Nos teus olhos altamente perigosos vigora ainda o mais rigoroso amor a luz de ombros puros e a sombra de uma angústia já purificada

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Transcrição:

Um adeus português de Alexandre O Neill: passos de um percurso possível Maria Antónia Coutinho FCSH-UNL, CLUNL acoutinho@fcsh.unl.pt I Jornadas de Ensino do Português FCSH UNL, 9-10 de Maio de 2008

A escolha do texto Ponto de partida, no âmbito da organização das Jornadas: análise de um mesmo texto literário numa perspectiva literária numa perspectiva linguística Desafio da parte linguística: aceitar qualquer texto para análise Pressuposto teórico e empírico não há texto literário para o qual a análise linguística não tenha alguma coisa a dizer (porque qualquer texto literário mobiliza material linguístico)

Um adeus português, de Alexandre O Neill Um percurso possível uma leitura ao rés-do-texto susceptível de ser posteriormente confirmada (ou infirmada) por dados extra-textuaistextuais

Não tu não podias ficar presa comigo Não tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

Não tu não podias ficar presa comigo Interpelação de um tu, marcado pelas formas de 2ª pessoa em ocorrência pronomes, determinantes possessivos, marcas de pessoa nas formas verbais. Não tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

Não tu não podias ficar presa comigo Um tu que coincide com uma figura de mulher (marcas de género) Não tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

Não tu não podias ficar presa comigo Um nós marcados também pelas formas de 1ª pessoa plural em ocorrência. Mas será sempre o mesmo nós?... Nós = eu+tu Nós = eu +??? Não tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

Não tu não podias ficar presa comigo Uma relação amorosa que perdura (a ocorrência do advérbio temporal marca a localização de uma acontecimento que vem de trás até ao presente da enunciação Um jogo de luz e sombra Não tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

NÃO tu não podias ficar presa comigo NÃO tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

NÃO tu não podias ficar presa comigo Organização macroestrutural do poema em 3 secções /momentos NÃO tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

Não tu não podias ficar presa COMIGO [eu fico] Valor negativo de roda (equivalente a círculo fechado) por associação sintagmática com (o valor inequivocamente negativo ou disfórico de) apodrecer (cf. valor hipoteticamente positivo de roda em cantiga de roda, por ex.) Traços descritivos de animal ferido Evocação de tourada (animal ferido que avança pelo túnel)

NÃO tu não podias ficar presa comigo que sobe aos olhos [que] vem às mãos à estupidez ao desespero sem boca à alegria sonâmbula à vírgula maníaca do modo funcionário de viver Sugestão de vómito criada -pela representação do movimento ascendente (sobe aos olhos /vem às mãos) - pela enumeração descritiva que configuram os sintagmas preposicionais - pela gradação enumerativa, que vai de aspectos neutros ou positivos (às mãos/) a outros fortemente negativos

NÃO tu não podias ficar presa comigo -Inversão de valores simbólicos de dia-abertura- nascimento vs noite-fechomorte - acumulação de de adjectivos

NÃO tu não mereces esta cidade não mereces esta roda de náusea em que giramos Valor apreciativo - depreciativo! associado aos adjectivos em posição prénominal Valor irónico-caricatural (trazer a dor docemente pela mão, dor à portuguesa) Reiteração-síntese dos tópicos evocados em crescendo de explicitação: roda de náusea, pequena morte, razão absurda de ser mas às mãos de uma aventura de um comércio puro Temas surrealistas o encontro, o acaso, o amor (louco!) -Negação polémica (onde morres ou vives não de asfixia) - cidade (quese) ideal por oposição a [esta cidade] onde se morre ou vive de asfixia

NÃO tu não podias ficar presa comigo NÃO tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

NÃO tu não podias ficar presa comigo NÃO tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

NÃO tu não podias ficar presa comigo Tourada Miséria, burocracia Polícia, até ao dia que não vem da repetição, promessa prisão Brandos costumes NÃO tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

NÃO tu não podias ficar presa comigo NÃO tu não mereces esta cidade não mereces mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

e depois deste percurso talvez faça sentido saber que, na origem do poema, há um episódio autobiográfico: a história de amor entre o poeta A. O Neill e Nora Mitrani, francesa ligada ao movimento surrealista conhecem-se em Lisboa, ela regressa a Paris, onde deveriam re-encontrar-se; isso nunca chega a acontecer porque a PIDE confisca o passaporte a O Neill que, impossibilitado de sair do país, nunca mais volta a ver Nora Mitrani.

e depois deste percurso talvez faça sentido o tema do amor (impossível ou impossibilitado) o tema da separação e do adeus o tema (da imagem) de Portugal (de um adeus português) o tema da revolta e da denúncia o tema de um país outro (um mundo outro?!)

En disant que le sens du texte est immanent non au texte, mais à la pratique d interprétation, nous reconnaissons que chaque lecture, savante ou non, trace un parcours interprétatif qui correspond à l horizon du lecteur. La sémantique des textes propose une description des parcours interprétatifs: le sens actuel du texte n est qu une de ses actualisations possibles; le sens complet serait constitué de l ensemble des actualisations, en d autres termes l ensemble des horizons possibles. Le sens d un texte n est clôturable que par l arrêt de ses lectures, qui appartiennent alors au passé; il quitte alors ainsi la tradition et la vie, et cette clôture témoigne plutôt d une fermeture que d une plénitude, car un livre fermé n a plus de sens. En revanche, les textes qui sont relus gardent un sens ouvert. Leur sens a une histoire vivante, celle de leur tradition interprétative, série non close de réécritures, qui sont autant de nouvelles lectures: elles dépendent de la pratique où elles prennent place, obéissant à des objectifs éthiques, esthétiques ou cognitifs. Cependant, le plaisir, le devoir, et la volonté de savoir restent inassouvis. Sur ce point crucial, une sémantique des textes peut distinguer entre les structures closes, qui épuisent la lecture, et les structures ouvertes, qui permettent au lecteur de transformer l équivoque en infini. Rastier, F. 2001. Arts et sciences du texte.. Paris: P.U.F., pp. 277-278278