidade de participação e de audição nas questões que lhe digam respeito. Ao mesmo tempo, isso implica que os adultos saibam interiorizar esta nova concepção da criança como pessoa e lhe concedam os meios para a defesa do seu superior interesse e para o exercício dos seus direitos fundamentais. Deste modo, a audição e a participação da criança são direitos que devem ser observados por todas as autoridades envolvidas quando haja que resolver questões que lhe digam respeito, em especial questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais, independentemente de esses direitos deverem ser assegurados no âmbito de um processo judicial ou de

um processo desjudicializado (ou seja, perante uma conservatória do registo civil ou perante o Ministério Público). Salvo o devido respeito por opinião diversa, nenhum instrumento de direito internacional, europeu ou nacional pode retirar eficácia a esses direitos, pelo que o único cuidado a observar é o de garantir a sua efectivação, de modo a que seja devidamente salvaguardado o superior interesse da criança no âmbito de qualquer processo relativo ao exercício das responsabilidades parentais. António José Fialho Juiz de Direito Membro da Rede Internacional de Juízes da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado