TORRE, Renée de la (Org.). El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados. Guadalajara: CIESAS, p.

Documentos relacionados
A TRANSNACIONALIZAÇÃO COMO UM FLUXO RELIGIOSO NA FRONTEIRA E CAMPO SOCIAL: UMBANDA E BATUQUE NA ARGENTINA. Maïa Guillot 1

DE LA TORRE CASTELLANOS, Renée. Religiosidades nómadas: creencias y prácticas heterodoxas en Guadalajara

CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO

PLANO DE ENSINO. Curso(s) para o(s) qual está sendo oferecida Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

O que é religilão: O caso da Nova Era

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

Os Governos da Nova República

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

Fazemos referência aos fascículos de número 6, 10 e 18, respectivamente. 2

CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO

CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO

CATOLICISMO PARA ALÉM DA IGREJA CATÓLICA NO SUL DO BRASIL. organização Carlos Alberto Steil Rodrigo Toniol

RESENHAS REPENSANDO PARADIGMAS E CRIANDO NOVAS POSSIBILIDADES: A. César Pinheiro Teixeira

Toré Atikum: Etnofotografia do Encantamento *

CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

Ciencias Sociales y Religión Ciências Sociais e Religião

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

Ciencias Sociales y Religión Ciências Sociais e Religião

estão presentes tanto do ponto de vista do conteúdo pedagógico quanto no que diz respeito à composição da escola e às desigualdades de oportunidades

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 11 O SENTIDO E O PROBLEMA DO "SEPARATISMO MODERADO": POR UMA CONTRIBUIÇÃO SOCIOLÓGICA À ANÁLISE DA RELIGIÃO NO ESPAÇO PÚBLICO 19

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO

Leila Amaral 1. Universidade Federal de Juiz de Fora. Debates do NER, Porto Alegre, ano 13, n. 21 p , jan./jun. 2012

Maria do Socorro Rodrigues de Souza Aires*

Transnacionalização religiosa: fluxos e redes

Ensino Religioso. O eu, o outro e o nós. O eu, o outro e o nós. Imanência e transcendência. Sentimentos, lembranças, memórias e saberes

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO E AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS AS REGRAS DO NASCIMENTO À MORTE

FORMAÇÃO PEDAGÓGICA EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO - LICENCIATURA EM ENSINO RELIGIOSO MODALIDADE A DISTÂNCIA. 1º Semestre

Ciencias Sociales y Religión Ciências Sociais e Religião

CURRÍCULO DO ENSINO RELIGIOSO NA EDUCAÇÃO BÁSICA. Prof. Elcio Cecchetti

REFERENCIAL CURRICULAR DO PARANÁ: PRINCÍPIOS, DIREITOS E ORIENTAÇÕES. ENSINO RELIGIOSO 1.º ao 9.º Ensino Fundamental

A RELIGIÃO NAS MÚLTIPLAS MODERNIDADES

Relato de viagem: México sincrético

TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA SEM MIGRAÇÃO NO CONE SUL. Ari Pedro Oro 1

APRESENTAÇÃO. Pluralidade religiosa na América Latina

Ciencias Sociales y Religión Ciências Sociais e Religião

RESENHA:O USO RITUAL DAS PLANTAS DE PODER i. AUTORES: Maria Clara Rebel Araújo, Ricardo Vieiralves-Castro

DOSSIÊ RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO

HISTÓRIA DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA METODOLOGIA - CEHILA. Vanildo Luiz Zugno

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO SECRETARIA DOS ÓRGÃOS COLEGIADOS

História e Geografia na BNCC 2ª versão

FOLHA INFORMATIVA Nº

RESENHA. Araújo, L. (2016). Religiosidade e Saúde Mental: enredos culturais e ecos clínicos (1ª ed.) Jundiaí: Paco Editorial.

Redação Enem Tema: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil - Ensino Médio

FRONTEIRA E IDENTIDADE

Linguagem em (Dis)curso LemD, v. 9, n. 1, p , jan./abr. 2009

GRUPO I POPULAÇÃO E POVOAMENTO. Nome N. o Turma Avaliação. 1. Indica, para cada conceito, o número da definição que lhe corresponde.

Umbanda em Preto e Branco Valores da Cultura Afro-brasileira na Religião

Quem roubou Yemonjá?

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais FaE Faculdade de Educação OFERTA DE DISCIPLINAS OPTATIVAS 2013/1º DAE CÓDIGO DISCIPLINA TURNO PROFESSOR(A)

CienCias sociales y Religión CiênCias sociais e Religião

Ciências Sociais da Religião em Perspectivas no Brasil

Ementa Teorias antropológicas sobre religião. Análise comparativa de estudos sobre religião em diversas sociedades.

LINHAS DE PESQUISA IDENTIDADE, CULTURA E PODER POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS, FLUXOS E FRONTEIRAS

CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO

Ciencias Sociales y Religión Ciências Sociais e Religião

ESCRITA NA UNIVERSIDADE OS UNIVERSITÁRIOS E AS RELAÇÕES ENTRE LEITURA E ESCRITA

Guilherme Pereira Stribel 1

Apropriaciones Latinoamericanas Del New Age 329

Avaliação Capes, aprovação do doutorado (trechos parecer CAPES):

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA C/H 170 (1388/I)

Especialização em Estudos Culturais, História e Linguagens

ORO, Pedro; STEIL, Carlos; RICKLI, João (orgs.) Transnacionalização religiosa. Fluxos e redes. São Paulo, Terceiro Nome. 202 p.

Escalas do urbano e o alcance de pequenas mobilizações sociais: O Março das Mulheres em Santarém (PA) 1

Ponto Urbe Revista do núcleo de antropologia urbana da USP

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Anais. IV Seminário Internacional Sociedade Inclusiva

Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo FESPSP PROGRAMA DE DISCIPLINA

Identificar comemorações cívicas e religiosas por meio de imagens e textos variados.

EMENTA DOS CURSOS DE 2ª LICENCIATURA/COMPLEMENTAÇÃO PEDAGOGICA SOCIOLOGIA

CURRÍCULO PAULISTA. Ensino Religioso

10 SOCIOLOGIAS EDITORIAL

MUDANÇAS NO PERFIL RELIGIOSO BRASILEIRO. Fatos e desafios.

Carlos Alberto Steil 1

MATRIZ DE REFERÊNCIA PARA O ENEM 2009

DISCIPLINAS OFERECIDAS POR PROFESSORES ASSOCIADOS AO NIEP-MARX 1 SEMESTRE 2019

História e História da Educação O debate teórico-metodológico atual*

29º Seminário de Extensão Universitária da Região Sul CAMINHOS DA RELIGIOSIDADE AFRO-RIOGRANDENSE

INTRODUÇÃO LONDON, J. Ao sul da fenda. In: LONDON, J. Contos. São Paulo: Expressão Popular, (p )

Resenha do livro em língua inglesa Manual das religiões contemporâneas do Brasil, 2016, editado por Bettina E. Schmidt e Steven Engler

Multilevel governance of cultural diversity in a comparative perspective: EU-Latin America

A era da Mediatização e suas implicações no campo da Educação

NORMAS PARA COLABORAÇÃO

Geografia - 6º AO 9º ANO

Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo FESPSP PROGRAMA DE DISCIPLINA

CURSO DE APERFEIÇOAMENTO. Planejamento e Gestão do Plano de Ação Municipal Selo UNICEF Município Aprovado

MEMÓRIA FOTOGRÁFICA DE PESQUISA DE CAMPO ANTROPOLÓGICA ENTRE OS MACUXI DA ÁREA RAPOSA-SERRA DO SOL NOS ANOS 1990.

X RAM- Reunión de antropologia del Mercosur Situar, actuar y imaginar antropologías desde el cono sur de julio de 2013 Córdoba- Argentina

Objetivos. Orientação geral

Doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

IV Congresso Internacional sobre Etnografia. Lamego, 30 e 31 de Maio de

Plano de Ensino Eletiva Religião e espaço público: discussões contemporâneas Responsável: Profa Dra Lilian Sales

UFU. Sugestões para o trabalho com Artes Plásticas Manual Provas 18 e 19/04 09 e 10/05

PLANO DE CURSO DISCIPLINA:História ÁREA DE ENSINO: Fundamental I SÉRIE/ANO: 4 ANO DESCRITORES CONTEÚDOS SUGESTÕES DE PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Abrindo os baús - Tradições e valores das Minas e das Gerais

CARNEIRO, Sandra de Sá. A pé e com fé: brasileiros no Caminho de Santiago. São Paulo: CNPq/Pronex: Attar, p.

ENERGIA, HOLISMO E MÍSTICA: A REDE TERAPÊUTICA ALTERNATIVA NO RIO DE JANEIRO

Transcrição:

El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados 427 TORRE, Renée de la (Org.). El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados. Guadalajara: CIESAS, 2012. 380 p. Rodrigo Toniol * Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil No final da década de 1990 a relação entre as ciências sociais da religião e processos de globalização, numa acepção lato sensu do conceito, animou inúmeros debates teóricos e conduziu os interessados no tema a apresentarem suas expectativas sobre o que poderíamos esperar da religião e das pesquisas sobre o assunto no novo século que se aproximava. Em uma publicação que marcou as discussões daquele momento (Oro; Steil, 1997), Enzo Pace afirmou o necessário reconhecimento da implicação mútua entre o processo mais amplo de globalização e as transformações nos regimes do crer que vinha sendo afirmada por diferentes pesquisadores (Amaral, 2000; Carozzi, 1999; Magnani, 1999; Russo, 1993, entre outros) e, por conseguinte, a necessidade de acompanhar e analisar os efeitos do desaparecimento de fronteiras simbólicas rígidas entre diferentes campos religiosos, entre o campo religioso e o campo mágico e esotérico, entre a religião e as novas crenças seculares ou para-religiosas (Pace, 1997, p. 33). A sugestão, em síntese, permitia situar o horizonte das ciências sociais da religião além do propriamente religioso. Nesse caso, do reconhecimento da articulação entre práticas religiosas com outras dimensões da vida social vinha também a possibilidade de elaboração de pesquisas que escapassem da reificação do conceito de religião (Steil; Toniol, 2013). Publicado quinze anos depois do texto de Enzo Pace, o livro El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados, organizado por Renée de la Torre, atinge em cheio as expectativas de ampliação das perspectivas teórico-metodológicas, bem como dos próprios universos de interesse empírico das ciências sociais da religião sugeridas pelo antropólogo italiano. * Doutorando em Antropologia Social. http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832014000100019

428 Rodrigo Toniol A partir de uma proposta comparativa, em El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados, pesquisadores do México, Brasil, Argentina e França dirigem seus esforços para a análise de rituais que se articulam, se replicam ou se desdobram em distintos contextos nacionais. Assim, os textos do livro se relacionam a partir de três eixos centrais, as danças rituais conchero- -aztecas, os rituais dedicados à Yémojá/Yemanyá/Iemanjá nas religiosidades afro-americanas, e os rituais da etnia wixaritari em suas apropriações nova era. A diversidade de textos reunidos na obra, bem como dos contextos empíricos de investigação, não tira a organicidade do livro, mas, pelo contrário, à medida que o leitor avança na leitura dos capítulos sua proposta teórico- -metodológica torna-se mais evidente. Atentos às constantes afirmações sobre a fluidez dos pertencimentos e as articulações transnacionais de instituições e grupos religiosos, os autores problematizam os localismos implicados em conceitos como o de campo religioso. Com isso não deixam de reconhecer a importância dos processos locais na análise dos fenômenos religiosos, mas buscam evitar a circunscrição de práticas e signos locais à localidade. Tão eficaz para a composição do argumento mais geral do livro quanto a convergência da perspectiva analítica de seus 11 autores é sua proposta editorial. Os textos são sumariamente etnográficos e a cada um deles se soma uma narrativa visual feita a partir de fotografias. Ao mesmo tempo em que essas duas narrativas textual e visual se articulam, cada uma delas também tem sua própria autonomia. Desse modo, os capítulos se articulam tanto a partir de textos introdutórios a cada um dos três eixos citados, como também por meio de uma composição, no início de cada novo capítulo, que dispõe fotografias relativas aos textos anteriores e aos seguintes, deixando ao leitor a possibilidade de elaborar suas próprias conexões. Nas palavras da organizadora do livro: A fotografia é valorizada neste livro não como uma arte, nem por sua potencialidade ilustrativa, mas por sua capacidade de captar situações particulares, fatos únicos, captadas em um mesmo contexto, mas que, conectadas com outros cenários, nos permitiriam armar um discurso complexo de sequências e contrates entre distintas imagens e no entrecruzamento das distintas sequências rituais. Uma espécie de quebra-cabeças que vai armando realidades multilocalizadas. (p. 13, tradução minha). O primeiro eixo articulador do livro, intitulado Danzantes y tranlocalización, reúne textos dos antropólogos mexicanos Renée de la Torre, Santiago

El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados 429 Bastos, Alejandra Aguilar Ros e Cristina Gutiérrez Zuñiga. As danças em questão são parte de rituais de longa duração realizados pelas populações pré- -hispânicas que povoavam o território mexicano. No período colonial, tais rituais experimentaram a acusação de paganismo para, posteriormente, articularem-se com as festividades católicas devotadas aos santos padroeiros nacionais. Ao longo da primeira metade do século XX as danças rituais adquiriram nova visibilidade, tendo sido convertidas em prática asteca foi reconhecida como parte do folclore nacional e da identidade mexicana. A valorização de tais danças foi central para o surgimento de inúmeros movimentos interessados em recuperar a mexicanidade a partir da retomada de práticas das populações mesoamericanas antes da colonização espanhola. Este movimento [pela mexicanidade] pretende uma reindianização, ainda que astequizada, da cultura nacional, rechaçando elementos sincréticos, a cultura ocidental e o catolicismo nas danças (p. 26, tradução minha). Já na segunda metade do século, em paralelo aos movimentos pela mexicanidade, emergiram os movimentos de neomexicanidade. Formados nos grandes centros urbanos, este último tipo de movimento ancora as danças rituais em um contexto de espiritualidades nova era. Com isso, as danças são apresentadas não somente como um modo de retomar tradições indígenas, como também de acessar, a partir dessas tradições, energias, sabedorias e forças espirituais importantes na nova era que se anuncia. Ambos os movimentos da mexicanidade e da neomexicanidade têm passado por processos de transnacionalização que, embora distintos nas redes que acionam e nos sujeitos que articulam, são comuns nas suas direções: do sul para o norte, do México para Estados Unidos e Europa. 1 A partir da ideia de translocalização, os textos que compõem essa sessão apresentam as diversas articulações que as danças produzem em cada um dos contextos em que são praticadas. Assim, na Espanha, por exemplo, a dança foi incorporada em uma rede de espiritualidade alternativa, por vezes associada aos peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela, que reivindicava a relação daqueles 1 Diferentes pesquisadores têm se dedicado a investigar processos de transnacionalização religiosa que obedecem ao sentido sul-norte refiro-me, evidentemente, menos às referências geográficas e mais às configurações políticas do globo. Entre as diversas publicações mais recentes sobre o tema, destaca-se o livro En sentido contrario. Transnacionalización de religiones africanas y latinoamericas (Argyriadis et al., 2012).

430 Rodrigo Toniol rituais com a cultura ibérica. No México, por sua vez, as danças ocorrem em contextos bastante diversos, como nas festividades da semana santa asteca, durante as cerimônias dedicadas a Cuauhtécmoc o último rei asteca, ou ainda entre populações indígenas, como é o caso da etnia mezcala. Já nos Estados Unidos, sobretudo na Califórnia, as danças rituais, realizadas a partir de diversos grupos, têm estado associadas aos movimentos de afirmação da identidade chicana, constituindo-se ainda como momentos para a expressão de pleitos políticos dos trabalhadores mexicanos. 2 O segundo eixo articulador dos capítulos do livro, Yémojá/Yemanyá/ Iemanjá: rutas transnacionales y avatares relocalizados, é formado por textos de Nahayeilli Juárez, Stefania Capone, Ari Pedro Oro, Alejandro Frigerio e Kali Argyriadis. Tendo como fio condutor a descrição e análise de rituais dedicados mais ou menos explicitamente à Yémojá/Yemanyá/Iemanjá no Brasil, Argentina, Uruguai, Cuba e Estados Unidos, os pesquisadores apresentam não somente a diversidade de práticas em torno do orixá nas religiões afro-americanas, como também discorrem sobre os distintos regimes de visibilidade e de legitimidade de que esses rituais gozam em cada contexto nacional. O reconhecimento do orixá como o elemento comum aos capítulos é problematizado logo nas primeiras fotografias e narrativas apresentadas aos leitores. A diversidade da imagética de Yémojá/Yemanyá/Iemanjá, assim como os distintos modos pelos quais o orixá é mobilizado na umbanda, batuque e candomblé, nos fazem ponderar a ideia de que estamos diante de replicações do mesmo. Também não são comuns os regimes de visibilidade na relação com o Estado e com a sociedade civil que tais rituais experimentam. Assim, se, em Porto Alegre, o maior ritual dedicado ao orixá a procissão de 2 de fevereiro, dia de Nossa Senhora dos Navegantes/Iemanjá tornou-se bem cultural imaterial da cidade, em Buenos Aires as celebrações dedicadas a Iemanjá em espaços públicos receberam, apenas recentemente, autorização para serem realizadas. Ainda sobre o contexto do Cone Sul, os textos permitem aos leitores reconhecer os fluxos de deslocamento que conectam Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires a partir da circulação de pais, filhos de santo e objetos entre essas cidades. Já nos Estados Unidos, os rituais foram 2 Para uma discussão aprofundada sobre o tema ver o debate realizado a partir do texto de Torre e Zuñiga (2012).

El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados 431 realizados com a ida de cubanos exilados para cidades como Nova Iorque. Naquele contexto, os principais festejos ocorrem sob a insígnia de uma reunião ecumênica, capaz de congregar pessoas de diferentes origens e modalidades religiosas numa única religião dos orishas. Por fim, a última sessão do livro, intitulada Huicholes en contextos heterogéneos, apresenta textos de Rodrigo de la Mora, Alejandra Aguilar Ros, Renée de la Torre e Jorge Luis Marín. Trata-se de trabalhos dedicados aos rituais dos wixaritari, um grupo étnico que habita a parte norte do estado de Jalisco, México. Seus rituais se realizam, sobretudo, no interior das diversas comunidades rurais em que vivem ou ainda durante as peregrinações que realizam em direção a espaços sagrados, situados fora de suas comunidades, dispersos em cinco estados mexicanos. Nas últimas décadas, no entanto, diferentes grupos nova era, da neomexicanidade, bem como certos agentes culturais, têm buscado incorporar rituais wixaritari em suas próprias práticas. O uso tradicional do peiote, a figura do xamã e os rituais de celebração do equinócio foram alguns dos elementos que despertaram o interesse, por parte de grupos urbanos, para os Wixaritari. É nesse contexto, por exemplo, que o mara akame 3 Pablo Taizán tornou-se uma figura de referência entre os grupos nova era e da neomexicanidade. Nos rituais de equinócio, que no México chegam a reunir dois milhões pessoas, os wixaritari também têm sido presença constante, resultado não somente do crescente interesse público por suas práticas, como também por conta das redes que alguns mara akame estabeleceram com grupos místicos e esotéricos dedicados a realizar vivências espirituais e preparar xamãs em contextos urbanos. El don de la ubicuidad: Rituales étnicos multisituados é preciso em provocar reflexões sobre a importância da análise de práticas rituais para a compreensão dos contextos investigados. As narrativas textuais e fotográficas que apresenta fazem do conjunto de etnografias individuais uma espécie texto colaborativo, em que os capítulos se complexificam na medida em que se articulam. Paradoxalmente, o desafio de produzir reflexões sobre rituais étnicos multissituados foi enfrentado pelos autores por meio da produção de descrições minuciosas dos contextos locais. É assim que somente compreendemos o dom da ubiquidade a partir da complexidade das conjunturas locais. 3 Especialista religioso que dirige as cerimônias rituais dos wixaritari. (p. 373, tradução minha).

432 Rodrigo Toniol Referências AMARAL, L. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo nova era. Petrópolis: Vozes, 2000. ARGYRIADIS, K. et al. En sentido contrario: transnacionalización de religiones africanas y latinoamericas. México: CIESAS, 2012. CAROZZI, M. J. (Org.). A nova era no Mercosul. Petrópolis: Vozes, 1999. MAGNANI, J. G. C. Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole. São Paulo: Studio Nobel, 1999. PACE, E. Religião e globalização. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 25-39. ORO, A. P.; STEIL, C. A. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997. STEIL, C. A.; TONIOL, R. A crise do conceito de religião e sua incidência sobre a antropologia. In: GIUMBELLI, E.; BÉLIVEAU; V. G. (Org.). Religión, cultura y política en las sociedades del siglo XXI. Buenos Aires: Biblos, 2013. p. 137-158. RUSSO, J. A. O corpo contra a palavra: as terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993. TORRE, R. de la; ZUÑIGA, C. G. Transnacionalización de las danzas aztecas y relocalización de las fronteras México / Estados Unidos. Debates do NER, Porto Alegre, n. 21, p. 11-50, 2012.