A Presidência Eslovena da União Européia e a Cúpula de Lima Introdução: No dia 1 de janeiro de 2008, a Eslovênia 1 assumiu pela primeira vez a presidência rotativa do Conselho da União Européia com o desafio de resolver o conflito do Kosovo, que reivindica sua independência em relação à Sérvia. Por ser um ex-membro da República da Iugoslávia e, por isso, compartilhar uma história com a província separatista, a Eslovênia estaria numa posição privilegiada para mediar as relações entre o Kosovo e a República Sérvia. Ironicamente, a Eslovênia, que pretendia afastar-se dos conflitos nos Bálcãs ao entrar em 2004 na União Européia, terá agora de envolver-se na questão do Kosovo para corresponder às expectativas dos demais membros do bloco. Por isso, a Presidência Eslovena deu ao Kosovo um lugar prioritário em sua agenda. No entanto, a presidência da Eslovênia também pode se destacar em um outro tema que vem sendo pouco explorado nos relatórios e agendas divulgados até o momento pela União Européia: a realização da V a Cúpula União Européia-América Latina e Caribe, que acontecerá em maio de 2008, em Lima, no Peru. Neste caso, a posição inicial da Eslovênia é totalmente distinta da que ela poderá assumir no Kosovo. Se com esta região dos Bálcãs a Eslovênia tem um passado em comum, com a América Latina e o Caribe não existe qualquer histórico de relações. Porém, essa ausência de laços anteriores não deve ser vista como um impedimento. Ao contrário, a neutralidade da Eslovênia para tratar das relações entre a União Européia e a América Latina e o Caribe pode significar uma vantagem nas negociações. A neutralidade dos países médios ou pequenos vem sendo recentemente destacada por alguns teóricos (Cooper, Higgot, Nossal) como uma possibilidade de desenvolver o que eles chamam de niche diplomacy, uma diplomacia baseada na construção de coalizões e cooperações. Países pequenos poderiam ser vistos também como catalisadores e facilitadores. O papel de catalisador refere-se à habilidade de se concentrar politicamente em questões que possam trazer resultados concretos e o papel 1 A presidência do Conselho europeu foi exercida nas cúpulas anteriores pela Alemanha (Cúpula do Rio, 1999), pela Espanha (Cúpula de Madri, 2002), pela Irlanda (Cúpula de Guadalajara, 2004) e pela Áustria (Cúpula de Viena, 2006). 1
de facilitador envolve a organização de encontros e o planejamento de manifestos retóricos. A partir dessa análise, entendemos que a organização da Cúpula de Lima entre a União Européia, a América Latina e o Caribe poderá ser uma oportunidade para a Eslovênia mostrar seu potencial para a niche diplomacy, exercendo o papel de catalisadora e facilitadora. Num primeiro momento, a Eslovênia deve estar consciente de que as quatro Cúpulas anteriores ficaram aquém das expectativas e que estas serão naturalmente transferidas para a próxima Cúpula. Na organização do evento, portanto, a Eslovênia terá de encontrar soluções para antigas demandas dos participantes europeus e latinoamericanos. Em vez de se perderem em meio a uma enorme variedade de tópicos, os organizadores devem se concentrar em algumas questões-chaves que podem fazer avançar a aproximação entre as partes. I. Novos elementos a serem considerados na Cúpula: 1. Cooperação descentralizada Entre os dias 29 e 30 de novembro de 2007 realizou-se em Paris o primeiro Foro de Cooperação Descentralizada União Européia- América Latina e Caribe. As associações de representantes locais UE-ALC mostraram que querem ser consideradas como atores relevantes na associação estratégica birregional UE-ALC. A idéia é desenvolver um enfoque local nas relações entre ambos os blocos. Neste sentido, é necessário reforçar o princípio de subsidiariedade, segundo o qual as decisões devem ser tomadas no nível de governo mais próximo possível do cidadão. O Foro pretende se consolidar como um espaço permanente de diálogo e concertação política dos governos locais e ser reconhecido pelo sistema de Cúpulas União Européia, América Latina e Caribe. Uma delegação de representantes de governos locais das duas regiões apresentará as conclusões do Foro na Cúpula de Lima. 2. Primeira Cúpula após a criação da Assembléia Parlamentar Euro- Latino-Americana (Eurolat) A Assembléia Parlamentar Euro-Latino-Americana foi criada em novembro de 2007 e tem um caráter permanente, ao contrário de suas antecessoras, as conferências inter-parlamentares, realizadas entre as duas regiões desde 1974. A assembléia representa uma ampliação do eixo de negociação, que deixa de ficar restrito aos membros do Executivo dos países e passa a incluir representantes do 2
Poder Legislativo. O órgão é composto por membros do Parlamento Europeu e dos Parlamentos Latino-americano, Centro-Americano e Andino. No entanto, a assembléia não possui competências legislativas e se limitará a promover debates, emitir recomendações e dar seguimento às atividades entre as duas regiões. A primeira sessão plenária da Eurolat, realizada em dezembro de 2007 em Bruxelas, debateu o estado atual das relações entre a União Européia e a América Latina e se concentrou nos preparativos para a Cúpula de Lima. II. Temas já presentes em cúpulas anteriores e que continuam na agenda: 1. Coesão Social e Luta contra a pobreza, a desigualdade e a exclusão A preocupação com a coesão social foi o principal tema da Cúpula de Guadalajara, permaneceu na agenda da Cúpula de Viena (artigo 37 da declaração final) e continuará a ser um tema importante de discussão entre as duas regiões. Em dezembro de 2007, na Assembléia Eurolat, a comissária de Relações Exteriores da União Européia, Benita Ferrero-Waldner destacou a expansão econômica que a América Latina vem registrando nos últimos anos e elogiou a região pela melhora na redistribuição da riqueza, constatada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) das Nações Unidas. No entanto, a redistribuição, salientou Ferrero-Waldner, ainda está longe dos níveis europeus. 2. Acordo Comercial entre a União Européia e o Mercosul A primeira tentativa de estabelecer uma relação comercial entre a União Européia e o Mercosul é anterior às Cúpulas. A primeira reunião neste sentido se deu em Madri, em dezembro de 1995, da qual resultou a assinatura do Acordo Quadro Inter-regional entre os dois blocos. Esse acordo previa a entrada em vigor, dentro de 10 anos, de uma área de livrecomércio entre UE e Mercosul, o que não ocorreu até o presente. Todas as Cúpulas reforçaram, sem sucesso, a intenção de dar prosseguimento àquele projeto. A Cúpula de Lima, portanto, terá de lidar com esta questão, acrescida de um novo dado. No dia 17 de dezembro de 2007, as duas Regiões divulgaram uma declaração de diálogo político, cooperação e comércio. A União Européia demonstrou 3
seu comprometimento com o projeto ao destinar 50 milhões de euros, não reembolsáveis, para o fortalecimento do bloco sul-americano. Destacamos ainda que um acordo comercial UE-Mercosul, que será discutido em Lima, deverá ter em conta a crise econômica norte-americana e seus possíveis impactos sobre os países das duas regiões. Muitos analistas apontaram a vantagem daqueles países que não dependem exclusivamente da economia americana e salientaram a importância de se diversificar as relações comerciais num mundo cada vez mais globalizado. Deste ponto de vista, um acordo comercial entre UE e Mercosul seria uma forma de diminuir, em ambos os blocos, a vulnerabilidade em relação a uma crise global. O acordo de livre-comércio entre as duas regiões também foi recentemente lembrado como um pré-requisito para a associação estratégica entre as duas Regiões. Em dezembro de 2007, a Assembléia Eurolat aprovou o relatório elaborado pelo socialista espanhol Emilio Menéndez del Valle, que prevê uma associação global interregional em duas etapas. Na primeira, seriam concluídos os convênios de livrecomércio e associação política entre a UE e o Mercosul, a Comunidade Andina e o Caribe. Na segunda, as partes construiriam uma estrutura legal e institucional para facilitar a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais entre as duas regiões. 3. Meio ambiente A declaração de Viena já havia se pronunciado sobre questões relacionadas à proteção do meio ambiente (artigos 24 a 28), mas a Cúpula de Lima terá de retomar o tema levando em consideração os resultados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês) e o mapa do caminho estabelecido pela Conferência da ONU sobre Mudança Climática, realizada em 2007 em Bali. Devemos lembrar, no entanto, que a posição européia é mais ousada do que a declaração final de Bali, que não acatou as recomendações do Painel de cortar as emissões de CO2 em 50% até 2050. 4. Energia A política energética deverá ser um dos tópicos centrais da Cúpula de Lima. A União Européia é o maior importador de energia do mundo e sua dependência de petróleo cru e de gás natural tendem a aumentar. Estima-se que o consumo total de energia da UE aumente em 25% num período de 30 anos e, caso não sejam adotadas políticas específicas para a área, a Europa terá de importar 71% de sua 4
energia em 2030, contra os 50% atualmente. Uma das maneiras de alcançar a segurança energética é diversificar as fontes de fornecimento. Em janeiro de 2006, a disputa entre Rússia e Ucrânia em torno do gás afetou a Europa, pois a maior parte da Europa Ocidental importa gás russo através dos gasodutos que atravessam o território da Ucrânia. Ao assinar acordos energéticos com a América Latina, um continente rico em fontes de energia renováveis, a Europa poderia variar seus fornecedores. Acrescente-se ainda o fato de o Brasil ter descoberto no campo de Tupi, na Bacia de Santos, reservas de 5 a 8 bilhões de barris de petróleo, o que lhe permitirá tornar-se um país exportador de petróleo dentro de menos de uma década. 5. Criação de uma Secretaria Permanente Esta também é uma questão que já vinha sendo tratada nas Cúpulas e que agora ganha um lugar prioritário na agenda do encontro de Lima. Muitos analistas criticaram as Cúpulas por seu alto nível declaratório e pela não concretização dos acordos alcançados. Uma secretaria permanente, nos moldes da Secretaria Geral Ibero-americana (SEGIB), é vista pelas autoridades européias e latino-americanas como uma maneira de contornar esse problema, já que uma estrutura executiva birregional teria autoridade para cobrar a implementação dos itens das declarações. Além da Secretaria, a Cúpula de Lima deverá discutir a criação de novas instituições como centros birregionais de prevenção de conflitos e catástrofes e uma fundação de caráter público-privado que promova o diálogo entre as duas Regiões. 6. Integração Latino-Americana A visão de que a integração latinoamericana seria uma pré-condição para a associação estratégica entre a União Européia, a América Latina e o Caribe perpassa o discurso de vários representante europeus e latino-americanos. Nos últimos anos, a América Latina conheceu um ressurgimento de seus ideais integracionistas, mas uma série de dificuldades impediu um avanço significativo do processo. Ora as iniciativas privilegiavam questões políticas, esquecendo-se do econômico e do cultural, ora as iniciativas eram meramente econômico-comerciais, sem uma base político-institucional e cultural. Ao tratar da integração latino-americana, a próxima Cúpula terá de lidar ainda com uma nova iniciativa, a União Sul-Americana de Nações (Unasul), criada em 16 de abril de 2007 na Iª Cúpula Energética realizada na ilha venezuelana de Margarita. A Unasul tem uma vantagem sobre sua antecessora, a Comunidade Sul-Americana de Nações, de 2004: 5
conta com uma secretaria sediada em Quito (Equador) e encarregada de resolver os conflitos que possam vir a surgir entre os países. 7. Migração Os imigrantes latino-americanos na Europa remetem a seus países de origem mais dinheiro do que o concedido pelo sistema financeiro do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Essas remessas acabam, portanto, se transformando num instrumento de captação de poupança em sociedades desenvolvidas, o que poderia estancar o fluxo migratório. Da mesma forma, investimentos europeus em regiões fornecedoras de imigrantes poderiam evitar o afluxo de estrangeiros. A posição européia sobre migração, no entanto, precisa ser melhor esclarecida na Cúpula de Lima, pois ao mesmo tempo em que a Europa faz movimentos para tentar conter a entrada de imigrantes, ela necessita cada vez mais de mão-de-obra estrangeira para seu crescimento demográfico e econômico. Outra questão que merece ser discutida é como conciliar a proposta de uma associação estratégica com circulação de pessoas entre União Européia, América Latina e Caribe com o programa de controle de passaportes para cidadãos de países terceiros, atualmente em discussão na União Européia. Essa falta de clareza mostra a dificuldade de um bloco especificar o que pode lhe interessar no outro. Até certo ponto, a União Européia e a América Latina e o Caribe não sabem o que esperar um do outro quando a questão é migração e circulação de pessoas entre os blocos. 8. Segurança e luta contra as drogas A União Européia adotou uma estratégia para conter o consumo, a produção e o tráfico de drogas ilegais entre os anos de 2005 e 2012. A meta é reduzir a oferta e a procura tanto no território europeu quanto no da América Latina através do apoio a programas de desenvolvimento alternativo. A estratégia prevê ainda o compartilhamento de know-how e experiências na área de cooperação transfronteiriça, encorajando a troca de informação entre as partes. O combate ao tráfico de drogas e outros crimes requer a implementação de regras mínimas de transparência nos circuitos financeiros para dificultar a lavagem de dinheiro. O assunto, que já constava das declarações anteriores, deverá continuar na agenda da Cúpula de Lima. 9. Democracia e Direitos Humanos Em todas as Cúpulas realizadas até o momento, a democracia e os direitos humanos ocuparam um lugar privilegiado e 6
continuarão na pauta da Cúpula de Lima. A declaração de Viena afirma que, embora os regimes democráticos se caracterizem por elementos comuns, a democracia não se pauta por um modelo único. Essa definição foi em parte contestada pelo secretário-geral da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), Didier Opertti Badán, para quem a democracia é, em essência, uma só 2 e seria traduzida por liberdades cívicas, de associação, de expressão, de imprensa, respeito pelas minorias, partidos políticos em igualdade de condições e possibilidades de alternância de poder. Concordamos com os itens apontados por Badán para definir a democracia, mas entendemos que a afirmação contida na Declaração de Viena tem o mérito de permitir um mútuo respeito entre as partes em relação aos seus respectivos regimes políticos. De qualquer forma, um debate sobre o conceito de democracia na Cúpula de Lima deverá contribuir para a aproximação e o entendimento entre as regiões. Conclusão A Cúpula de Lima será, certamente, um momento importante de afirmação das convergências birregionais entre a União Européia e a América Latina e o Caribe. A Presidência da Eslovênia, como observarmos inicialmente, renova as esperanças de que possam ser dados passos importantes na superação dos obstáculos que vêm dificultando e mesmo impedindo uma maior e mais rápida aproximação entre as partes. A Eslovênia, cuja história tem início nos primeiros séculos da formação da Civilização Ocidental cristã, acumula experiência e conhecimento de enorme valia sobre problemas de identidade, de divergência e de convergência entre etnias, culturas, povos e nações. Projetado no pano de fundo da comunidade que constitui a União Européia, o saber esloveno no âmbito das relações internacionais e sua habilidade no trato de questões políticas contrasta com as dimensões modestas da população que forma a sua nacionalidade. Mas é exatamente nesta singularidade, de um pequeno país com uma grande competência política, acreditamos nós, que reside o seu trunfo e é por isto que a América Latina e o Caribe devem não só apostar no êxito da Cúpula de Lima como acompanhar com todo o interesse e dar o seu integral apoio às iniciativas que 2 De Viena a Lima: El proceso de cumbres en un escenario cambiante. Texto apresentado no Seminário Las Relaciones Eurolatinoamericanas desde la Cumbre de Viena a la Cumbre de Lima, realizado entre os dias 3 e 4 de outubro de 2006 na sede da Cepal em Santiago do Chile. 7
venham da Presidência Eslovena do Conselho da União Européia. A Cúpula de Lima é uma oportunidade para afirmar que a cooperação solidária é a única forma de assegurar a paz, a justiça e o desenvolvimento da Comunidade Internacional. Rio de Janeiro, fevereiro de 2008 Prof. Dr. Franklin Trein Coordenador do Programa de Estudos Europeus/UFRJ trein@ifcs.ufrj.br Profa. Flavia Guerra Cavalcanti Pesquisadora associada do PEE/UFRJ flaviagcavalcanti@yahoo.com.br 8
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