VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES *



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Transcrição:

MARTA SANTOS PAIS Vice-Presidente do Comité de Coordenação do Projecto Políticas da Infância do Conselho da Europa Relatora do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES * * Seminário organizado, em 18 de Março de 1994, pela Universidade Católica, em colaboração com a Secretaria de Estado da Justiça, a Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres e o Clube Seroptimista Internacional de Lisboa.

Documentação e Direito Comparado, n. os 73/74 1998 1. O seminário de hoje aborda a temática dos direitos humanos e, de forma algo simbólica e paradoxal, enquadra neste domínio a questão da violência contra as mulheres. A aparente conciliação de dois pólos contraditórios, ou seja, entre o que é o conjunto dos direitos e liberdades fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, e o que constitui justamente um paradigma de violação desses mesmos direitos, permite evidenciar a constante dialéctica entre o sistema universal de protecção dos direitos humanos e a persistência de situações de desrespeito de tais direitos, reflectindo o debate vivo entre um ideal que a comunidade internacional se comprometeu a garantir, e o mundo real que, distante de tal ideal, apela ao nosso inconformismo e motiva a intervenção pela defesa dos direitos fundamentais. O simbolismo deste aparente paradoxo não só sublinha a gravidade das situações de violência contra as mulheres, no seio da família, na esfera laboral ou no quadro da sua participação na vida pública, como revela a necessidade de adopção urgente de uma acção sistemática e concertada para combater este flagelo e, simultaneamente, garantir o gozo efectivo dos direitos humanos por todas as mulheres sem distinção alguma. 2. É interessante constatar que a questão da violência contra as mulheres tem merecido nos últimos anos uma atenção muito especial por parte de inúmeros Governos, bem como por organismos internacionais, como é o caso do Conselho da Europa ou das Nações Unidas. E esta reacção, que marca fundamentalmente a década de noventa, suscita um sentimento misto de surpresa e desapontamento. Surpresa porque o interesse agora manifestado pode levar a crer que a violência contra a mulher é uma realidade recente, eventualmente provocada 59

pelas alterações sociais que caracterizam os dias de hoje, a que não será alheia a crescente participação da mulher no mundo do trabalho, bem como pela degradação da situação económica enfrentada pela generalidade dos países. E, no entanto, a violência contra a mulher é reconhecida como uma manifestação da desigualdade histórica da relação de poder entre sexos, da tradicional concepção de subordinação e de inferioridade da mulher face ao homem, em suma como uma forma de discriminação. Sentimento, também, de um certo desapontamento face à ineficácia ou insuficiência das acções desenvolvidas em favor da situação da mulher, que explicam a persistência de violações dos seus direitos. 3. Apesar disso, e para me situar de forma muito especial no quadro das Nações Unidas, já em 1945 a Carta da Organização, adoptada em S. Francisco, reafirmava no preâmulo a sua fé na dignidade do valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, englobando, entre os três objectivos essenciais da sua acção, a promoção e o respeito pelos direitos fundamentais para todos, sem distinção alguma, inclusive com fundamento no sexo. Por outro lado, desde 1946 foi instituída, como Comissão Técnica do Conselho Económico e Social, a Comissão do Estatuto da Mulher, composta de representantes de Estados, cabendo-lhe formular recomendações e preparar relatórios tendentes a promover os direitos da mulher e o seu estatuto na vida familiar e social, nos domínios político, económico, cívico e pedagógico. E a riqueza da sua acção é inegável! Bastará recordar a preparação de instrumentos jurídicos fundamentais, como a Declaração da Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, de 1967, ou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, ratificada por Portugal, que instituiu um Comité de Peritos independentes o Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, com a essencial função de apreciar os progressos verificados pelos Estados parte na aplicação da referida Convenção, à luz de relatórios periódicos apresentados para esse efeito. Foi também a Comissão do Estatuto da Mulher o berço de importantes marcos na história da defesa e protecção dos direitos fundamentais da mulher como a proclamação de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, da subsequente Década das Nações Unidas em favor das Mulheres ou a organização das Conferências Mundiais sobre a Mulher (México em 1975, Copenhaga 60

Documentação e Direito Comparado, n. os 73/74 1998 em 1980 e Nairobi em 1985) de que presentemente se prepara a quarta, a realizar em Pequim em 1995. No quadro desta importante acção, tem sido naturalmente reafirmada a relevância da adopção de medidas, a nível nacional, regional e internacional, tendentes a garantir uma igualdade efectiva entre os direitos da mulher e do homem, bem como a combater a discriminação fundada no sexo. Do mesmo modo se insiste na necessidade de sensibilizar a opinião pública em geral e as autoridades governamentais em particular para o facto de a marginalização, a exploração económica e a opressão de que a mulher é vítima se encontrarem profundamente ligadas a uma situação crónica de desigualdade e injustiça, tanto no quadro familiar, como comunitário, nacional, regional ou internacional. Para fazer face a tal situação, sugere-se designadamente o lançamento de campanhas de informação, educação e formação, e sublinha-se a importância de instituir um sistema de assistência às vítimas. 4. Importante é sublinhar que a discriminação sexual, de facto e de jure, é identificada como o fundamental obstáculo à participação activa da mulher, designadamente na vida social e comunitária e no processo de desenvolvimento, bem como a causa essencial da perpetuação da violação dos seus direitos. E deste modo se reconhece a urgência em identificar as práticas e atitudes tradicionais que constituem paradigma de tais violações crimes violentos, crimes sexuais, danos psíquicos ou físicos atentatórios da dignidade humana da mulher, como as situações de mutilação genital feminina, incineração por viuvez ou casamento forçado. Cedo se constata um relacionamento claro entre os conceitos de discriminação e de violência contra a mulher. Mas só no início da década de 90 esta realidade merece uma atenção privilegiada e ganha autonomia, constituindo doravante o essencial domínio motivador da acção das Nações Unidas na defesa dos direitos da mulher. Assim é que o VIII Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes aprova, em Setembro de 1990, uma Resolução sobre a Violência Doméstica; 61

em 1992, o Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres adopta uma Recomendação sobre Violência contra as Mulheres, no quadro da aplicação da Convenção de 1979 (Recomendação 19); em Junho de 1993, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, segunda na história das Nações Unidas, sublinha a importância de estudar e eliminar as situações de violência contra as Mulheres, que qualifica de contrárias à dignidade e ao valor da pessoa humana (parágrafo 18); em Dezembro de 1993, a assembleia geral aprova, sob proposta inicial da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, uma Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (Resolução 48/104); e no início deste mês a Comissão de Direitos Humanos, reunida em Genebra, decide estabelecer um Relator Especial sobre violência contra as Mulheres, incluindo as suas causas e consequências (Resolução 1994/45). 5. Este número impressionante de decisões e de medidas adoptadas por tão distintas instâncias das Nações Unidas, é revelador de uma indiscutível convergência de interesses e evidencia a força inegável deste movimento contra a violência e pelo respeito da dignidade da mulher. Poder-se-ia talvez perguntar se se não trata de um simples desejo de protagonismo, num domínio pacífico que conta com a adesão de Governos, associações privadas e organismos internacionais... Mas a atitude de consenso que rodeou a sua aceitação significa igualmente que é inquestionável a validade desta mobilização, incompatível por isso, com passividade ou indiferença futura face à imperatividade de dar seguimento aos textos adoptados e mecanismos instituídos. O momento é assim de entusiasmo mas sobretudo de acção! Além disso, como o sublinhou a Conferência Mundial de Direitos Humanos, há naturalmente que garantir uma coordenação das actividades no seio do sistema das Nações Unidas, neste campo dos direitos e do estatuto da mulher. Assim, se procurará impedir a duplicação de esforços, a dispersão de actividades ou a inutilidade de programas. Justamente neste sentido, o Centro dos Direitos do Homem, em Genebra, acaba de estabelecer um núcleo no Gabinete do Secretário-Geral Adjunto para os Direitos do Homem, especificamente para assegurar a articulação das políticas preconizadas pelos diferentes organismos e mecanismos competentes neste domínio dos direitos da mulher. 62

Documentação e Direito Comparado, n. os 73/74 1998 6. Valerá igualmente a pena ponderar a razão por que se terá julgado necessário, ou conveniente, autonomizar a questão da violência contra as mulheres, quando, desde a adopção da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, se reconhecia de forma inequívoca o valor essencial do direito a não ser sujeito a tortura, a outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Um direito inderrogável e que como tal deve ser protegido em todas as circunstâncias, mesmo em situações de excepção. Não será de subsumir a noção de violência no conceito internacionalmente definido de tortura, ou pelo menos de pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante? Nesse sentido poderia mesmo argumentar-se que o próprio Relator Especial contra a Tortura, da Comissão dos Direitos do Homem, abordava já situações de violação ou agressão sexual contra as mulheres no quadro do seu mandato... Realidades que agora constituirão objecto de apreciação pelo novo Relator Especial sobre Violência contra as Mulheres. Muito embora esta questão não tenha sido aparentemente objecto de profundo debate, importa antes de mais sublinhar que o direito de a mulher não ser objecto de violência não pode ser visto em alternativa ao direito fundamental de não se ser sujeito a actos de tortura, penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Este constitui um direito inalienável e inerente à dignidade da pessoa humana. Mas a consideração autónoma da violência permite abranger, de forma inequívoca, um espaço até aqui à primeira vista excluído do âmbito da definição do conceito de tortura, pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante o do domínio da vida privada e designadamente dos actos praticados por actores privados no seio da família ou na esfera laboral. E deste modo, um campo tradicionalmente refugiado na área privada e escondido num silêncio impenetrável, passa a constituir um tema de debate público, exigindo uma intervenção decidida das autoridades governamentais. 7. Encontramo-nos hoje, assim, perante um quadro de referência normativa, inspirador da acção futura, delineado tanto de forma programática e não imperativa pela Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (de Dezembro último), como através de orientações específicas para os Estados parte na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, nos termos da Recomendação adoptada em 1992 pelo Comité instituído por aquela Convenção. 63

Por outro lado, o estabelecimento recente do Relator Especial da Comissão de Direitos Humanos decerto contribuirá para apresentar uma visão da situação existente no mundo no domínio da violência contra as mulheres, identificando causas e efeitos dessa mesma violência, propondo recomendações de ordem genérica para prevenir, investigar, punir, ressarcir e reabilitar situações de violência e manifestando de forma clara que se trata de um tema de direitos humanos. Mas neste contexto prometedor há um desafio de fundamental importância que se coloca a todos nós a falta de informação, de pesquisa, de dados precisos, fiáveis ou actualizados. O conhecimento insuficiente da realidade ou a cortina de silêncio que sobre aquela se forma, leva mesmo a que se defenda, por vezes com evidente intuito político, a inexistência de situações de violência contra a mulher em determinadas sociedades bastaria pensar em casos de infanticídio de raparigas em certos países asiáticos, ou na invisível situação de jovens empregadas domésticas, afastadas da família e do mundo, desconhecedoras do valor de ter direitos, sujeitas, sem controlo, à exploração económica quando não mesmo a abusos sexuais. E no fundo, o desconhecimento da realidade e o silêncio construído sobre ela são a primeira forma de violência contra a mulher a violência calada. Que impede o estudo aprofundado, que induz em conclusões incorrectas, que perpetua a própria tolerância face à violência. 8. Vejamos, a título de exemplo, o que se passa no quadro familiar. Trata-se naturalmente de uma área pouco conhecida, onde a barreira da privacidade tem limitado ou impedido a pesquisa. A reacção tradicional é a de negação pura da existência do problema, temendo-se que o seu simples reconhecimento manifeste um atentado à integridade familiar. As estatísticas existentes são deste modo escassas. Mas mesmo as que existem, fundam-se em relatórios de incidentes apresentados pela polícia, recolhidos em hospitais ou recenseados através de linhas de telefone SOS. E se é certo que permitem concluir pela existência de situações de violência, a verdade é que há uma evidente sub-representação do problema. Com efeito, como se refere num estudo recente das Nações Unidas, as vítimas sentem uma evidente relutância em queixar-se porque hesitam em expor o facto de terem sido violadas, porque temem vingança, porque atribuem um valor primordial à lealdade familiar, porque simplesmente subvaloram a 64

Documentação e Direito Comparado, n. os 73/74 1998 violência de que foram vítimas, envolvendo-se num processo crescente de culpabilização, humilhação e degradação. Por outro lado, os dados coligidos, por se basearem fundamentalmente em situações trazidas ao conhecimento das autoridades oficiais, retratam em particular a vivência de grupos sociais com menor capacidade para se protegerem do escrutínio público. É assim que as casas-refúgio para situações de emergência ou os hospitais públicos, onde os dados são recolhidos, com maior frequência são procurados por famílias mais desfavorecidas as quais, por evidentes carências económicas ou até por insuficiente informação, não têm capacidade de se dirigir a centros onde os registos não estejam ao alcance dos investigadores. A falta de dados não pode assim levar a concluir-se que a violência é apanágio exclusivo de um determinado grupo económico, social ou cultural. Infelizmente, a violência contra a mulher não conhece fronteiras! 9. É justamente com esta preocupação que os recentes textos aprovados pelas Nações Unidas enfatizam a necessidade de reunir informação e promover o estudo sobre a situação da mulher e, de forma muito particular, sobre a violência contra ela perpetrada. Indicadores e dados desagregados em razão do sexo têm assim sido solicitados: aos comités convencionais sobre direitos civis e políticos, direitos económicos e sociais, tortura, direitos da criança; aos mecanismos de protecção e defesa dos direitos humanos relatores especiais e grupos de trabalho sobre tortura, desaparecimentos, detenção arbitrária, intolerância religiosa, etc; bem como aos Governos, na informação a enviar às Nações Unidas, relativamente à situação de jure e de facto existente na sua jurisdição. 10. Como acima se sublinhava, o momento presente é de entusiasmo mas deve ser igualmente de acção. Encorajados pelos passos dados no seio das Nações Unidas, há que beneficiar do quadro orientador que nos é apresentado, considerando designadamente a elaboração de um plano de acção nacional para a promoção e protecção das mulheres contra a violência, em estreita colaboração entre autoridades oficiais e organizações não governamentais. 65

Um tal plano deverá naturalmente ter uma natureza multidisciplinar, garantir a afectação de recursos suficientes para pôr em prática os necessários programas e políticas e cobrir, de forma global, os domínios da prevenção (através de campanhas de informação, sensibilização e formação de grupos profissionais especialmente envolvidos neste domínio); da protecção, incluindo formas adequadas de queixa, investigação e reparação; e ainda de assistência e reabilitação das vítimas. Permitam-me, finalmente, sublinhar que, em meu entender, a eliminação da violência e da discriminação contra a mulher, bem como o desrespeito pelos seus direitos, só serão efectivamente alcançados, quando e se a promoção e a sensibilização para os direitos humanos se iniciar numa tenra idade. A acção junto das crianças, e em especial da rapariga, será decerto um meio eficaz de dar uma nova dimensão e garantir um sucesso mais profundo às campanhas de sensibilização em favor dos direitos e do estatuto da mulher. A meu ver, só iniciando uma estratégia com a rapariga, considerada não na simples condição de filha, futura esposa ou jovem mãe, mas como uma pessoa com individualidade própria e inerentes direitos e liberdades fundamentais, se encontrará uma resposta adequada e duradoura para os abusos dos direitos da mulher, tema para cuja reflexão nos encontramos hoje aqui reunidos. 66