Uma vida em segredo - do livro (DOURADO) ao filme (AMARAL)

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Transcrição:

Uma vida em segredo - do livro (DOURADO) ao filme (AMARAL) Autor(es): Apresentador: Orientador: Revisor 1: Revisor 2: Instituição: FIGUEIRA, Alessandra Belletti; CUNHA, João Manuel dos Santos Alessandra Belletti Figueira João Manuel dos Santos Cunha Renata Requião Aulus Mandagará Martins UFPel UMA VIDA EM SEGREDO DO LIVRO (DOURADO) AO FILME (AMARAL) FIGUEIRA, Alessandra Belletti1 ; CUNHA, João Manuel dos Santos 2. 1 Acadêmica do Curso de Letras Português-Inglês da UFPel; integrante do Grupo de Pesquisa Estudos de intertextualidade: códigos estéticos e culturais; sistemas literários, coordenado pelo Prof. Dr.João Manuel dos Santos Cunha; xandinhabf@terra.com.br ²Doutor em Letras. Professor de Literatura na Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas, UFPel. profjoaomanuel@terra.com.br INTRODUÇÃO A transcodificação do literário para o cinematográfico vem sendo desempenhada mundialmente desde o início do século XX. Nesse período (principalmente a partir de 1930, quando se deu o advento do cinema falado), o cinema e a literatura, por lidarem com a narratividade, proporcionaram mutuamente um campo de aproximações, intersecções, ou, ainda, comparações. Entretanto, mesmo antes da afirmação do cinema como código estético imagético e narrativo, já havia textos fílmico-literários, isto é, obras literárias que se utilizavam de técnicas cinematográficas. No Brasil, a partir do primeiro Modernismo, percebemos essas características cinematográficas em textos narrativos de autores tais como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, como pode ser percebido na obra Amar, verbo intransitivo (1927), que apresenta cenas descritivas do ambiente (penca de livros, piano, retrato p. 42), as quais se assemelham ao formato de um roteiro de filmagem, quando esse indica os objetos que a câmara, em plano de conjunto (revelando detalhes), deve presentificar, correspondendo ao movimento do olhar da personagem. O texto de Mário de Andrade é também composto por parágrafos espaçados, representando cortes no espaço e no tempo numa tentativa de reproduzir as elipses típicas das técnicas de montagem em cinema. Outros exemplos poderiam ainda ser citados a respeito daquilo que Antônio Candido cunhou de técnica cinematográfica do nosso romance, todavia, este trabalho propõe especificamente, no espaço da

reflexão sobre as relações entre palavra escrita e imagem fílmica, a análise comparada entre livro e filme, ao aproximar o texto fílmico traduzido da obra literária. Tal análise se dá a partir do pressuposto de que, ao se traduzir do literário para o fílmico, se faz tradução intersemiótica, com criação de objeto estético novo, independente de sua matriz literária. CORPUS E METODOLOGIA Dessa forma, apoiada na possibilidade e, por vezes, rentabilidade de leitura comparada de textos fílmicos formatados a partir de textos literários, a pesquisa propôs-se a analisar a interpretação feita pela cineasta Suzana Amaral em seu filme homônimo para a novela Uma vida em segredo, de Autran Dourado. A análise considera que todo filme adaptado de obra literária será leitura crítica da obra original, sugerindo, portanto, um estudo comparado entre os objetos estéticos. Essa prática de leitura intertextual é admissível, pois, segundo o crítico literário Randal Johnson, é impossível transmitir a mesma mensagem através de diferentes sistemas de significação. Ou seja, embora o plot permaneça (ainda que nuançado pela performance do autor) o mesmo, a forma de narrar de significar de um texto fílmico é necessariamente diferente daquela de um texto literário, garantindo assim, criação de objeto estético novo, recriação artística. As implicações dessas divergentes formas de narrar conferem a possibilidade de comparação entre os objetos e seus resultados, propostas de avanço ou recuo em relação ao texto primeiro. Outro teórico que corrobora tal prática é Haroldo de Campos, o qual cunhou o termo transcriação, também a fim de indicar que há uma prática interpretativa em que o autor do filme vai aplicar a sua interpretação do objeto original no objeto estético novo (CUNHA apud CAMPOS, 1993, p.12). Nessa relação entre o texto matriz e o recriado, Gerard Genette (1982) aponta a existência de transtextualidade, identificando o texto primeiro como hipotexto e sua leitura como hipertexto. Para fins de utilização desse princípio, é feita, portanto, a leitura comparada do hipotexto verbal Uma vida em segredo com sua transcriação fílmica, intertexto. Ao conhecer em profundidade o hipotexto e o hipertexto através da decoupage, leitura comparada entre ambos pode ser efetuada de forma mais eficaz. Tal prática objetiva a verificação de convergências e/ou divergências, acréscimos ou decréscimos entre as significações produzidas na tradução intersemiótica. DISCUSSÃO E RESULTADOS A comparação entre os textos partirá da seqüência inicial da obra de Amaral (é essa a etapa da investigação que será relatada aqui, além da que se centro na análise da seqüência final do filme). Essas cenas iniciais, consideradas como um incipit fílmico, abrem a narrativa, denotando seu caráter criativo em relação ao texto de Dourado. A abertura, que dura cerca de 3 minutos, conta, através do narrador fílmico - le grand imagier 1 - o deslocamento da personagem Biela (órfã que até então vivera sempre no interior, no Fundão, longe do centro urbano) para a cidade, 1 Cf. CUNHA apud GAUDREAULT: (1995): In: Cinema e literatura em Capitu e Dom Casmurro: a figura desse narrador fílmico, le grand imagier, foi criada por Albert Laffay, em 1948, e sua instância narrativa fílmica possui a mesma natureza do narrador literário. (p. 158)

a fim de começar uma nova vida com seus familiares e tutores. As únicas referências encontradas a essa viagem no livro são: Conrado, que viera observando-a [Biela] durante toda a viagem. (p. 26) E como deu acordo de si, [Biela] foi juntando os farrapos de lembrança da viagem; os matos todos por onde passou, os passarinhos que voavam assustados, as árvores todas que viu, a entrada da cidade, a chegada na casa do primo. (p.28) O filme faz ampliar as informações desta viagem, transcriando informações a respeito da personagem principal, bem como acrescenta outros elementos às imagens. Com o incipit, desvela-se o que le grand imagier quer mostrar: a opinião que Conrado o tutor tem sobre sua prima Biela. No livro, essas opiniões são mostradas em trechos que descrevem o pensamento de Conrado, ocorridas em um momento que não o da viagem (já que esse, como há pouco foi comentado, praticamente não é descrito no livro). Capaz de não dar certo. Moça criada na roça, sem mãe desde cedo, com suas maneiras lá dela, talvez não se desse bem morando na cidade com eles. (...) O primo (pai de Biela) era de umas ausências de vista estranhas, ficava olhando enviesado uns longes para além dos cimos. Tinha até, de raro em raro, uns ataques de repelão e espuma, (...). Conrado no fundo tinha medo, a coisa podia se repetir na filha Biela, essas histórias de herança de corpo e da alma. (p. 20/21) No filme, tais pensamentos de Conrado sobre uma provável loucura de Biela são traduzidos no momento em que Biela interrompe a viagem a fim de tomar água. Nessas cenas, enquanto a moça desce do cavalo e se dirige até a beira do riacho, seu tutor discretamente a observa montada em seu cavalo, demonstrando o enigma que a figura da moça lhe propõe. Ele não sabe quem ela é. Há um grande segredo a ser desvendado, e enquanto não o é, Conrado só se permite olhar de forma atravessada, como quem olha o que lhe é arriscado olhar, apenas com o canto do olho. E por não ser presentificada totalmente, Biela se segreda ainda mais. O Conrado fílmico se questiona sobre a vinda de Biela para a cidade não com, por exemplo, uma voz off indicando seu pensamento, todavia através da interpretação do ator: Será que ela herdou a loucura do pai? é o que se pode ler no semblante do personagem-ator. O incipit, ao mostrar o cavalgar atrapalhado de Biela, o pulo que ela dá ao apear do cavalo, sem ajuda de ninguém para descer ou subir, a falta de feminilidade ou delicadeza de seus atos, ao se agachar de pernas abertas, o levantar do vestido para beber água do rio, fazem da Biela fílmica uma Biela mais arredia, mais grosseira, mais arraigada ao Fundão de onde vem. Condenada a se sentir deslocada no lugar para onde está indo, a cidade, por não dominar as regras sociais desse novo lugar. Em trânsito desconfortável do rural para o urbano. Outra marca de ampliação do literário como conseqüência da invenção do incipit fílmico, é uma cena em que Biela, montada no cavalo, é elevada, destacada através de um contra-plongée, enquanto olha para trás em busca do lugar onde morava. Esse jogo de câmara indica que aquele era o lugar onde ela reinava, e por isso é posta em evidência. A personagem olha de cima a casa que está abandonando e este é o último momento de existência dessa Biela conhecedora do mundo em que vive e o qual domina, com a naturalidade de quem sabe que ali é o seu lugar.

Conseqüentemente, todo esse desencaixe social, introduzido no filme pelo incipit, e no livro a partir dos primeiros contatos de Biela com as pessoas da casa, tem sua intensidade diferenciada no final de cada uma das nas narrativas. No livro, a morte de Biela acontece no hospital. A órfã pede aos familiares que a transfiram do quarto particular, pois seu desejo é morrer junto das pessoas mais pobres, na enfermaria. Ela não se sente bem em meio ao luxo, ao requinte, pois ela não pertence a esse padrão social. Essa falta de aculturamento de Biela não só é marcado na versão fílmica como, ao ser colocado por meio dessa invenção da cineasta, se torna ainda mais profunda. No filme, Biela vive os últimos dias da doença, até a morte, sem sair de casa. A hipótese de levá-la ao hospital (atitude recorrente para qualquer pessoa que se encontrasse na mesma situação, num meio social que dispõe de tais recursos) nem é mencionada. Biela fica em casa, e, segundos antes de morrer, em meio a tossidos e contorções, se levanta da cama, indo ao encontro de Vismundo (cachorro com o qual gerou uma relação intensa durante o plot fílmico), com quem ela demonstrou sentir-se mais confortável. Evidencia-se assim, ainda mais, na Biela fílmica, a marca de quem não pertence ao meio cultural e ao mundo das convenções sociais em que estão naturalmente instalados os moradores do centro urbano. Nem mesmo no como morrer ela se assemelha a eles. CONCLUSÕES Baseada nas constatações acima desenvolvidas, tenho como prováveis conclusões que a intenção fílmica é apresentar ao leitor uma Biela ainda mais deslocada de seu meio natural o Fundão, levando a fundo a comparação sugerida no livro entre Biela e um tatu que se esconde na toca, como mostra o trecho a seguir. Quero voltar pro Fundão, pra minha toca tão sossegada, talvez tenha querido dizer. (p. 25) A essência transcriativa que norteia a criação do hipertexto pode ser vista na forma de significar idéias que também foram ditas no livro e, ao mesmo tempo, no grau de intensidade com que determinados informações e significados literários foram colocados no filme. A versão cinematográfica de Uma vida em segredo é,, portanto, uma transcriação, carregada da intencionalidade da autora Suzana Amaral, e propagadora de uma nova vida (talvez essa igualmente em segredo, desvelada apenas para aqueles que se dispuserem a descobri-la). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mario de. Amar verbo intransitivo. 16 ed. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas Limitadas, 1995. CUNHA, João Manuel dos Santos. A tradução criativa: A hora da estrela do livro ao filme. Pelotas: EDUFPel/Mundial, 1993. DOURADO, Autran. Uma vida em segredo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982.

JOHNSON, Randal. Romance e filme. In: Literatura e Cinema Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T. A. Queiroz. 1982. REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS AMARAL, Suzana. Uma vida em segredo. Brasil, [2000]; cópia em DVD. Europa Filmes, 2004. 98 ; color.