Paraíso e Purgatório: Imagens da nova terra



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Transcrição:

Artigo Paraíso e Purgatório: Imagens da nova terra Maria Fulgência Ribeiro Esse texto navega nos mares movimentados e imprevisíveis do imaginário. No roteiro da viagem, a Carta (CASTRO, 1990) de Pero Vaz de Caminha e o Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Souza (1987). A viagem no texto pretende mapear a visão edenizadora sobre a natureza e a imagem negativa dos ameríndios. Transitando entre a fantasia e o real, cuja unidade inseparável deve ser reconhecida e respeitada, o primeiro momento do texto enfoca a natureza que encantou os viajantes europeus e como esses, famintos de olhar, sequiosos de paraíso, cantaram a natureza em suas crônicas sobre o Novo Mundo. No segundo momento a atenção se volta para o homem nativo, chamado índio pelos europeus, cujas imagens oscilam entre Adão em inocência, que inspirou o mito do bom selvagem e Adão após a queda, que alimentou a visão do índio botocudo e canibal. Na conclusão as ondas se ampliam e misturam, nas mesmas águas, o paraíso e o purgatório, imagens da nova terra que atraía e assustava os europeus. 47

UEFS 1. Terra generosa e farta: o encontro com o paraíso Pero Vaz dá início às notícias do achamento da nova terra ao rei de Portugal: Eram os vinte e um dias de abril topamos alguns sinais de terra: uma grande quantidade de ervas compridas, chamadas botelhos pelos mareantes, assim como outras a que dão o nome de rabo de asno. No dia seguinte à hora de vésperas, avistamos terra! Primeiramente um grande monte, muito alto e redondo; depois, outras serras mais baixas, da parte sul em relação ao monte e, mais, terra chã. Com grandes arvoredos. Ao monte alto o Capitão deu nome de Monte Pascoal; e á terra, Terra de Vera Cruz. (CAMINHA in: CASTRO, 1990:76) A sobriedade com que descreve a primeira visão da terra e, em continuação, a natureza, vai contrastar com as descrições de outros relatos posteriores. Embalados pela fantasia ou buscando objetividade, mas sempre jogando com a realidade que se lhes apresentava, viajantes, missionários e aventureiros em suas crônicas deixaram informações sobre a paisagem, os moradores nativos e, a contrapelo, sobre o imaginário europeu que buscava o paraíso terreal. O ribeirão, de água muito boa, as palmeiras, tudo apelava para o colher e o comer, verbos ressaltados na Carta, que devem ser lidos tanto no sentido literal, quanto no figurado. Tocar, provar, cheirar, fartar-se de tanta generosidade. Eis como foi enunciado o mito fundacional brasileiro, no qual os olhos europeus criaram, de um lado, imagens detratoras do nativo e, de outro, demonstraram sensibilidade para a beleza, a grandiosidade e a generosidade da nova terra. Sobre o encontro do europeu com uma terra generosa e farta, afirma Francisco de Lima (1998:56) 1 : 1 Embora o autor esteja se referindo ao encontro do europeu com a Ásia, essa afirmação pode ser utilizada, também, em relação ao encontro do europeu 48

Cadernos de Literatura e Diversidade Quanto à fartura e generosidade da terra, era tudo ainda mais espantoso, alimentando os sonhos de uma Europa pobre, castigada pelo rigor das estações, que sobrevivia com uma alimentação precária e monótona. Isso ajuda a compreender a riqueza de detalhes com que outros viajantes descreveram o Brasil. No Tratado Descritivo, por exemplo, a Bahia é descrita como lugar de fatura. O leitor do Tratado se delicia a fartar com tantas frutas, cuja textura é possível sentir na boca, tal a riqueza de detalhes, ver a cor e o formato apetitosos. A exemplo da mangaba, que Se come toda sem deitar nada fora, como figos, cuja casca é tão delgada que se lhe pela se as enxovalham, a qual cheira muito bem e tem suave sabor, é de boa digestão e faz bom estômago, ainda que comam muitas; cuja natureza é fria, pelo que é muito boa para os doentes de febres por ser muito leve. (SOUZA, 1987:191) E assim outros frutos, como ingá, cajá, piqui, umbus que pela descrição, o leitor que conhece a árvore umbuzeiro, desconfia que Gabriel Soares de Souza não chegou a vê-la do sertão, a natureza, sabiamente, providenciou para remédio da sede dos índios. Tem ainda pequiá, macugê, jenipapo, que Gabriel Soares de Souza compara a limas acho que ele não viu nem comeu e uma grande diversidade de palmeiras, como já constatara Pero Vaz na Carta. Tudo muito novo, que precisa ser descrito e anunciado para os leitores. Para tanto é válida a comparação, que Em toda e qualquer narrativa de viagens, o medir e comparar são atividades básicas fundamentais, por uma razão muito simples: trata-se de aproximar o inaproximável, de maneira que esse real estranho ganhe um contorno de credibilidade e possa ser, mercê do módulo prévio, visualmente compreendido. É o meio mais eficaz para conter o desamparo do leitor, que só sabe ver o novo pelo velho (LIMA, 1998:92). Por diversas vezes o autor do Tratado teve que se defrontar com o real que excede, que não cabe na moldura ou seja, com uma fauna e flora de que não tem conhecimento prévio, e assim lhe faltam elementos 49

UEFS para a comparação. São exemplo o maracujá, que arruma em capítulo separado, o mandacaru, o nhambi, os ananases e tantas outras plantas às quais dedica capítulos separados. Terra farta, que alimenta e sara. Então comamos, e eles comeram e viram que era muito bom e que, além da flora, a fauna também merecia atenção. Gabriel Soares de Souza, passado o deslumbramento do que via, passou a ordenar os animais, e percebe-se que os separa em dois grandes grupos, a saber: os que fazem bem, que ajudam o homem na sua aventura pela nova terra a dentro, e os que fazem mal, atrapalhando o homem. Os animais do primeiro grupo têm a carne comestível, são apreciáveis pela beleza da pele e suas propriedades medicinais; agem durante o dia, sob a luz, o que, em última instância, define de que lado estão, ou seja, do lado de Deus. Representam o ouro, as coisas proveitosas, o paraíso terreal, onde o homem tinha tudo a sua disposição, como era a vontade do criador. Os animais do segundo grupo não têm a carne comestível, são indesejáveis, peçonhentos, destroem as novidades, agem durante a noite, associando-se às trevas ou ao diabo. Representam as fezes, algumas imundícies, enfado, o castigo dado à terra por causa do pecado de Adão; lembram as pragas bíblicas. Diante da realidade nova que os animais representam, Gabriel Soares de Souza recorre à comparação com o real já conhecido, assim como outros viajantes diante de situações inéditas. Ao descrever os animais encontrados, a pele, a cor, a forma de preparo, o sabor e textura da carne, utiliza seus conhecimentos sobre os existentes na Europa. Embora pensando que nem sempre era possível defender-se dessas variadas castas de animais, o Tratado parece ressaltar a preocupação concreta com a efetiva colonização, as dificuldades, riscos e perigos que os colonos teriam que enfrentar e para os quais as saídas eram apontadas, ou, melhor, oferecidas pela festa da natureza, cuja generosidade era tamanha que quase tudo se come, assim animais de porte como formigas pois havia também as formigas palatáveis, como as tanajuras. 50

Cadernos de Literatura e Diversidade Mas nem tudo era só festa e prazer para os olhos. A atenção dedicada por Gabriel Soares de Souza às cobras faz pensar num fantástico terrível ao mesmo tempo maravilhoso. O imaginário europeu, povoado por esse personagem bíblico, foi reaceso pela grande variedade de cobras da terra brasilis: Agora cabe aqui dizermos que cobras são estas do Brasil, de que tanto se fala em Portugal e com razão, por tantas e tão estranhas, não se sabe onde as haja. São cobras que, ou não estão incluídas na maldição bíblica rastejarás, ferirás o calcanhar ou sequer ligavam a mínima importância ao vaticínio do criador, invertiam os termos, preferindo os lugares altos, ferindo os homens na cabeça, cujo tamanho seria suficiente para aterrorizar, não fosse ainda agirem conforme sentimentos que eram exclusivos dos humanos, como ciúme e vingança. Pois dessas cobras de formas aterradoras, a maioria também os índios comem. Assim também as formigas, a exemplo das saúvas, extremamente destruidoras, sobre as quais o autor do Tratado não queria falar muito, para não espantar os colonos imigrantes europeus. Esse muito falar das coisas comestíveis, pensando o público destinatário, de um lado, parece uma espécie de publicidade que cria, prepara na Europa uma recepção ou mercado consumidor para as plantas e caças palatáveis do sertão, a exportação de animais exóticos e ervas medicinais as drogas do sertão -, cujo efeito se faz sentir até hoje. 2. Adão em dois tempos Mas não só a fauna e a flora mereceram a atenção de Gabriel Soares de Souza. O homem também foi descrito detalhadamente e o mesmo verbo, comer, marca a imagem que nascia. Em meio a tanta fartura e generosidade da mãe natureza, que dava, à mão, tamanha variedade de plantas e animais comestíveis, o índio ainda se comprazia em comer os seus semelhantes, para espanto e terror dos olhos europeus. Nas descrições sobre os indígenas, seus costumes e habitat, os cronistas criaram fontes importantes sobre um período da história que 51

UEFS já vai longe, mas que teima em se manter, se renovar, se atualizar. Tudo no Novo Mundo lhes chamava a atenção, seja porque maravilhoso, seja porque bizarro. E tudo ficou registrado, pela escrita que servia de suporte para o olhar, ressaltando aspectos que edenizam a natureza e as imagens negativas sobre o homem, como a do antropófago. No Novo Mundo, - em meio a tanta luz e toda fartura que assemelhava a terra brasilis à própria terra prometida, donde mana leite e mel, - europeu julgou haver encontrado o primeiro homem. Sua aparência era diferente mas se aproximava de imagens que os europeus traziam no imaginário, de Adão e sua companheira, inocentes, vivendo em harmonia com a natureza, generosamente servidos por ela. Eram pardos, todos num, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas. Traziam nas mãos arcos e setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. (CAMINHA, in CASTRO, 1990:77) É assim que Pero Vaz dá início à descrição dos nativos da terra nova achada. Chama a atenção a aparência, o estarem nus, depilados e pintados, homens e mulheres. Mais adiante, chegando Pero Vaz mais perto, pode ver os detalhes e reafirma a cor, evidenciando, também, os bons rostos e bons narizes, o cabelo corredio, tosquiado, o lábio furado. Reafirma, também, a nudez, acrescentando um dado novo: Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Essa é a própria imagem bíblica da inocência: Adão nu, circulando entre os animais, no jardim do Éden. Mas os corpos limpos e bem curados não ajudaram muito nesse encontro; nem contribuíram para humanizar os índios, aos olhos de Pero Vaz. Ao invés disso, aumentou a sua aproximação com os animais. E sempre mais me convenço que são como aves ou animais montesinhos, aos quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que aos mansos, porque os seus corpos são tão limpos, tão gordos e formosos, a não mais poder. Tudo isso me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham; e o ar em que se criam os faz tais. (CAMINHA, in CASTRO, 1990:89) 52

Cadernos de Literatura e Diversidade Como ficou pouco tempo, e manteve-se no litoral, Pero Vaz não teve oportunidade de conhecer outros detalhes da vida desses pardos e nus. Gabriel Soares de Souza sim, viu, ouviu e relatou aspectos desses nativos, os tupinambás, os tupinaés, amoipiras, os ubirajaras, os tapuias, etc. Dos tupinambás descreveu o modo e a linguagem, os casamentos e os amores, enfeites, a criação dos filhos, a luxúria, as saudades, o chorar, o cantar, o comer e o beber. São vários capítulos em que a atenção se desvia da natureza, fixando-se no nativo, principalmente no que diz respeito ao comerem-se uns aos outros. Eis que, sob o raio de luz que traz no olhar, o europeu não demorou muito a concluir, que havia recantos na floresta, onde aconteciam coisas terríveis. E das sombras ressurgem as representações que muitos europeus traziam dos habitantes das terras que desconheciam. Se não havia gente monstruosa, com olhos no peito, olho na testa, focinho de cão, rabo de peixe, hermafroditas, havia os índios que andavam nus, acreditavam em vários deuses e, pior, comiam carne humana. A casualidade com que o autor do Tratado fala desse costume de comerem-se uns aos outros às páginas 300 e 301, contrasta com o tom dos capítulos dedicados a tratar como os tupinambás faziam guerra com os seus contrários. Bárbaros carniceiros, que cortam e comem as naturas dos inimigos como relíquias, são, ainda, capazes de engordar o inimigo antes de comê-lo. As mulheres, que tinham um papel importante, participavam dos vários momentos do ritual canibal, e, inclusive, engravidavam dos inimigos e davam as crianças para a tribo comer em ritual. Esses (des)encontros foram um prato cheio para os europeus, que estavam a serviço do rei e de Deus. Então os viajantes concentraram esforços para registrar a fauna, a flora e os homens que habitavam a nova terra e seriam alvo das campanhas evangelizadoras, já que ainda não conheciam a verdadeira fé. Concluindo: Embora o autor esteja se referindo ao encontro do europeu com a Ásia, essa afirmação pode ser utilizada, também, em relação ao encontro do europeu com o Brasil. 53

UEFS Do encontro entre os viajantes europeus e os habitantes da nova terra descoberta, se produziu os relatos de viagem. Fazia parte do imaginário do homem ocidental o sonho de reconquistar o paraíso perdido, o Éden. Aqui chegando, a grande diferença em relação à fauna, o clima, a presença constante do sol, provocaram tal encantamento no europeu que se acreditou haver chegado ao paraíso, onde o ameríndio era o primitivo, puro, sem malícia, o próprio Adão antes do pecado. A Pindorama dos índios, foi batizada como terra a brasilis dos europeus. Sobre ela os relatos dos viajantes deixaram uma farta gama de informações que o olhar deslumbrado ia colhendo avidamente. Uma terra imensa, com um vasto litoral e um interior com florestas fechadas, povoados por animais exóticos. O paraíso terreal, onde a comida é farta, as águas são eternas, os rios caudalosos cortam a cidade de Deus, e os nativos, à primeira vista, pareciam viver em harmonia. Assim, por muito tempo a América foi vista e analisada a partir de uma escala evolucionista das sociedades. Os ameríndios representavam a infância da história. Nos relatos dos viajantes, as descrições da natureza e dos costumes dos ameríndios evidenciam como à imagem da terra como o paraíso acrescenta-se o purgatório, e à do índio inocente acrescenta-se a do antropófago. A Europa cristã lançava no campo do demoníaco todos os fenômenos que escapavam à compreensão assim como os seres que lhes eram desconhecidos. A chegada do europeu à nova terra que seria chamada América, foi marcada por um impacto de proporções inimagináveis, que movimentou as estruturas do imaginário, provocando uma tensão entre o racional e o maravilhoso, entre o pensamento laico e o religioso, entre o poder de Deus e o do Diabo, embate, enfim, entre o Bem e o Mal [que] marcaram desta forma diversas concepções acerca do Mundo Novo (MELO E SOUZA). 54

Cadernos de Literatura e Diversidade Referências bibliográficas CASTRO S. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 1990. CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, M.C. da (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. LIMA, Francisco Ferreira de. O outro livro das maravilhas: A peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Salvador, Ba: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1998. LIMA, Francisco Ferreira de. O olhar que não vê: Gabriel Soares de Souza e a permanência do fantasioso. In: Rotas e Imagens: literatura e outras viagens. Aleilton Fonseca, Rubens Alves Pereira (org.). Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana. Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural, 2000. MELLO E SOUZA, Laura de. O diabo nas malhas do antigo regime. In: MELLO E SOUZA, Laura de. Inferno Atlântico. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1958. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. Maria Fulgência Bomfim Ribeiro é aluna curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS. 55