O SONHO DE EMMA BOVARY: ENTRE O VENENO E O REMÉDIO

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Transcrição:

O SONHO DE EMMA BOVARY: ENTRE O VENENO E O REMÉDIO Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/UFCG). Saulo Rios Mariz (CCBS-UFCG) INTRODUÇÃO Originária do grego, (mímesis: imitação), a noção de mimese (imitatio: em latim) está diretamente relacionada à ação de imitar, copiar ou reproduzir. Essa noção é bem anterior à Mimeses, obra clássica do filólogo e estudioso da literatura comparada, o alemão Erich Auerbach, o mais conhecido e, muito provavelmente, o principal teórico da Mimeses para os estudos da literatura em tempos modernos. Entretanto, essa noção está arraigada nos estudos clássicos, nos quais Aristóteles representa o seu principal nome. Podendo ser aplicada a qualquer arte e na vida, a mímeses está diretamente relacionada à imitação, caracterizando-se como uma atividade humana, mas, que segundo o próprio Aristóteles nos distinguia dos animais. Esse conceito está relacionado à poiesis como fundamental na filosofia platônica e na poética aristotélica; para eles, essa era uma forma de o artista representar, a partir do que via. Entretanto, ao longo do tempo, algumas ideias sobre a representação do real foram mudando e Horácio, por exemplo, passou a defender o princípio aristotélico da arte, mas, Gagnebin, (1999), por exemplo, faz um histórico da evolução do termo, discutindo essa noção de mimeses a partir de Platão, Aristóteles, passando por Adorno e Horkheimer e Walter Benjamin. Para Gagnebin (op. cit. P. 75), a mimese tem outro valor que pode incitar o medo: Ora, tal "mimese incontrolada" deve ser, nas palavras de Adorno e Horkheimer, "proscrita", se o homem quiser se livrar do medo originário e tentar dominar essa natureza, isto é, iniciar o controle da racionalidade iluminista. Isso nos conduz perceber a problemática dessa noção, sendo, portanto, muito controversa para ser aplicada ao pé da letra. Com essas considerações, é preciso observar que a problemática do termo está para além de uma noção fechada, o que nos deixa em uma situação de um relativo conforto, visto que neste trabalho, buscamos exatamente, refletir e problematizar essa noção. Ora, se por um lado temos a ideia inicial de Platão e Aristóteles que percebem a mimeses como essa imitação, noção que chega à literatura e se populariza com Aurebach (2004), mas, que não está fechada em si, pois, para Adorno e Benjamin essa percepção é extrapolada; por outro

lado, temos uma obra flaubetiana, como Madame Bovary, que é claramente marcada por descrições que estão muito mais próximas de uma real e verdadeira mimese. Nessa zona de conforto, prioritariamente, é que inserimos as nossas reflexões, nas quais discutiremos como ou se a literatura representa o real ou se ela está muito além da imitação, uma vez que Flaubert produz a sua obra prima a partir de dados e consultas sobre efeitos e reações do arsênio no corpo da protagonista Emma Bovary. Nessa narrativa, a descrição é tão real que se diria ter sido elaborada por um médico, farmacêutico ou outro especialista em compreender os efeitos da droga no corpo humano. Com essas considerações, devemos sinalizar que delimitamos a nossa análise ao oitavo capítulo da terceira parte do romance por nele estar presente toda a descrição do que consideramos a literatura para além da arte ou a literatura imita a vida, mas, não se limita a ela. Entendemos a literatura como transcendência; mais do que a representação do verdadeiro, uma vez que pode transcender as limitações do real, e sempre o faz. Ou seja, a arte (neste caso em especial, a arte literária) imita, mas não se limita à vida! Nesse sentido, buscamos discutir, à luz das ciências biológicas, como fatos da ficção são explicados pela ciência, determinando assim, a verossimilhança (ou não) de uma obra. Esta pesquisa tem cunho bibliográfico e documental, uma vez que nos debruçamos sobre o romance em questão, além de, evidentemente, consultar fontes e outros documentos que deram o suporte necessário para a nossa análise literária, que teve como corpus o capítulo que descreve a morte por envenenamento de Emma Bovary. Madame Bovary, de autoria do romancista, por excelência, o francês Gustave Flaubert apresenta no capítulo oito, da terceira parte da obra, os últimos momentos da personagem Emma Bovary, detalhando algumas características do seu auto envenenamento por Arsênio. Aqui, discutem-se possíveis explicações científicas para alguns dos sinais e/ou sintomas relatados na obra. A base teórica para a análise literária foram os pressupostos de Compagnon (2003) e Jouve (2012), no que se refere à literatura, ela mesma. Na busca pela veracidade das alterações orgânicas vivenciadas pela personagem Ema quando do seu envenenamento pro arsênio, utilizou-se as edições mais atualizadas de livros de autores consagrados na área, entre eles: Oga et al. 2014; Olson et al., 2014 e Klassen et al. 2013.

1. O romance em algumas linhas Nestas linhas, transcrevemos Carpeaux (s/d), quem, para nós, consegue resumir o romance de modo claro e adequado. O enredo de Madame Bovary impressiona pela simplicidade, e por tratar com bastante precisão a estupidez humana. A história começa descrevendo Charles Bovary quando entrou na escola e a algazarra que provocou nos alunos por possuir um chapéu ridículo, ser tímido, incompetente e insensível de grande inabilidade. Muitos críticos consideraram esta descrição inútil, enfadonha. Pode até ser cansativa, mas inútil não é: o ridículo do chapéu é o símbolo da estupidez de quem o usa. Assim, durante a narrativa aparecerá muitos outros chapéus ridículos, como o boné grego do farmacêutico Homais, o chapéu de castor do padre Bournisien e o chapéu elegante, mas já fora de moda de Rodolphe. Emma, por sua vez, é a mocinha sonhadora, romântica, acreditando que suas leituras medíocres lhe contam sobre a felicidade proporcionada pelo amor. Esse mundo todo colorido de ilusões se desfaz tão logo se casa, para fugir da estreiteza da casa paterna, com o já então médico Charles Bovary. Um dia, num bailei no castelo do vizinho aristocrático Emma Bovary reaviva seus sonhos românticos, a que tão pouco responde o marido. Depois disto, Emma cai na aventura com vários amantes. Primeiro, com Rodolphe, um tipo de Don Juan do campo, que logo a abandona. Depois com Léon, o jovem empregado de um advogado. Por esse ela perde o equilíbrio: contrai dívidas através de empréstimos que nunca poderá pagar. Desesperada e, acuada pela ganância dos credores, suicida-se. Só depois de sua morte Charles Bovary descobre a verdade. Fica perturbado sem saber o que pensar. Não se vinga dos amantes, não toma nenhuma atitude. Perde tudo o que tem para saldar as dívidas. Depois morre, amargurado, deixando uma filha pequena que vai morar com a avó, que também morre. Para sobreviver, a tia manda-a trabalhar numa fábrica de tecidos. Uma história triste e, em parte, sórdida. O romance se chama Madame Bovary. Se levarmos em conta o título, Emma Bovary seria sua heroína. No entanto, a narração começa e termina com o estúpido Charles Bovary; e nela desempenham um papel importante na trama o estúpido Don-juanismo de Rodolphe, a estúpida paixão de Léon, a estupidez do padre farisaico Bournisien e todo esse pequeno ambiente de província, que não deixa uma saída para Emma nem para ninguém. É por isso que Otto Maria, em seu ensaio sobre a obra,

comenta com grande ênfase: o verdadeiro personagem desse romance é a Estupidez humana 1. Um exemplo claro dessas verdades é o drama vivido pela personagem Emma, no romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, na qual destacamos o veneno enquanto solução para a trama que entrelaça a vida de Emma. Mas, e quando o veneno tem puramente a função de curar? A discussão sobre a cura pela morte ou o veneno como cura é o foco desta proposta endereçada aos estudantes de Letras e francês como língua estrangeira. Esse é o nosso principal ponto de partida, uma vez que, nessa leitura, damos enfoque à verossimilhança / ficção na descrição da narrativa sobre a morte de Emma, provocada pelo Arsênico. Trata-se de observar a literatura como algo que está para além da representação do real, o que nos dizer de Jouve (2012) seria um dos principais papéis da literatura. 2. O sonho de Emma Bovary: entre o veneno e o remédio O principal ponto dessas nossas reflexões está centrado no envenenamento de Emma. Aqui fizemos um recorte, destacando as narrativas nas quais mais se percebe a presença dessa relação: verdade & ficção de modo mais evidente. Percebe-se desde os momentos que antecipam a ingesta do veneno até o momento pós ingesta, em que se lê descrição do ato propriamente dito. A edição do romance trabalhado, utilizada nessa pesquisa, é uma tradução, mas que, felizmente, consegue manter a força da narrativa; conforme podemos ler na passagem seguinte: - Eh! não vale a pena, que eu depois lhe digo. Vamos, alumia-me! Entrou no corredor para onde dava a porta do laboratório. Na parede estava pendurada uma chave com a etiqueta: cafarnaum. - Justin! - chamou o boticário, que já se impacientava. -Vamos subir! Ele seguiu-a A chave girou na fechadura e Ema foi direto à terceira prateleira, tal justeza com que a memória a guiava, pegou no frasco azul, destapouo, meteu-lhe dentro a mão, tirou um punhado de pó branco e pôs-se imediatamente a comê-lo diretamente. - Pare! - exclamou o rapaz, agarrando-se a ela. - Cala-te! Pode vir alguém... Justin desesperava-se, queria gritar. - Não contes nada, senão recairia tudo sobre o teu patrão! Depois voltou, subitamente calma, e quase com a serenidade de ter cumprido um dever. (FLAUBERT, 2002, p. 372-373. Grifos nossos). 1 CARPEAUX, Otto Maria. Madame Bovary. In Gustave Flaubert: Madame Bovary. Ediouro, s/d, p. 11-17.

A chave que dá a Emma, acesso ao veneno (remédio para seus males?) é um instrumento para a sua morte (ou cura)? Nesse momento da narrativa, alguns elementos apresentam-se como indícios de que o autor usa da realidade para levar o leitor a submergir na ficção. E neste momento, então, damos voz á ciência que explica o fenômeno descrito no romance flaubertiano. O primeiro dos indícios que nos chama a atenção é o frasco azul, provavelmente um frasco azul-escuro. Recurso muito utilizado, mesmo atualmente, para conservação de substâncias químicas, pois o frasco não transparente diminui a incidência de luz no meio interno, reduzindo o risco de alteração química como, por exemplo, a degradação e perda de efeito de substâncias fotossensíveis, como o arsênio. Assim, percebe-se, na narrativa, um cuidado em aproximar um dado fundamental do romance para uma realidade. Poderia ser um frasco, simplesmente, mas, no romance, apenas essa informação não seria suficiente para dar conta da força da narrativa, daí, a necessidade de detalhar: frasco azul. Outro elemento que salta aos olhos, nesse sentido, é o pó branco. Uma cor, ocidentalmente, conhecida como o símbolo da paz, por certo proporciona a paz à Emma. É sem dúvida, esse pó branco que a cura. Já naquela época, essa era das principais formas de apresentação do arsênico e, de fato, ainda hoje é a principal forma de apresentação de produtos à base de arsênico, ratificando, assim, a verossimilhança da obra. Essas circunstâncias nos mostram que, a partir desses dois elementos, que a literatura é atemporal. Evidentemente, não se pode dizer que Flaubert já sabia que essa apresentação física iria atravessar gerações, mas, em suas pesquisas, muito provavelmente, ele identificou que a tradição já apontava para essa descrição do invólucro da droga. Continuando essa leitura em busca da integração literatura e química e biologia, encontramos em: Analisava-se com curiosidade, para descobrir se tinha alguma dor. Mas não! Ainda nada. Ouvia o tiquetaque do relógio, o crepitar do lume e a respiração de Charles, de pé, ali junto da cama. "Oh! A morte é uma coisa insignificante!", pensava ela, "vou adormecer e estará tudo acabado!" Bebeu um gole de água e voltou-se para a parede. Aquele horrível gosto a tinta persistia....estou com sede! Estou com muita sede! suspirou ela [...] E foi acometida de tão súbita náusea, que mal teve tempo de lançar mão do lenço que tinha debaixo do travesseiro. - Leva-o! - disse precipitadamente. - Deita-o fora! Charles interrogou-a, ela não respondeu. Mantinha-se imóvel, com

medo de que a menor emoção a fizesse vomitar. Entretanto, sentia um frio de gelo subir-lhe dos pés ao coração. - Ah!, lá está agora a começar! - murmurou ela. - O que é que estás a dizer? [...] Às oito horas reapareceram os vômitos Charles observou que havia no fundo da bacia uma espécie de areia branca, agarrada à porcelana. - É extraordinário! É singular! - repetia ele. (FLAUBERT, 2002, p. 374-375). A presença dos elementos sede e vômitos não causam surpresa à Medicina. Isto porque é sabido que o arsênico age por vários mecanismos. Descrevemos, aqui, duas das principais dessas formas de ação desse agente altamente tóxico. A primeira, é que ao bloquear sistemas enzimáticos essenciais, ele altera o metabolismo celular gravemente causando lesão capilar difusa, vômitos, inclusive com sangue, correspondendo a uma gastroenterite hemorrágica. Outra ação é que, além disso, ele possui um alto potencial em causar hepatotoxicidade mediante infiltração gordurosa e cirrose. Essa ação, junto com as propriedades cáusticas do arsênio para a mucosa do trato digestório, podem explicar as fortes dores relatadas por Ema. Na continuação, prossegue-se a descrição dos momentos finais da protagonista: Então ele, delicadamente e quase a acariciando, passou-lhe a mão sobre o estômago. Emma soltou um grito agudo. Charles recuou aterrado. Depois ela pôs-se a gemer, a princípio muito levemente. Um grande arrepio sacudiu-lhe os ombros e começou a ficar mais pálida que o lençol onde se lhe afundavam os dedos crispados. O pulso irregular era agora quase imperceptível. Surgiram-lhe gotas de suor espalhadas pelo rosto azulado que, entorpecido, parecia exalar um vapor metálico. Batia os dentes, com os olhos dilatados olhava vagamente em torno, e só respondia a todas as perguntas abanando a cabeça, chegou a sorrir duas ou três vezes. Pouco a pouco, os gemidos foram-se tornando mais fortes. Deixou escapar um uivo surdo, disse que estava melhor e que dali a pouco se levantaria. Mas entrou em convulsões e exclamou: - Ah! É atroz, meu Deus! Sacudiam-lhe os ombros grandes arrepios e tornou-se mais branca que o lençol em que cravava as unhas. O pulso irregular era agora quase imperceptível. (FLAUBERT, 2002, p. 375). A obra literária nos permite ler uma das, senão, a morte mais bela da história da literatura; no entanto, não podemos esquecer que Emma nada mais apresentava do que típicos efeitos tóxicos do arsênico: anemia, descrita na palidez, além de, por certo, hipotensão e

arritmia cardíaca. Sob a ótica das ciências médias, pode-se fazer essa afirmação, pois sabe-se que alterações hematológicas e cardiovasculares são os principais efeitos observados logo depois da agressão gastrintestinal. Depois das alterações nesses dois primeiros sistemas orgânicos, começam a surgir os efeitos neurológicos do metal tóxico, como descrito a seguir: Subitamente ouviu-se no passeio um ruído de grossos tamancos, juntamente com o arrastar de um cajado, e uma voz rouca que começou a cantar: Quantas vezes um belo dia de calor Faz sonhar as meninas com amor. soltos, o olhar fixo, a boca aberta. Para apanhar as espigas Que os moços foram ceifar, Na noite com as moças Andou no campo a cantar. - O cego! - gritou Ema. E começou a rir, um riso cruel, delirante, desesperado, julgando ver o rosto medonho do desgraçado surgir nas trevas eternas como um fantasma... Em seguida veio uma convulsão, que a fez se deitar novamente. Todos se aproximaram. Ema não existia mais... (FLAUBERT, 2002, p. 386). Alucinações, delírios e convulsões, estão entre os principais danos neurológicos relatados como eventos típicos na intoxicação aguda pelo Arsênio. Pode haver ou não alteração da consciência. A agressão ao metabolismo dos neurônios pode causar vários distúrbios do movimento, inclusive convulsões. Então, entende-se que, neste romance realista, há de fato uma realidade evidente, mas, cabe-nos também ponderar sobre esse veneno como a chave para Emma. Por certo, o realismo está bastante presente na narrativa, mas, não se poderia dizer que a solução para a tristeza e infelicidade da protagonista está em uma saída típica das obras românticas? Na realidade, o que mais nos chama a atenção é pensar o romance como algo que de fato está muito além do real, sendo um elemento que ultrapassa até os limites da ficção. Assim, o veneno não é agente de malefícios. Pelo contrário, ele é a representação de um sonho realizado, a execução de um grande objetivo. A saída para as dores e os sofrimentos da alma.

Considerações Finais Assim, em guisa de encerrar, se colocássemos nos dois pratos de uma balança, a verossimilhança e a ficção, em se tratando dos efeitos biológicos descritos quando da intoxicação por arsênio da personagem Emma na obra analisada, a verossimilhança, a mimeses teriam maior peso. Todo o quadro clínico descrito com riqueza de detalhes é bem característico do que é observado em casos de intoxicação humana por arsênico, principalmente quando o indivíduo se expõe a esse metal pesado com intenção suicida. Além disso, a obra literária em questão, nesse momento específico da narrativa, pode nos levar à reflexão sobre o suicídio enquanto comportamento humano relativamente frequente, mesmo nos dias de hoje. O que nos leva a julgar que podemos transformar um veneno que conduz à morte, em um remédio que nos trará a cura das enfermidades da alma? Referencias AUREBACH, E. Mimesis. São Paulo: Ed. Perspectiva. 2004. COMPAGNON, A. Literatura pra quê? UFMG. Tradução Laura Taddei Brandini. 2012. GAGNEBIN, J.-M. do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Revista Perspectiva. vol.16. São Paulo, 1993. p. 67-86. FLAUBERT, G. Madame Bovary. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2002. 414p. JOUVE, V. O que é literatura? Parábola. Tradução. 2012. KLAASSEN, C. et al. Casarett & Doull's Toxicology: The Basic Science of Poisons. New York: McGraw-Hill, 2013. 1.454 p. OGA, S.; CAMARGO, M. M. A.; BATISTUZZO, J. A. O. Fundamentos de Toxicologia. 4ª ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2014. 685 p. OLSON, K. R. et al. Manual de Toxicologia Clínica. 6ª ed. Porto Alegre: AMGH, 2014. 813 p.