TRAJETOS ESQUIZO-CARTOGRÁFICOS: INTERVENÇÕES POÉTICO-POLÍTICAS DOS CORPOS NA CIDADE Autora: Priscila Tamis de Andrade Lima Instituição: Instituto Felix Guattari Fundação Gregório Baremblitt de Belo Horizonte Minas Gerais, Brasil. USP Universidade de São Paulo. Endereço: Rua Herval, 267 - Serra - Belo Horizonte - Minas Gerais - CEP: 30240-010 e-mail: priscilatamis@yahoo.com.br Telefone: 00 55 11 7460 7452
Exponho aqui pretensões cartograficas dos corpos pela cidade. Através de um olhar investigativo e curioso, me proponho a embicar nos conceitos e afetos implicados neste processo. Minhas ferramentas são a perspectiva do paradigma ético-estético-políticoecológico da Esquizoanálise e referências conceituais e corporais do inspirado Esquizodrama, além de pequenas viagens pela zona Sul da cidade de São Paulo, Brasil, propiciadas por um trabalho de mobilização social. Utilizo fotos e pequenos vídeos-ensaios como registro cartográfico das andanças um movimento de encantamento com os variações dos entornos, movimentos, ar, arquitetura e corpos. Atento-me às diferentes cidades dentro da cidade, o movimento contínuo, a sensação de não parar nunca, a solidão e cansaço dos olhares. No entanto, o que converge para o novo também se faz entre os tantos corpos, os desviantes para o inédito, as produções singulares de sentido no caos instalado, os devires que a cidade engendra. Na composição deste olhar proposto estão os desejos de encontros com o que chamo intervenções esquizodramáticas cotidianas. Pelas experimentações e afetações possíveis o corpo vai ganhando para si novas experiências e registros intensivos. Olhar para tudo que fure a lógica capitalística dominante, todas as linhas de fuga, os pequenos inventos criativos de todos os dias, as sutilezas do mesmo que se difere. O desafio consistiria em livrar-se do pseudo-movimento que nos faz permanecer no mesmo lugar, e sondar que tipo de meio uma cidade ainda pode vir a ser, que AFETOS ela favorece ou bloqueia, que TRAJETOS ela produz ou captura, que DEVIRES ela libera ou sufoca, que FORÇAS ela aglutina ou esparze, que ACONTECIMENTOS ela engendra, que POTÊNCIAS fremem nela e à espera de quais novos AGENCIAMENTOS. É nesses termos que se deveria ler o desafio de pensar uma Cidade Subjetiva, que nada tem a ver com uma utopia urbana... 1 (PELBART, 2000, p.45) 2 Quais são as forças que entremeiam, que estão no jogo da sobrevivência na cidade e que têm a velocidade de desarranjar os estabelecidos? As muitas andanças inspiraram o desejo de conhecer mais os diversos lugares e pessoas, seus processos de subjetivação, os jeitos que encontram para viver na grande metrópole... afinal, como não se deixar capturar pela lógica da aceleração e do imediatismo, tão entranhadas no trânsito e no trabalho? 1 Destaques meus. 2 PELBART, P.P. A vertigem por um fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.
Deleuze e Guattari insistiam em que não era interessante perguntar o que algo é, já que este seria o questionamento típico da filosofia clássica, com resposta ideal, fechada, totalizante. Eles afirmam que a potência está em problematizar como algo funciona, já que seja o que for, sempre se tratará de um processo, operando um emaranhado de conexões maquínicas, transmutáveis, transversalizantes. (BAREMBLITT in AMORIM, 2008, p. 71) O Esquizodrama é uma das produções de Gregório Baremblitt, resultante de seu encontro frutífero com a Esquizoanálise e sua formação politransdimensional 3. Clareia na inventividade dos corpos uma conexão com a práxis. A proposta é a de que sua prática se realize de tal maneira que se vá dissolvendo as identidades, subjetividades, alteridades, atributos, territórios e semióticas cristalizados das pessoas, bem como as estruturas rígidas dos procedimentos. Através do que o autor chama de Ecletismo Superior, são utilizadas ferramentas variadas, técnicas e expressões advindas de tendências terapêuticas (como bioenergética, psicodrama, holística, reichiana, psicanalítica...), teatrais (como Artaud, Boal...) e rituais (como indígenas, africanos...). Logo, tendo seus saberes e práticas orientados pelo paradigma ético-estético-político-ecológico, inclui em sua caixa de ferramentas as artes em geral, os saberes científico e filosófico, o político, o popular... Dramatiza-se a vida. A dramatização é uma invenção de dispositivos que produzam ou intensifiquem a atualização do virtual e transformações criativas. Acompanhada de elementos fortes como a percepção, sensibilidade, imaginação, desejo, vontade, entendimento, inteligência e pensamento, assim como a rosticidade, a gestualidade, os movimentos, os corpos, as ações; sendo o corpo seu principal instrumento de trabalho e intervenção. Experimenta-se, explora-se o que pode o corpo, os diferentes movimentos e respirações, funcionando como uma engenhoca de perceber, produzir, intensificar e dar vida às linhas de fuga, fura-se a lógica dominante. Neste trabalho, proponho um olhar curioso para com a cidade. Na composição deste olhar estão os desejos de encontros com o que chamo intervenções esquizodramáticas no cotidiano. Considero intervenção esquizodramática toda ação que se exponha ao cotidiano de maneira a tocá-lo, a afetá-lo, a produzir afetos para além dos esperados-comedidos de todos os dias, a intensificação da vida acontecendo. 3 Além de muitos outros, é psiquiatra e psicoterapeuta.... o problema do pensamento é a velocidade infinita, mas esta precisa de um meio que se mova em si mesmo infinitamente, o plano, o
vazio, o horizonte. É necessário a elasticidade do conceito, mas também a fluidez do meio 4. É necessário os dois para compor os seres lentos que nós somos. (DELEUZE & GUATTARI, 1993, p. 71) Proponho conexões com as danças singulares que são produzidas no cotidiano da cidade, com a experiência que se realiza no corpo. Um corpo pode esquizodramatizar, uma paisagem pode, a natureza pode... Como nos conectarmos aos devires que a cidade libera em suas pequenas intervenções cotidianas? Como desviar o olhar da própria náusea e atentar-se aos invisíveis e indizíveis da andança de todos os dias? Enquanto espero o trem passar me esparramo na proliferação de devires que a cidade veloz engendra e os devoro desde-a-desordem com o corpo-olhar, alimentando a alma com poesia, ousadia e encanto. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque se dá nas interrupções, naquele instante breve e sutil de descompasso com o mundo. Instante de suspensão em que paramos para olhar, ouvir e pensar; pensamos mais devagar, nos demoramos nos detalhes, sentimos sem pressa, suspendemos o juízo, o automatismo da ação, nos movemos com delicadeza, falamos sobre o que nos acontece, nos abrimos à arte do encontro, nos disponibilizamos ao outro, à arte, à alegria, à diferença. Nos damos tempo e espaço. Sem reduzir a vida a certas dimensões técnico-científica-identitárias, estreita nos modos capitalísticos de produção e nos critérios burgueses que estabelecem qualidade de vida, podemos nos abrir à compreensão de experiência: o sentido ou sem-sentido que atribuímos ao acontecer do que nos acontece, como compomos, como nos sentimos, nos posicionamos lugar às singularidades. Como afirmo a vida em minhas experiências, como crio um corpo intensivo capaz de animar-se às linhas de força e fuga, reconhecendo os riscos, caminhando com ousadia, paciência e prudência? Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus lingüístico, pode ser um corpo social, uma coletividade. (DELEUZE, 2002, p.132) 5 4 Sobre a elasticidade do conceito, Hubert Damisch, Prefácio a Prospectus de Dubuffet, Gallimard, I, p. 18-19. 5 DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
Deleuze nos diz que os conceitos são como imagens, cores, nos convêm ou não, nos tocam ou não. Por isso me refiro aqui a um corpo-qualquer coisa, corpo-conceito, corpomáquina de guerra, corpo-desejante. Aqui, me refiro a um corpo que é mais do que carne, do que uma idéia encerrada em orgânico ou inorgânico. É tudo isso também. É uma massa intensiva, corpo de intensidades e não de formas, singular e coletivo. Um corpo-sem-órgãos, corpo intensivo que viaja, se relaciona, briga, vai pelos interstícios, corpo transformacional e criativo.... o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo... CORPO VIBRÁTIL 6... todo nosso corpo que tem este poder de vibração às forças do mundo. (ROLNIK, S. Geopolítica da Cafetinagem) 7 Minha idéia de corpografias tem a ver com as cartografias de passagem e experiência dos corpos pela cidade. E assim pensar qual o lugar que os devires se anunciam, quais as brechas (linhas de fuga e força), as micropolíticas que os corpos conseguem criar-inventar como resistência aos instituídos, os desvios possíveis nessa relação corpos viventes e cidade. As experiências de investigação do espaço urbano, de seus movimentos, dos afetos que se dispõem apresentam-se como micro-resistências aos modos identitários-molares, tornando possíveis as corpografias. Há nele 8, um conhecimento de que tudo continua e que as coisas permanecem sempre de modo diferente... e a sua felicidade corresponde a uma certeza de que a roda gira desde sempre: esteja com vinte, quarenta ou oitenta anos, o criador não conhece cansaço porque não pára de beber da fonte onde jorra toda a matéria para o novo. [...] Uma humanidade que não cria, não pode resistir por muito mais tempo ao seu próprio cansaço. (FERREIRA, 2009, p. 9) 9 6 Grifo meu. 7 http://transform.eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt#redir 8 Pessoa criadora de mundos 9 FERREIRA, A. Introdução à filosofia de Spinoza. São Paulo: Editora Quebra-Nozes, 2009.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, M. A. Esquizoanálise, Esquizodrama e as Klínicas da Educação. (tese de mestrado). UNINCOR. Belo Horizonte, 2008. BAREMBLITT, G. Compêndio de Análise Institucional e Outras Correntes. Belo Horizonte: Fundação Gregório Baremblitt/Instituto Felix Guattari, 2002. BAREMBLITT, G. Introdução à Esquizoanálise. Belo Horizonte: Fundação Gregório Baremblitt/Instituto Felix Guattari, 1998. BICHUETTI, J. ; OLIVEIRA, M. F. ; AMORIM, M. A. Esquizoanálise e Produção do Conhecimento: o uso do esquizodrama na pesquisa. Belo Horizonte, 2004. (monografia) BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In Revista Brasileira de Educação, nº 19, p. 20-28, Jan/ Abr, 2002. DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. DELEUZE, G & PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DELEUZE. G. & GUATTARI, F. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vols. 1,2,3,4 e 5. São Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE. G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1993. FERREIRA, A. Introdução à filosofia de Spinoza. São Paulo: Editora Quebra-Nozes, 2009. JACQUES, P. B. Corpografias Urbanas. http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/numeros/numeros_092_103-2008.asp MUYLAERT, M. A. Intermezzo: mestiçagem nos encontros clínicos. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo. 2000. PELBART, P.P. A vertigem por um fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000. ROLNIK, S. Geopolítica da Cafetinagem. http://transform.eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt#redir