MEMÓRIAS DO XIXÁ: ITAPURANGA NA LEMBRANÇA E NA VOZ DAS ARTESÃS DO CONVIVER

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Transcrição:

MEMÓRIAS DO XIXÁ: ITAPURANGA NA LEMBRANÇA E NA VOZ DAS ARTESÃS DO CONVIVER Andressa Rodrigues Santos Universidade Estadual de Goiás 1 andressah.rodrigues@hotmail.com Luana Nunes Martins de Lima Universidade Estadual de Goiás prof.luanunes@gmail.com INTRODUÇÃO O ato de preservar cultura influencia na construção de identidades e memórias da cidade. Pierre Nora (1993, p. 9) destaca que a memória não revela a realidade física em si, pois ela é carregada por grupos vivos e está em permanente evolução. Diante disso, este trabalho tem como objetivo refletir sobre memórias vivas, memórias que ainda estão em construção. Como metodologia, adotaremos as técnicas da entrevista narrativa e da História Oral. Elegemos as senhoras fiandeiras do projeto Conviver como os sujeitos da pesquisa, e a coleta de dados se dará por meio de visitas ao programa Conviver, o qual ocorre todas segundas, terças e quartas feiras no Centro Cultural Cora Coralina, em Itapuranga-GO. Além de recorrer às visões de mundo e opiniões de idosos pertencentes à cultura local, buscaremos relatos e trabalhos de alguns professores da Universidade Estadual de Goiás (UEG) - Campus Itapuranga, do curso de Licenciatura em História, que já desenvolveram pesquisas sobre a representação do passado da cidade e sobre as fiandeiras, bem como realizaremos a revisão bibliográfica pertinente. Ainda como etapas metodológicas, utilizaremos as fotografias como documentos historiográficos que permitem compreender esferas desse passado do Xixazão, no mesmo sentido que fizeram Duarte e Silva (2010) ao estudarem a região. O objetivo desse trabalho é desvelar, pela oralidade, o sentido de lugar e a memória que emerge das relações sociais, dos símbolos, das lembranças e das 1 Agradecimentos: À Pró-Reitoria de Graduação (PrG UEG) e ao Programa de Auxílio Eventos (Pró- Eventos) da Universidade Estadual de Goiás, que forneceram apoio financeiro às autoras para a participação no XVIII Encontro Nacional de Geógrafos.

experiências vividas na cidade. Esperamos colaborar na construção de um registro da memória local de Itapuranga e apontar para as relações de identidade e enraizamento com o lugar, dando voz a um grupo social que tem muito a dizer sobre a cidade do passado, do presente e do futuro. O PROJETO CONVIVER E OS SUJEITOS DA PESQUISA É preciso, inicialmente, apresentarmos as razões da escolha de um grupo de convivência de idosos, a partir do qual efetuaremos uma análise geográfica. A posição social que encerra esse grupo justifica sua escolha para a coleta de narrativas sobre a cidade de Itapuranga. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo de mulheres idosas que, mediante a convivência com outros idosos, buscam um local propício à promoção do envelhecimento ativo e à preservação das capacidades e do potencial do indivíduo nessa fase. Em Memória de sociedade: lembranças dos velhos, Bosi (1994) ressalta que nós temos que lutar pelos velhos, pois eles são a fonte da cultura onde o passado se conserva e o presente se prepara. A principal tarefa do velho é lembrar e aconselhar a sociedade (família) para que a cidade não perca a sua cultura familiar, social, grupal e outras. Em segundo lugar, trata-se de um grupo que exerce uma produção cultural singular do local. A região de Itapuranga sempre foi caracterizada por uma prática artesanal muito forte. Porém, nos últimos anos, houve um declínio dessa atividade, o que vem resultando na gradativa perda de um importante referencial local. Silva e Oliveira (2012, p. 346) relatam que em um passado não muito distante, estas atividades mediavam a vida cotidiana e, ainda, de sobra, eram espaços que serviam como representações sociais e, até de embate político. As memórias de Itapuranga vão além de localizações e datas, pois, como assimilou Bosi (1994, p. 451), existe algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em nós como uma carência. Por isso, ao enveredarmos pelas memórias de uma cidade, é tão importante reconhecermos as pessoas idosas como

fonte oral, uma vez que suas histórias de vida e de trabalho estão atreladas à própria construção da cidade. O Conviver é um projeto que se desenvolve não só em Itapuranga, mas em várias cidades brasileiras, e tem como objetivo desenvolver ações voltadas para a melhoria da qualidade de vida do idoso; promover sua integração junto à família e à comunidade; promover programas e atividades que contribuam com a construção de novos laços afetivos, com a reconquista da alegria de viver, com o resgate da sua importância na sociedade, com o incentivo à participação como pessoa humana, rica em conhecimento e experiências; propiciar espaço para a convivência social e em grupo; oferecer oficinas de artesanatos e trabalhos manuais; desenvolver outras atividades afins. O programa tem um enfoque especial para a saúde das participantes. Uma vez por semana as idosas recebem o atendimento de um fisioterapeuta no mesmo local (figuras 1 e 2), com exercícios específicos para a idade, e um psicólogo com o trabalho diversificado, como dinâmicas, conversas em grupos entre as participantes, acupuntura e acupuntura auricular. Figuras 1 e 2: Exercícios aplicados pelo fisioterapeuta no Conviver. Fotos: Andressa Rodrigues Santos. Jun/2016.

Figura 3: Maria Helena da Rocha produzindo seu tapete de tiras na grade. Foto: Andressa Rodrigues Santos. Jun/2016. Além disso, o programa tem o objetivo de alcançar a terceira idade com a realização de cursos artesanais (figura 3), acompanhamento psicossocial e outras formas de ação social. Em Itapuranga, o Conviver ainda apresenta uma função especificamente local para toda a sociedade: o resgate da tecelagem manual. A tecelagem manual promove um reencontro com a natureza, já que nesta arte as matérias-primas utilizadas são renováveis e os movimentos utilizados em todo o processo de tecelagem trazem sentimentos de parte da história que elas mesmas já construíram e ainda estão construindo. No local, muitas senhoras fazem tapetes de grades, bordados de ponto cruz, vagonite, crochê, entre outros. Elas também não deixam a conversa de fora e sempre comentam sobre sua infância, desde o pequeno vilarejo Xixá. É nessas memórias que nos debruçaremos para o entendimento da cidade enquanto lugar.

TECENDO AS MEMÓRIAS DO XIXÁ Itapuranga é uma cidade pequena e relativamente recente (63 anos de emancipação), situada no Centro Goiano, na microrregião de Ceres. O povoamento iniciou-se em 1933, quando frades dominicanos, sediados na cidade de Goiás, com o intuito de formarem um patrimônio sob a invocação de São Sebastião, requereram do Estado um título de posse de um lote de terras devolutas, localizadas às margens do Ribeirão Canastra. Inicialmente, era um vilarejo denominado Xixá, pois a primeira missa, nas primeiras décadas do século XX, fora realizada embaixo de um xixazeiro (IBGE, 2016). Figura 4: Mapa de localização do município de Itapuranga. Elaboração: Robson Vieira Coelho. Jun/2016. A formação da cidade evidentemente parte de uma base religiosa, como a maior parte das cidades brasileiras. O antigo Xixá recebeu o nome de uma árvore típica, onde foi celebrada uma missa campal da igreja católica na região da atual cidade. Posteriormente, a cidade foi crescendo e se modernizando, o que a elevou à categoria de município, sendo desmembrada de Goiás e recebendo o nome de Itapuranga, por causa de muitos blocos rochosos encontrados na região. Na língua Tupi, Itapuranga significa pedra vermelha ou lugar de pedras bonitas (IBGE, 2016). Não

é preciso ir muito longe para percebermos a beleza da formação rochosa da região. Na saída de Itapuranga para a cidade de Morro Agudo, encontramos as fazendas da região conhecida como Serrinha, especificamente da propriedade do Senhor Divino Correa e Julieta Pires, onde encontramos várias amostras da paisagem que deu nome à cidade. Figuras 5 e 6: Formações rochosas localizadas na região da Serrinha, em propriedade de Divino Correa. Fonte: Arquivo pessoal de Eliandro Pires Correa. A formação da cidade de Itapuranga foi acentuada com o surto migratório para Goiás, principalmente de mineiros, advindos de várias regiões deste estado. Desde o povoado do antigo Xixá, constituiu-se uma série de propriedades rurais, nas quais os trabalhadores procuravam viver com os poucos recursos e buscavam os produtos industrializados na cidade de Vila Boa (Goiás-Go), sendo transportados em lombos de animais, com as bruacas, o que deu origem aos chamados tropeiros. As senhoras entrevistadas relatam sobre a dificuldade de locomoção, sobre como a cidade foi crescendo e se modernizando. Algumas reclamam de como a vida mudou, pois outrora, nas fazendas da região, havia tranquilidade e calma nas atividades diárias, mas tiveram que sair para que pudessem ser construídas casas, estradas, dentre outros elementos decorrentes da urbanização. Nitidamente, o que caracteriza a presença do lugar é a existência de sentimentos de pertencimento, de familiaridade, de segurança, de afeição, de relação com o sagrado. Para Tuan (1983), o lugar-mundo-vivido possui o movimento do cotidiano e da história, mas é visto, sobretudo, como pausa.

A própria ideia de comunidade, muito presente nestes antigos povoados e fazendas, remete a estes sentimentos. Bauman (2003) a discrimina como um espaço de segurança, conforto e da sensação de algo conhecido das pessoas. É onde os sujeitos dividem o mesmo espaço e o vivenciam de maneiras diferentes, fazendo com os sentimentos entre eles e pelo lugar também se diversifiquem. Assim, o anseio por identidade vem do desejo de segurança (BAUMAN, 2005, p. 35). Nesta mesma linha de pensamento, Tuan (1980) entende que se o lugar é pausa, segurança quando nele se identifica e cria laços afetivos, essa pausa identitária existe porque o lugar possibilitou a segurança que possivelmente não seria encontrada onde o espaço não é o seu, ou onde o espaço se transforma tão rapidamente de forma que não seja possível reconhecê-lo ou criar vínculos identitários. Esta noção de pausa a que Tuan (1980) se refere está muito presente na fala de dona Maria Helena da Rocha (figura 3), de 63 anos de idade, que já participa do projeto Conviver a 3 anos consecutivos, mora em Itapuranga desde sua infância e reside no centro, a aproximadamente 10 anos. A partir da entrevista, relatou que o que era bom no período de sua adolescência, na cidade de Itapuranga (Xixá), era o vai e vem perto do antigo cinema até a rua de baixo. Era apenas uma rua, mas marcou não só os namorinhos de sua adolescência, como também a mocidade de muitas outras que viveram naquela época. Nessa época, dona Maria Helena morava na zona rural, assim como a maioria dos habitantes da cidade. Ela expõe que sente falta das amizades, da família sempre reunida, algo que hoje em dia quase não se vive. As relações sociais eram marcadas pela simplicidade do cotidiano. A ida à cidade representava a ruptura desse cotidiano, uma ocasião esperada por todos. [...] lembro da bicicleta que entregava pão que ia de porta em porta bem cedinho nas fazendas entregar o pão, de quando a gente ia pra cidade toda arrumadinha. Nós, irmão com as roupas tudo igual pra missa na igreja católica, e era quando a gente vinha pra cidade, só pra ver a missa (Maria Helena da Rocha. Entrevista concedida em junho de 2016). Para dona Maria Helena, o projeto Conviver a faz relembrar muito a sua infância, pois retoma as suas brincadeiras, que eram, na verdade, trabalhos no tear, no descaroçador de algodão, entre outros artigos da época. Além da convivência entre

amigos da mesma época, o que retroalimenta, na atualidade, esses tempos e sentidos vividos no passado. Dona Maria de Lourdes Pessoa Ordenes, de 60 anos, que residiu no distrito Lages de Itapuranga-GO por 30 anos, relatou também sua vida quando jovem. Mesmo residindo em um distrito, frequentava com assiduidade a área central da cidade. Presenciou, por exemplo, uma novidade que trouxe novos ares de modernidade: o calçamento das ruas da cidade com bloquetes (figura 7), na década de 1970. Figura 7: Calçamentos das ruas do Xixá na década de 1970. Fonte: https://www.facebook.com/xixazao. amax/photos_all. Acesso em: Jun. 2016. Assim como para a maioria da população, para dona Maria de Lourdes, a Igreja Católica Matriz Nossa Senhora de Fátima (figura 8) foi um local bastante frequentado enquanto a cidade estava em formação. A imagem da igreja relembra as festas, pois ocorria no local a tradicional Festa do Povo, juntamente com as festas da própria igreja. Figura 8: Igreja Matriz Nossa senhora de Fatima (antigo Xixá, atual Xixazão). Fonte: https://www.facebook.com/xixazao.amax/photos_all. Acesso em: Jun. 2016.

A Festa do Povo, que se realizava na praça central, e que ainda ocorre todos os anos na cidade, porém em outro local, é outro elemento de memória das artesãs. Dona Maria Helena relata que tudo que tinha antigamente foi acabando por causa das novas juventudes, pois na medida em que a cidade foi se modernizando, a sociedade também modificou seus hábitos, deixando de lado tudo que era bom para aquele tempo. Anésia Pereira de Borba, de 72 anos, que reside no centro da cidade desde a sua infância, também relembra das festas da igreja e da Festa do Povo, que frequentava todos os anos com familiares e amigos. Ela narra sobre as mudanças que ocorreram nas festas de antigamente. A festa da Igreja Católica Matriz Nossa Senhora de Fátima realiza-se até hoje, porém não com a mesma essência de antigamente, pois outrora a programação da festa incluía os devotos de todas as idades e hoje em dia é voltada para o público mais jovem. A festa do povo também passou por significativas modificações. Segundo dona Anésia, os habitantes da cidade, dos distritos e fazendas próximas, iam à festa para fazer compras e assistirem a shows musicais de raízes, feitos por próprios moradores da cidade. Atualmente, o público alvo são os jovens, o tipo de música é o sertanejo universitário (que em nada se assemelha ao sertanejo raiz) e a música eletrônica, pelos quais aos moradores mais antigos não se identificam. Figura 9: Festa do Povo de 2015, na famosa Baixada do Xixazão. Figura 10: Parque na Festa do Povo, de 2015. Fonte: https://www.facebook.com/itapurangago/photos. Jun. 2016. Ainda que passem por transformações inerentes à cultura e a aspectos econômicos, Lima (2016) considera que as festas comunitárias, como a Festa do Povo, são

[...] importantes mecanismos de resistência cultural, pois permitem a recuperação da memória histórica, dos valores, das tradições e das formas de vida da comunidade local. Mesmo que sejam vulneráveis à imposição da lógica capitalista, produzem na comunidade o desejo de afirmação da própria identidade e, num ciclo de realimentação, estimulam o conhecimento sobre o patrimônio e a uma procura por recuperar cada vez mais o próprio passado. As festas ainda permitem que os moradores atribuam sentidos simbólicos ao espaço e fortaleçam sua conexão com o mesmo. Elas se apropriam dos espaços patrimoniais enquanto o patrimônio materializa os sentidos afetivos das festas. Por isso, não é de se admirar que a festa continue a se realizar no antigo núcleo do Xixá. Há razões de ordem simbólica que delimitam os espaços afetivos da história e da tradição local. Em Itapuranga, o Xixazão é o que representa mais expressivamente esses limites da memória local, embora ela não se atenha apenas ao núcleo antigo. Dona Deusmarina Almeida Vieira, de 61 anos de Idade, que vive no centro do atual Xixazinho a 30 anos, expôs que antigamente a vida era muito tranquila no Xixá, pois ela e toda a sua família, nos fins de tarde, sentavam-se com tranquilidade na porta de casa para conversar com os vizinhos e brincar nas ruas de terra com as outras crianças. Lamentou que nos dias atuais isso não seja mais possível, por causa da violência e da marginalidade, situação que atinge as crianças, que hoje já não sabem como é brincar e se divertir nas ruas da cidade. Dona Anésia também afirma que havia mais sossego na cidade, pois a qualquer hora do dia e da noite que sentisse desejo podia sair de casa tranquilamente, sentar-se no banco da praça para ver o movimento da cidade e outras liberdades que hoje já não dispõe, por causa da insegurança com relação à criminalidade. Além destes aspectos que remetem à noção de segurança do lugar, retomada por Bauman (2003), devemos considerar os aspectos que criam a identidade do lugar ; elementos que ligam e familiarizam os que compartilham os mesmos códigos culturais, como a tecelagem: Elementos conflitivos aqui aparecem em muitas destas peças tecidas e tramadas, quando tentam entender o que se vive pelos laços e traços construídos, sendo que, muitas vezes, estas experiências são conseguidas em um encontro no mutirão ou mesmo, quando uma das tecedeiras conta que em outros lugares usam tais tramagens, ou emprestam às outras os repassos que traz guardado em caixas, do tempo de suas bisavós ou que serviram para a produção de suas caixas de enxoval. Um fato interessante observado nos

desenhos de suas cobertas é que muitas delas não se conheciam, nem tinham parentes ou amigos em comum, mas tem em suas cobertas os mesmos desenhos ou grafismos e, quando isto é falado a elas, elas se surpreendem, pois em geral elas não fazem os repassos, eles foram copiados ou herdados há muitos anos de pessoas que não são somente de suas famílias (SILVA; OLIVEIRA, 2010, p. 346). Tais memórias quando se distanciam da vida cotidiana local, ou quando são desvalorizadas pelos moradores locais, ou substituídas por aspectos externos ao lugar, geram conflitos. Dona Deusmarina fez uma crítica a um tradicional evento da cidade, à precariedade na inserção dos elementos de memória e de como estes elementos perderam espaço neste evento: [...] Até o Domingo Cultural 2, hoje em dia, deixa a desejar. O que mais tinha de exposição éramos nós, as fiandeiras aqui do Conviver. Mas hoje em dia já partiu pra o lado da tecnologia e juventude. O Domingo Cultural perdeu a sua essência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa ainda em desenvolvimento, mas já aponta a perspectiva metodológica de apreensão da memória da cidade de Itapuranga pela oralidade dos velhos, especificamente das artesãs que participam do projeto Conviver. Mulheres que narram suas vidas e tem estas vidas entrelaçadas nas tramas do tear manual tradicional. Mulheres que já presenciaram e ainda presenciam as mudanças pessoais e sociais que contribuem para a formação da cidade e transformação da paisagem, sendo portanto um legado vivo da história e, que nos permite entender como as pessoas se relacionavam social e culturalmente na cidade, no campo e na região (SILVA; OLIVEIRA, 2010, p. 347). Por si só, o projeto Conviver, para dona Maria de Lourdes e dona Deusmarina, assim como para outras participantes, não relembra a infância, mas traz novos conhecimentos, experiências e também novas amizades, pois até mesmo depois do horário do projeto, as senhoras se encontram para confraternizações ou apenas para jogar uma conversa fora. Segundo Deusmarina, o contato humano lembra muito a 2 Domingo Cultural, realizado em maio, é um dos mais tradicionais eventos da cidade, cuja programação inclui apresentações culturais, desfile de motos, espetáculo circense, desfile de fanfarras, shows sertanejos, atividades esportivas e exposição de artesanatos.

minha infância, pois antigamente tinha muito e hoje em dia não tem mais, até mesmo na família. Algo que, como já dissemos, contribui para a manutenção da memória e para fortalecer o sentido de lugar atribuído à cidade. Afinal, como defende Abreu (1998, p. 89): Fala-se hoje muito em memória urbana, mas o que se quer denominar com esse termo é, invariavelmente, o passado de uma determinada cidade. Seria mais correto, neste sentido, falar de memória da cidade, mas isto também seria enganoso, pois a cidade não pode lembrar-se de nada. Quem lembra são as pessoas que nela vivem ou viveram. Ademais, como alertou Pierre Nora, tudo que hoje chamamos de memória já é história, pois a necessidade de memória é, na realidade, uma necessidade de história (NORA, 1984: xxv). Assim como Abreu (1998), entendemos que a memória coletiva e individual, sobretudo a individual, pode ser a ferramenta necessária para a (re)construção da memória das cidades. Segundo o autor, o registro dessa memória permite-nos enveredar pelas lembranças das pessoas de forma a apreender momentos urbanos que já passaram e formas espaciais que já desapareceram. A identidade de um lugar está fundamentalmente vinculada a essas lembranças. Talvez seja por isso que, nesse contexto pós-moderno de busca pelas singularidades, as histórias orais e as memória de velhos tem se difundido e se popularizado com tanta força no Brasil, ainda que tardiamente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Maurício de. Sobre a memória das cidades. Revista da Faculdade de Letras Geografia I, v. XIV, Porto Alegre, 1998, p. 77-97. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das letras, 1994.

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