NOBRE BASTARDIA DO FEMININO: NO CORPO SONHADO, O UMBIGO Nelly Lara de Brito 1 O corpo humano não está dado, é uma construção atravessada pela linguagem, como coloca Freud (1905/2006) ao isolar zonas erógenas. É pela via dos ideais que se formam imagens para o corpo, o qual perde uma libra de carne ao entrar na língua-mãe. Esta coisa perdida jaz desconhecida, deixando apenas a falta de um objeto sem nome. Ao sujeito falta, então, este significante: eis a nobre bastardia referida por Lacan (1958/1998a) ao abordá-lo como barrado. Os homens capturam um recurso imaginário para rastrear o objeto desejado, fazendo do atributo fálico a prova material de sua existência numa linhagem inscrita no masculino. Já à mulher, nada resta além do semblante num rosto sempre mascarado. O feminino, como lugar bastardo por excelência, é nãotodo: existe, mas sem nome (LACAN, 1972-3/2008). Recorrendo ao desejo de outra coisa para dar consistência a esta ex-sistência, o sujeito feminino articula um corpo sonhado, metáfora de desejo do desejo do Outro e metonímia da faltaa-ser, esbarrando sempre no umbigo do real sem nome: corpo via régia do inconsciente. A paixão do sobre-nome e o baile de máscaras Há na espécie humana, assim como nos demais animais, uma distinção entre macho e fêmea, que tem suporte biológico nos genes, nos hormônios, nos gametas, na anatomia. Isso é inegável. Porém, essa diferença, que concerne à finalidade reprodutiva, não pode ser equiparada no homem à dos demais animais. No ser humano, não há a prevalência do cio como fator imprescindível ao coito e, desse modo, não se pode 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aluna do Curso de Especialização em Psicanálise e Saúde Mental do Programa de Pós- Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da Profª Heloisa Caldas.
formalizar um estímulo único, instintual, que decida pela presença ou ausência de efetuação da cópula. Seria, então, pertinente pensar que a distinção entre macho e fêmea determina a existência de dois lugares sexuais com funções definidas, a saber, aqueles aos quais denominamos homem e mulher? Apesar de atribuir importância significativa aos desdobramentos inconscientes da presença ou ausência de pênis, Freud, em diversos pontos, deixa questões instransponíveis acerca do tema da diferença sexual. Aliás, poderíamos apontar, quanto à distinção entre masculino e feminino, a presença de um paradoxo que atravessa toda sua obra. Na mesma época em que correlacionava masculinidade à atividade e feminilidade à passividade (1908/2006a), ele apontava uma disposição bissexual nos seres humanos (1908/2006b). Posteriormente, ao mesmo tempo em que afirmou a anatomia como destino, explicitou a presença de traços masculinos e femininos em indivíduos de ambos os sexos, enfatizando que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto (1925/2006, p. 286). No seminário 20, Lacan enfatiza: o homem, uma mulher, eu disse da última vez, não são nada mais que significantes. É daí, do dizer enquanto encarnação distinta do sexo, que eles recebem sua função (1972-3/2008, p. 45). Sejam construções teóricas ou a encarnação distinta do sexo, as noções de homem e mulher, como significantes, representações de ideias (Vorstellungsrepräsentanz), encerram a prova mesma da impossibilidade de ser o que representam. Longe de demonstrarem uma equivalência entre a palavra e a coisa, os significantes carregam a marca de um limite entre o corpo e a linguagem. Em outras palavras, como aponta Caldas (2003, p. 76): paradoxalmente, ainda que a linguagem no discurso não situe o sexo, este só aparece e se escoa sob condições de discurso, e é deste fracasso mesmo, desses pontos de fratura que o discurso se nutre para fazer sexo.
Na escuta de seus pacientes, Freud observou a condição chave para que as falas trouxessem ideias inconscientes em suas entrelinhas: é que eles sofreram perdas irreversíveis no corpo, a partir de exigências impostas pela cultura, de tal sorte traumáticas que isolaram um certo impossível de reaver, razão pela qual o objeto final da pulsão sexual nunca mais será o objeto original, mas apenas um sub-rogado do mesmo (FREUD, 1912/2006, p. 194). Lacan retoma tal ponto ao referir que o ser, para humanizar-se, isto é, para efetuar sua entrada na linguagem, deve pagar com uma libra de carne, pois, deste modo, recebe, sobre o caos que acontece em seu corpo, a insígnia fálica capaz de aplacá-lo ao inscrever-lhe um nome, definindo a marca de ferro do significante no ombro do sujeito que fala (LACAN, 1958/1998a, p. 636). Desse modo, temos que todos os sujeitos, uma vez divididos na linguagem, portam uma certa condição de bastardia, ausência radical de nominação, sem a qual os significantes não podem advir. Em outras palavras, os nomes só são forjados diante do inominável: eis a razão pela qual podemos aproximar o advento da linguagem do surgimento da noção de diferença sexual. Ora, se cunhamos um sem número de vocábulos, dialetos e línguas, é porque existe algo sobre o qual nada é possível dizer. Na tentativa de tocar esse real, fazemos um enorme esforço para acreditar que o proibido relativo ao sexual se resume ao que jaz desconhecido e impossível de articular. Percebemos, então, a organização do mundo entre o que possui significação e o que resta sem nome, divisão que mimetizamos, imaginariamente, ao atributo de presença ou ausência de pênis (LACAN, (1958/1998b). Dois polos se instituem assim: Um sexo o masculino, no qual todos estão seguros de possuírem em seus corpos um atributo de nome bastante conhecido, havendo submissão total à função fálica; e Outro sexo o feminino, guardião de um vazio que lhe confere o peso da nobre bastardia
que arrasta por caminhos pelos quais a submissão à ordem fálica é não toda (LACAN, 1972-3/2008). A descoberta freudiana do inconsciente, como reduto de um saber sobre o sexual, subverte a lógica de que a natureza determina a experiência. Com isso, temos a linguagem como precursora daquilo que se engendra de sentido aos acontecimentos, lógica que leva Lacan a dizer que o significante tem função ativa na determinação dos efeitos em que o siginificável aparece como sofrendo sua marca, tornando-se, através dessa paixão, o significado (1958/1998b, p. 695). Nesta paixão do significante vemos o inominável reluzindo além do véu, lançando aos falantes o destino de ocupar o lugar de homem ou de mulher, ao encarnarem aquele que se finca sobre-o-nome ou aquela que baila em par com seu segredo, sob as máscaras. O umbigo para além do falo... peau de sens Uma vez que é bastardo por excelência, pode-se dizer que o feminino dá corpo ao vazio. Mas, se é do vazio que se trata, de que corpo estamos falando? Partindo da lógica de que, na linguagem, o que se articulada é da ordem da demanda e aquilo que resta inapreensível se preserva na imaterialidade do desejo, propomos isolar o masculino na encarnação dos nomes que o falo atrai como um ímã e o feminino como lócus de um corpo sonhado: via régia para o inconsciente. Em seu primeiro exame sobre os processos oníricos, Freud (1900/2006, p. 556) afirma que o sonho é uma estrutura provida de sentido, apesar de sua forma e seu conteúdo aparentarem ser superficiais e absurdos. Ele afirma, em uma nota de rodapé de A Interpretação dos Sonhos, que, como uma carta cifrada, a inscrição onírica, quando
examinada de perto, perde sua primeira impressão de disparate e assume o aspecto de uma mensagem séria e inteligível (1900/2006, p.170). Freud nos adverte, no entanto, que a tarefa de interpretar sonhos não chega ao fim quando o analista alcança uma interpretação que faz sentido, afirmando que não é fácil ter uma concepção da abundância de cadeias inconscientes de pensamento ativas em nosso psiquismo, todas lutando por encontrar expressão (1900/2006, p. 555). Nesse sentido, Freud enfatiza que os sonhos, mesmo aqueles minuciosamente interpretados, guardam um trecho obscuro, um ponto de pensamentos oníricos emaranhados, sem sentido algum e, portanto, de impossível interpretação. Esse lugar em que mergulhamos no desconhecido, Freud (1900/2006) o descreveu como o umbigo do sonho. De um modo geral, podemos dizer que, se há um número incontável de interpretações possíveis para o sonho, é exatamente porque há um ponto enigmático que mobiliza a busca pelo engendramento de sentidos: falta que causa o desejo. Tal estrutura onírica pode ser aproximada da função do feminino, qual seja: dar corpo ao inominável. Gostaríamos de ilustrar tal aproximação, entre o umbigo do sonho e o inominável sustentado pelo feminino, a partir da proposta lacaniana acerca do esquema da nassa. De forma análoga à nassa, espécie de gaiola utilizada em atividades de pesca que se entreabre para a captura do peixe, Lacan (1964/1985) propõe que o inconsciente é constituído por um furo estrutural para o qual o objeto a aquele que, na condição de faltante, é considerado causa de desejo é sugado, funcionando como seu obturador. Nos batimentos ocasionais desta estrutura, escapam indícios do que há em seu interior. Pois bem, tais argumentos apontam para o fato de que isso que aparece nos batimentos do inconsciente, indicando que algo desconhecido lá se move em tramas complexas e silenciosas, é o desejo. Nas palavras de Freud (1900/2006, p. 557): é de
algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio. Existe algo, porém, que o recobre. Ora, posta a radical distância que há entre a existência de machos e fêmeas e as noções de masculino e feminino, propomos que as máscaras vestidas por A mulher desempenhariam a função de obturadores para esta brecha estrutural, tal como o objeto a no esquema da nassa. Nossa proposta é que, mesmo na contemporaneidade, quando se percebe a voraz tendência à falicização do corpo das mulheres de acordo com certos padrões culturais, ainda assim, resta algo que escapa acerca do corpo feminino. Isso porque tal corpo, tornado perfeito pelo acoplamento de atributos imaginários de poder, é um construto muito mais próximo ao que aqui se compreende como masculino, isto é, todo sujeito à ordem fálica. Dessa forma, podemos dizer que, numa lógica para além do horizonte fálico, o corpo feminino só se realiza enquanto sonhado, enquanto encarnação do objeto perdido que o sujeito, independente da anatomia, idealiza na fantasia para recobrir o irredutível de seu desejo. Trata-se, portanto, nesse corpo, assim como no sonho, de estabelecer um peu de sens, pouco de sentido, ao que deixa a desejar (LACAN, 1958/1998a). A partir daí, pode-se construir, na fantasia, um modo de re-cobrir o desencontro com o objeto, fazendo surgir algo que, assim como o texto em rebus das formações oníricas, vela e ao mesmo tempo desvela o impossível, tonando possível escrever outras palavras com as mesmas letras. Eis o que se tece como pele no feminino: a tentativa de dar corpo ao desejo, mantendo-o pulsante ao pé da letra, escapando entre os poros... peau de sens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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