O Supremo Tribunal Federal e a primeira audiência pública de sua história



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Artigos O Supremo Tribunal Federal e a primeira audiência pública de sua história Fabrício Juliano Mendes Medeiros Especialista em Direito Constitucional Processual pela Universidade Federal de Sergipe, Mestrando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília UniCEUB, Professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília UniCEUB, Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal STF. fabriciojm@stf.gov.br Resumo: O presente ensaio tem por finalidade analisar, ainda que em brevíssimas linhas, os principais aspectos que justificaram a realização da primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal. Além disso, o trabalho buscará explicitar as etapas que foram cumpridas pela mais alta Corte de Justiça do país, até a efetiva concretização de um dos instrumentos de democratização do processo de controle de constitucionalidade, previsto na Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999 1. Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; STF; audiência pública Sumário: 1 O que levou o STF a realizar a primeira audiência pública de sua história? - 2 A realização da audiência pública como mais um sinal de abertura do processo de controle de constitucionalidade - 3 Como se realizou a audiência pública - 4 Conclusão - Referências 1 O que levou o STF a realizar a primeira audiência pública de sua história? No dia 30 de maio de 2005, o então Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fontes, ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, a ADI 3510, na qual buscava a declaração de inconstitucionalidade do art. 5 e parágrafos da Lei n 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança) 2. Como explicitado pelo próprio autor da referida ação direta de inconstitucionalidade, a tese central da impugnação dirigida ao Supremo Tribunal era a de que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação (fls. 02 da petição inicial). Ademais, apoiando-se no 1 Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. 2 Art. 5 É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizadas nos respectivos procedimentos, atendidas as seguintes condições: I sejam embriões inviáveis; ou II sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data de publicação desta Lei, ou que, já congelados na data de publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. 1 Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. 2 Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com célulastronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa. 3 É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 41

testemunho de Damián Garcia-Olmo, Professor Titular de Cirurgia da Universidade Autônoma de Madri, o requerente noticiava que havia avanços muito mais promissores da pesquisa científica com células-tronco adultas, do que com as embrionárias (fls. 06 da petição inicial). Daí arrematar o acionante que os dispositivos impugnados eram atentatórios aos postulados constitucionais que asseguram a dignidade pessoa humana e a inviolabilidade do direito à vida (inciso III do art. 1 e art. 5 da CF/88). De sua parte, em sede de informações, o Presidente da República na condição de requerido - defendeu o ponto de vista segundo o qual a permissão para utilização de material embrionário, em vias de descarte, para fins de pesquisa e terapia, encontra fundamento em dois valores amparados constitucionalmente: o direito à saúde e o direito de livre expressão da atividade científica. Ponto de vista, esse, que, em linhas gerias, coincide com a manifestação do segundo requerido, a Mesa do Congresso Nacional. Daqui se infere, pois, que o tema de fundo da impugnação formulada pelo Procurador-Geral da República suscitava inúmeras indagações a respeito da proteção constitucional do direito à vida. Exatamente por esse motivo, o Min. Carlos Ayres Britto atendeu a solicitação do autor da ADI 3510 e designou a realização de audiência pública para o esclarecimento das questões de fato subjacentes ao questionamento da validade constitucional do art. 5º e parágrafos da Lei nº 11.105/05 ( 1 do art. 9 da Lei n 9.868/99). É o que se depreende da decisão monocrática a seguir transcrita, na parte que mais diretamente interessa a este estudo 3 : (...) a matéria veiculada nesta ação se orna de saliente importância, por suscitar numerosos questionamentos e múltiplos entendimentos a respeito da tutela do direito à vida. Tudo a justificar a realização de audiência pública, a teor do 1º do artigo 9º da Lei nº 9.868/99. Audiência que, além de subsidiar os Ministros deste Supremo Tribunal Federal, também possibilitará u a maior participação da sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário desta nossa colenda Corte. 4. Esse o quadro, determino: a) a realização de audiência pública, em data a ser oportunamente fixada ( 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99); b) a intimação do autor para apresentação, no prazo de 15 (quinze) dias, do endereço completo dos expertos relacionados às fls. 14; c) a intimação dos requeridos e dos interessados para indicação, no prazo de 15 (quinze) dias, de pessoas com autoridade e experiência na matéria, a fim de que sejam ouvidas na precitada sessão pública. Indicação, essa, que deverá ser acompanhada da qualificação completa dos expertos. Publique-se. Brasília, 19 de dezembro de 2006. Parecia mesmo incontroverso que, para que o Supremo Tribunal Federal bem pudesse exercer a sua missão de guardião da Constituição Federal, seria imprescindível que ele se municiasse do maior número possível de elementos técnicos, a fim de que a decisão a ser tomada levasse em conta os diversos aspectos envolvidos na questão. Isso, lógico, porque, como ensina Gilmar Ferreira Mendes, não há como negar a comunicação entre norma e fato, que constitui condição da própria interpretação constitucional. É que o processo de conhecimento aqui envolve a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos 4. 2 A realização da audiência pública como mais um sinal de abertura do processo de controle de constitucionalidade. 3 Decisão publicada no Diário de Justiça da União em 1º.02.2007. 4 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 248. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 42

É indiscutível que a realização, pelo Supremo Tribunal Federal, da primeira audiência pública de sua história representou mais um sinal de abertura do procedimento de interpretação constitucional, dado que, mediante a participação dos experts indicados pelo autor, pelos requeridos e pelos amici curiae, a Corte Constitucional brasileira assegurou a efetiva participação da sociedade organizada no processo de fiscalização da higidez constitucional do artigo 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança 5. Cumpre rememorar que essa abertura democrática do processo de interpretação constitucional ganhou força no Supremo Tribunal Federal com o julgamento da Questão de Ordem na ADI 2.777, oportunidade em que se reconheceu a possibilidade de sustentação oral por terceiros admitidos no processo abstrato de constitucionalidade, na qualidade de amici curiae 6. Até então o pensar majoritário da Corte reconhecia que a participação dos interessados deveria se resumir à apresentação de memoriais escritos, como serve de amostragem a decisão proferida na ADI-MC 2.321, da relatoria do Min. Celso de Mello. De se referir que a possibilidade de a sociedade civil influir na opinião dos Ministros do Supremo Tribunal Federal é, sem dúvida, um fator de legitimação ainda maior das decisões da Corte Suprema, notadamente daquelas que tenham por objeto a concretização dos chamados direitos fundamentais 7. Valendo lembrar que à jurisdição constitucional cabe assegurar a efetividade dos direitos fundamentais e, além disso, manter e aperfeiçoar o regime democrático. Logo, de fora a parte a tarefa de aferir a regularidade dos atos normativos com a Lei Maior, a jurisdição constitucional deve assegurar a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Nesse contexto, para que a jurisdição constitucional possa bem exercitar a sua função é necessário que ela esteja democraticamente aberta às várias correntes de pensamento que coexistem na sociedade. Mas não é só. É também preciso assegurar meios para que a sociedade civil organizada possa contribuir na formação do pensamento dos intérpretes oficiais. A ativa participação da sociedade civil no processo de interpretação constitucional caracteriza aquilo que, já nos idos da década de 70, Peter Habërle passou a denominar de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Com o propósito de explicar a sua tese, Habërle esclareceu que quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos cointerpretá-la. Por isso, não se poderia mais aceitar que a interpretação constitucional continuasse sendo fruto do exercício intelectual de uma sociedade hermeticamente fechada, dela tomando parte apenas os intérpretes jurídicos vinculados às corporações (os advogados públicos e privados, os promotores etc.) e aqueles participantes formais do processo constitucional. Daí concluir o professor alemão: (...) A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nelas envolvidas, sendo 5 Até a data de realização da audiência, cinco entidades haviam postulado, com sucesso, a sua admissão no processo como interessadas: Conectas Direitos Humanos, Centro de Direitos Humanos CDH, Movimento em prol da Vida MOVITAE, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero ANIS e Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNBB (cf. 2 do art. 7 da Lei n 9.868/99). 6 Informativo STF nº 331, de 24 a 28 de novembro de 2003. 7 (...) Legitimação, que não há de ser entendida apenas em sentido formal, resulta da participação, isto é, da influência qualitativa e de conteúdo dos participantes sobre a própria decisão. Não se trata de um aprendizado dos participantes, mas de um aprendizado por parte dos Tribunais em face dos diversos participantes (HABËRLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002. p. 31-32. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 43

ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. (...) Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. (...). Pois bem, sensível a esse vetor de democratização do processo de fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos, foi que o Supremo Tribunal Federal designou a realização da audiência pública no bojo da ADI 3510. 3 Como se realizou a audiência pública Uma vez designada a audiência pública, o relator da multicitada ação direta de inconstitucionalidade marcou para o dia 20.04.2007, no auditório da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a realização da sessão pública para a oitiva dos especialistas e, em seguida, determinou a expedição de convites aos especialistas indicados pelos requeridos e pelos amici curiae 8. Mais: como a finalidade da audiência pública é a de dar subsídios técnicos aos Ministros da Casa para que pudessem decidir a matéria com a maior segurança possível, também foram expedidos convites aos demais integrantes da Corte 9. Todavia, uma vez fixada a data de realização da audiência, o Supremo Tribunal Federal teve que encontrar um parâmetro objetivo apto a disciplinar o procedimento a ser observado durante o evento. É que, não obstante a Lei n 9.868/99 previsse como de fato prevê a possibilidade de realização de audiências públicas no processo objetivo de controle de constitucionalidade, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal é absolutamente silente a respeito do tema. Diante dessa ausência de regulamentação no âmbito do STF, achou por bem o relator da ADI 3510 aplicar, naquilo que fosse compatível, as disposições do Regimento Interno da Câmara dos Deputados que dispõem, exatamente, sobre a realização de audiências públicas no interior daquela Casa Legislativa 10. Confira-se: (...) conquanto haja previsão legal para a designação desse tipo de audiência pública ( 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99), não há, no âmbito desta nossa Corte de Justiça, norma regimental dispondo sobre o procedimento a ser especificamente observado. 3. Diante dessa carência normativa, cumpre-me aceder a um parâmetro objetivo do procedimento de oitiva dos expertos sobre a matéria de fato da presente ação. E esse parâmetro não é outro senão o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, no qual se encontram dispositivos que tratam da realização, justamente, de audiências públicas (arts. 255 usque 258 do RI/CD). Logo, são esses os textos normativos de que me valerei para presidir os trabalhos da audiência pública a que me propus. Audiência coletiva, realce-se, prestigiada pela própria Constituição Federal em mais de uma passagem, como verbi gratia, o inciso II do 2º do art. 58 (...) Cabe aqui estabelecer uma distinção que parece importante: a audiência pública realizada no âmbito do Supremo Tribunal Federal não detém a mesma amplitude daquelas que são realizadas pelo Parlamento brasileiro. Isto porque se é verdade que ambas têm como finalidade ouvir segmentos organizados da sociedade civil, também não é menos verdade que, na maioria das vezes, o Parlamento realiza tais sessões públicas para instruir os 8 Além dos especialistas indicados pelos requeridos e pelos amici curiae, também participaram da audiência pública os experts arrolados pelo autor. Estes, porém, compareceram independentemente da expedição de convites, como, aliás, requerido pelo próprio Procurador-Geral da República. 9 Além do relator, compareceram à sessão a Min. Ellen Gracie, o Min. Gilmar Mendes e o Min. Joaquim Barbosa. 10 Decisão publicada no Diário de Justiça da União em 30.03.2007. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 44

processos de elaboração dos atos normativos. E o certo é que, como o processo legislativo pressupõe um ato normativo em formação (in fieri, portanto), nada mais recomendável do que se ampliar ao máximo o debate público a respeito da matéria objeto da regulação pelo Parlamento. A mesma realidade, porém, não ocorre no âmbito do Supremo Tribunal Federal, sabido que a atuação da Corte é limitada às balizas impostas pelos autores das específicas impugnações que lhe são dirigidas. É dizer: como órgão do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal só exerce a sua competência num determinado processo e nos limites por ele impostos. Essa importante diferenciação justifica, inclusive, o fato de o Supremo Tribunal Federal haver facultado apenas ao autor, aos requeridos e aos interessados a indicação de especialistas para falarem a respeito da questão de fato subjacente à ADI 3510. Do contrário, tendo em vista a indiscutível importância do tema de fundo constante da impugnação, centenas de expertos poderiam solicitar como de fato solicitaram a sua habilitação para falar na referida audiência pública. Averbe-se que a fixação da data de realização da audiência pública em foco também desencadeou um processo de forte mobilização de vários setores do Supremo Tribunal Federal. Sem demora, a Secretaria Judiciária tratou de encaminhar memorandos ao Diretor Geral, ao Secretário das Sessões, ao Secretário de Tecnologia da Informação, ao Chefe do Cerimonial, ao Secretário de Comunicação Social, ao Secretário de Serviços Integrados de Saúde, enfim, a todos os setores envolvidos, direta ou indiretamente, com a realização do evento público. Esses expedientes tinham o objetivo de informar os responsáveis de cada um desses setores sobre a data de realização da audiência, bem como solicitar a adoção das medidas administrativas cabíveis para concretizar o evento. Como salientado anteriormente, a omissão do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal no trato da matéria fez com que o relator do feito, antes mesmo de iniciar a audiência, apresentasse algumas diretrizes de cunho procedimental que balizariam os trabalhos a serem realizados 11. Nesse sentido, fora antecipadamente esclarecido que cada bloco de especialista disporia de uma hora e trinta minutos no turno da manhã e mais duas horas no turno vespertino para a exposição sobre a matéria de fato, contida na ação direta de inconstitucionalidade, sendo que a utilização desse tempo seria livremente divido entre integrantes de cada bloco 12. Dentro do limite temporal estabelecido pelos próprios especialistas, deveriam eles se limitar ao tema objeto da audiência, não podendo, durante a sua exposição, incidir em provocações ou atingir a honra dos demais expositores, vale dizer, em nenhuma hipótese seria admitido o confronto entre os expositores. Por outro lado, não se admitiu nenhuma manifestação da assistência, sendo que o autor de prática perturbadora da ordem dos trabalhos seria advertido e até compelido, se necessário, a se retirar do recinto. Isso, lógico, para se evitar desdobramentos de cunho ético-religioso. 11 Diretrizes procedimentais, essas, que surgiram a partir da aplicação analógica daqueles dispositivos do RI/CD que se compatibilizam com as audiências públicas realizadas no âmbito do Supremo Tribunal Federal. 12 A discussão travada na ADI 3510 possibilitou a alocação dos especialistas em dois grandes blocos. O bloco 1 composto por especialistas indicados pelo autor e pela CNBB, e o bloco 2 integrado por expertos indicados pelos requeridos e os demais amici curiae. A seu turno, a ordem de apresentação dos trabalhos foi definida por sorteio realizado, pelo relator, no início da audiência pública. Valendo acrescentar que o bloco de especialistas que por último se apresentou no turno matutino iniciou os trabalhos no turno da tarde. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 45

Já foi dito linha atrás que a audiência pública prevista no 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99 tem por objetivo oferecer ao Tribunal o maior número de elementos técnicos, a fim de que a decisão a ser tomada se dê com pleno conhecimento dos diversos aspectos envolvidos na questão. Logo, não é se estranhar que eventuais esclarecimentos sobre as exposições só poderiam partir dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não tendo sido admitindo, pois, a formulação de questionamentos pelos demais presentes. A participação do público, portanto, ficou assegurada pela atuação numericamente equilibrada dos especialistas, como, aliás, prevê o 1º do art. 256 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados 13. Também em atendimento ao que dispõe o RI/CD não foram admitidas a formulação de Questões de Ordem, nem o aparteamento dos expositores ( 2º do art 256 do RI/CD). O desenrolar dos trabalhos durou um dia inteiro e, ao final da sessão, percebeu-se que o objetivo da audiência foi integralmente atingido: por intermédio dos especialistas ali ouvidos, a sociedade civil organizada teve a possibilidade de influir na decisão a ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal 14. Além disso, o debate público que se instaurou pôde ser assistido por aproximadamente trezentas pessoas que estiveram presentes à sessão pública 15. Isso sem considerar aqueles que acompanharam a as discussões travadas na audiência pública pela cobertura ao vivo da TV Justiça e da Rádio Justiça 16. 4 Conclusão A realização da audiência pública para a instrução da ADI 3510 é um marco na história do controle de constitucionalidade no Brasil. É que, além de haver sido a primeira sessão pública para oitiva de especialistas da história do Supremo Tribunal Federal, ela teve a virtude de explicitar um processo evolutivo que, ainda que timidamente, já se fazia notar: a mais alta Corte do país caminha, a passos firmes e largos, para uma maior abertura do processo de interpretação constitucional. Ao permitir que a sociedade civil organizada participasse ativamente do processo de controle abstrato de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal terminou por ampliar a base de legitimação da sua futura decisão acerca da validade constitucional do art. 5 e parágrafos da Lei de Biossegurança. Sim, porque, tendo assegurado a participação qualitativa de segmentos da sociedade civil, a decisão final a ser tomada pelo Tribunal já não poderá mais ser encarada como um ato isolado dos seus integrantes, porquanto do processo de elaboração desse ato decisório participaram os especialistas ouvidos na tantas vezes referida audiência pública. À derradeira, impende reconhecer que a realização da audiência pública para o esclarecimento das questões de fato subjacentes à impugnação do artigo 5 e parágrafos da Lei n 11.105/05 homenageou a democracia direta, a qual, nos dizeres do relator da ADI 3510, significa tirar o povo da platéia e colocá-lo no palco das decisões que lhe digam 13 Art. 256. 1º. Na hipótese de haver defensores e opositores relativamente à matéria objeto de exame, a Comissão procederá de forma que possibilite a audiência das diversas correntes de opinião. 14 Da reunião da audiência pública lavrou-se uma ata que deverá ser encartada nos autos da ação direta de inconstitucionalidade, facultando-se o fornecimento de cópia aos interessados (parágrafo único do art. 258 do RI/CD). 15 Antevendo a possibilidade de preenchimento de todos os assentos da 1ª Turma, foi instalado no auditório da 2ª Turma um telão para exibição, em tempo real, da audiência pública. 16 http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?codigo=229447&tip=un&param=, acessado em 19.04.2007. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 46

respeito. O povo deixando de ser passivo espectador para ser um ativo condutor do seu próprio destino 17. Abstract: The present assay aims to analyze, even if in brief lines, the main aspects that justified the first public hearing in Federal Supreme Court history. Moreover, the work intends to show how the highest Court of Justice of the country reached each stage until the effective use of one of the democratic instruments in constitutional control process, established by Law # 9,868 of 10 of November of 1999. Keywords: Supreme Federal Court; hearing public Referências BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 260p. BRASIL. Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm>. Acesso em: 17 abr. 2007. BRASIL. Lei n 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do 1 o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança PNB, revoga a Lei n o 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória n o 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5 o, 6 o, 7 o, 8 o, 9 o, 10 e 16 da Lei n o 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm>. Acesso em: 17 abr. 2007. BRASIL. Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: < http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao/reginterno.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2007. BUENO FILHO, Edgar Silveira. Amicus Curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 14, jun./ago., 2002. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1998. 1.414p. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003. 176p. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: RT, 2004. 475p. 17 Trecho da entrevista concedida pelo Min. Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, no Programa Fórum, exibido pela TV Justiça. Disponível em: http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?codigo=228986&tip=un&param=. Acesso em: 17 abr. 2007. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 47

HABËRLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição / Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002. 55p. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 1998. 478p.. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 446p. Revista Jurídica http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm Artigo recebido em 30/04/2007 e aceito para publicação em 31/05/2007 A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito. Os originais serão submetidos à avaliação dos especialistas, profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados. Todos os artigos serão acompanhados de uma autorização expressa do autor, enviada pelo correio eletrônico, juntamente com o texto original. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.41-48, abr./maio, 2007 48