Síndrome de apneia obstrutiva do sono e má progressão ponderal nos primeiros anos de vida

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0873-9781/13/44-3/122 Acta Pediátrica Portuguesa Sociedade Portuguesa de Pediatria Casuística Síndrome de apneia obstrutiva do sono e má progressão ponderal nos primeiros anos de vida Inês Nunes Vicente, Cândida Cancelinha, Maria Helena Estêvão, Mónica Oliva Consulta de Pediatria Geral, Hospital Pediátrico Carmona da Mota, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal Resumo Introdução: A síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) é frequentemente subvalorizada como causa de má progressão ponderal (MPP) na criança. O objetivo foi documentar a SAOS como causa de MPP nos primeiros anos de vida numa consulta de Pediatria Geral. Método: Análise retrospetiva dos processos clínicos das crianças com MPP e SAOS com idade inferior ou igual a três anos observadas desde janeiro 2006 a junho 2012. Resultados: Foram identificados onze casos, com idade média de dezanove meses. Todos apresentavam MPP, quatro desaceleração estatural e oito sinais clínicos de desnutrição. A roncopatia estava presente em todas as crianças, em nove havia noção de apneia do sono e em cinco respiração de predomínio oral. Ao exame objetivo, todas tinham hipertrofia adenoamigdalina, três hipertrofia dos cornetos e uma palato em ogiva. A hipótese de SAOS foi colocada na primeira consulta em cinco casos; nos restantes, houve um atraso médio de onze meses no diagnóstico. Quatro crianças foram submetidas a oximetria noturna, e sete estudo poligráfico do sono (EPS), dos quais cinco apresentavam SAOS de intensidade grave. Uma criança não foi sujeita a qualquer investigação. Em todas foi efetuado tratamento cirúrgico com melhoria clínica e recuperação do crescimento. Em cinco casos não houve resolução completa dos sintomas respiratórios, tendo o EPS sido repetido em quatro deles. Conclusão: Nos primeiros anos de vida, a SAOS deve ser considerada como uma das causas de MPP. O diagnóstico precoce é fundamental e obriga ao inquérito regular e dirigido dos hábitos do sono nas consultas de Saúde Infantil. Palavras-chave: Síndrome de apneia obstrutiva do sono, má progressão ponderal, criança pré-escolar Acta Pediatr Port 2013;44(3):122-26 Obstructive sleep apnea syndrome and failure to thrive in the first years of life Abstract Background: Obstructive sleep apnea syndrome (OSAS) is an often underestimated cause of failure to thrive in childhood. The aim is to document OSAS as a cause of failure to thrive during the first years of life in a paediatric outpatient consultation. Methods: Retrospective analysis of all children with failure to thrive and OSAS, with three or less years of age observed in a paediatric outpatient consultation from January 2006 to July 2012. Results: Eleven cases with a mean age of nineteen months were identified. Failure to thrive was present in all, four had height deceleration and eight of them signs of malnutrition. Snoring was present in all the children, there was parental perception of apnea during sleep in nine patients and five presented mouth breathing. On physical examination all had adenotonsillar hypertrophy, three turbinate hypertrophy and one ogival palate. OSAS was a first diagnosis in five cases; in the remaining, there was an average diagnostic delay of eleven months. Four children underwent nocturnal oximetry and seven polysomnography- five of these had severe OSAS. All children underwent surgical treatment, after which clinical improvement and growth recovery has occurred. In five cases, there was an incomplete resolution of respiratory symptoms and four of them repeated polysomnography. Conclusions: OSAS is a cause of failure to thrive that should be considered in the first years of life. Early diagnosis is essential and requires regular and addressed sleep screening in routine health care. Key words: Obstructive Sleep Apnea Syndrome, failure to thrive, preschool child Acta Pediatr Port 2013;44(3):122-26 Recebido: 17.05.2013 Aceite: 02.10.2013 Correspondência: Inês Nunes Vicente inesnunesvicente@gmail.com 122

Introdução A perturbação respiratória do sono (PRS) é um distúrbio respiratório cujo espetro clínico se estende desde o ressonar primário à síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) 1 consoante a gravidade da obstrução das vias aéreas, alteração do padrão do sono e ventilação. A prevalência da PRS varia, estimando-se que o ressonar primário possa afetar 3 a 12% das crianças, enquanto que a prevalência da SAOS varia entre 1 e 3% 2-4. A SAOS definida pela obstrução, parcial prolongada ou intermitente completa, das vias aéreas superiores (hipopneia ou apneia obstrutiva) 5, traduz-se clinicamente pela ausência ou diminuição do fluxo aéreo no nariz e boca apesar do esforço respiratório 6. A hipertrofia adenoamigdalina (HAA) é considerada a causa mais frequente na criança até à idade escolar, altura a partir da qual a obesidade (cuja prevalência tem vindo a aumentar) começa a ter um papel etiológico importante 7. Destacam-se ainda outros fatores de risco ou de agravamento como as anomalias craniofaciais, rinite alérgica/asma, doenças neuromusculares, idade inferior a um ano, malácia das vias aéreas, doença pulmonar crónica, drepanocitose, excesso de peso, exposição a fumo de tabaco e refluxo gastro-esofágico 1,8. A SAOS pode ocorrer em qualquer idade, mas o pico de maior incidência verifica-se na idade pré-escolar correspondendo ao período de maior desenvolvimento do tecido linfoide adenoamigdalino 1,2. Perante a suspeita clínica, o diagnóstico de SAOS baseia-se na recolha da história com exame físico completo, frequentemente complementada com exames auxiliares. O estudo poligráfico do sono (EPS) é considerado o exame de excelência no diagnóstico e avaliação da gravidade da SAOS 2,6. Contudo, tendo em conta a sua difícil acessibilidade, elevados custos e exigência técnica, a oximetria de pulso ou o registo em vídeo podem ser ferramentas de rastreio utéis 1,9. Porém, estes exames têm um valor preditivo negativo baixo, pelo que perante a negatividade ou inconclusão dos mesmos, a investigação deverá ser prosseguida 1,2. A dificuldade no acesso a estes exames tem levado ao desenvolvimento de métodos de diagnóstico simplificados e a algoritmos de orientação clínica 8,10,11. A SAOS não tratada pode estar associada a complicações importantes nomeadamente a nível do crescimento - má progressão ponderal (MPP), comportamental, neurocognitivo, cardiovascular e metabólico 1,2,7. Embora a associação de MPP e SAOS já tenha sido mais frequente, estima-se que, a MPP possa afetar até 5% das crianças com SAOS 7. Entre as consequências neurocognitivas, destacam-se alterações do comportamento, hiperatividade, défice de atenção, hipersonolência e dificuldades de aprendizagem 7,12, particularmente deletérias num período de aquisições como é a infância. A adenoamigdalectomia é considerada a opção terapêutica de primeira linha 1,2,13, mas nem sempre é totalmente curativa. Num estudo recente, apenas 27,2% das crianças com SAOS evidenciaram ausência de alterações no EPS após a cirurgia 14. Contudo, no que respeita ao crescimento, encontra-se bem documentada a recuperação do mesmo após a correção cirúrgica 15,16,17. O objetivo do presente estudo é estabelecer a correlação entre SAOS e MPP nos primeiros três anos de vida, em crianças seguidas numa consulta de Pediatria Geral, e caracterizar o seguimento e evolução das crianças identificadas. Material e métodos Efetuou-se uma análise retrospetiva e descritiva dos processos clínicos das crianças com idade igual ou inferior a três anos, com os diagnósticos de MPP e SAOS, observadas numa consulta de Pediatria Geral, no período decorrido entre janeiro de 2006 e junho de 2012. Foi considerada MPP todo o cruzamento de, pelo menos, dois percentis de peso. Outras etiologias de MPP, de acordo com a clínica que a criança apresentava, tinham sido previamente excluídas. O diagnóstico de SAOS resultou da conjugação da história clínica e exames complementares de diagnóstico (oximetria noturna e/ou EPS). As variáveis estudadas incluíram o sexo, idade, presença de sintomas ou sinais sugestivos de SAOS (roncopatia, apneia e estertor durante o sono, hipersudorese noturna, sono fragmentado, hiperatividade diurna/sonolência, irritabilidade e crescimento estato-ponderal). Em relação ao exame objetivo, foi avaliada a presença de sinais de desnutrição, HAA, hipertrofia dos cornetos nasais, dismorfismos crânio-oro-faciais e respiração de predomínio oral. Foram igualmente registados os exames complementares de diagnóstico efetuados, tipo de tratamento instituído, evolução do crescimento e recidivas de SAOS. Os critérios de diagnóstico de SAOS utilizados no EPS basearam-se no índice de apneia-hipopneia (IAH): ligeiro IAH 1-4, médio 5-10, grave>10. Os critérios de diagnóstico utilizados na oximetria foram baseados na classificação de McGill 18. Para análise estatística da variável quantitativa peso antes e após o tratamento foi aplicado o teste de Wilcoxon, utilizando o software IBM SPSS Statistics versão 21 para Mac (Nova Iorque, Estados Unidos da América). O limiar considerado para a significância estatística foi p<0.05. Resultados Foram identificadas onze crianças com SAOS e MPP que representaram 2,7% das crianças observadas na consulta por MPP durante o período de realização do estudo. Nove crianças pertenciam ao sexo masculino e duas ao sexo feminino. A idade variou entre oito e 35 meses, com uma média de dezanove meses (Figura 1). Relativamente à clínica de SAOS, em todos era referida roncopatia, em nove noção parental de apneia, em sete sudorese noturna, em três estertor e em três sono fragmentado. Uma criança apresentava comportamento hiperativo e em quatro casos verificava-se também desaceleração estatural (cruzamento de um percentil). Seis tinham história de infeções respiratórias altas recorrentes e cinco asma/pieira. Ao exame objetivo, constatou-se HAA em todas as crianças. Oito crianças apresentavam sinais de desnutrição, cinco respiração de predomínio oral, três hipertrofia dos cornetos e uma palato em ogiva. 123

hipertrofia adenoamigdalina, e a colapsibilidade da via aérea superior que ocorre durante o sono (sobretudo em sono REM) condicionam o aumento da pressão intraluminal negativa e um maior trabalho dos músculos dilatadores da faringe, a fim de manter o fluxo áereo. Este acréscimo de trabalho respiratório em crianças pequenas pode representar um importante consumo energético. a Figura 1. Distribuição das crianças com diagnóstico de MPP e SAOS por idade e sexo (n=11). A hipótese de SAOS como causa de MPP foi colocada na primeira consulta em cinco casos; nos restantes houve um atraso médio de diagnóstico de onze meses. Relativamente aos exames complementares de diagnóstico, quatro crianças realizaram oximetria noturna, sete EPS, e destes, cinco apresentavam SAOS de intensidade grave (Figuras 2). Três crianças efetuaram apenas oximetria noturna e outra, por apresentar clínica muito sugestiva de SAOS, não foi sujeita a qualquer investigação. Todas as crianças foram encaminhadas para consulta de otorrinolaringologia. Nove iniciaram tratamento com corticoide tópico nasal. Todas as crianças foram submetidas a adeno e/ ou amigdalectomia. b As crianças foram reavaliadas em consulta de Pediatria, em média, 12 (mínimo-8, máximo- 15) semanas após a cirurgia. Verificou-se melhoria das queixas respiratórias relatadas pelos pais em todos os casos e a recuperação ponderal foi positiva tendo a avaliação por Z-score sido estatisticamente significativa (p=0.04), ( Figura 3). Em quatro das cinco crianças com SAOS grave não houve resolução completa dos sintomas respiratórios após a cirurgia, pelo que repetiram EPS. Em todos houve melhoria da gravidade dos parâmetros polissonográficos pelo que foi prosseguida vigilância sob tratamento médico. Discussão A interferência da SAOS no crescimento, particularmente nas crianças mais pequenas, é um fenómeno há muito reconhecido e discutido na literatura. Após o tratamento cirúrgico ocorre habitualmente aumento de peso, mesmo na criança obesa 19. Na base da perturbação do crescimento poderão estar várias hipóteses: 1) maior consumo energético por aumento do trabalho respiratório; 2) hipoxémia; 3) acidose; 4) perturbação ou diminuição da secreção noturna da hormona de crescimento; 5) anorexia devido à alteração do olfato e 6) disfagia devido à HAA 12,20,21. De facto, no que respeita à fisiopatologia da SAOS, é conhecido que a patência das vias aéreas durante o sono resulta de um delicado equilíbrio para o qual contribuem vários fatores anatómicos e funcionais. A obstrução da naso e da orofaringe, condicionada pela Figura 2. a) Oximetria noturna de uma criança com quadro grave de SAOS - evidência de dessaturações frequentes e acentuadas; b) Estudo poligráfico do sono com evidência de frequentes episódios de dessaturação em sono REM (setas) concomitantes com a ocorrência de apneias (AO) e hipopneias (HIPO) obstrutivas. O estudo apresentado incluiu apenas crianças com idade igual ou inferior a três anos, tendo-se verificado predomínio do sexo masculino (82%), difícil de valorizar tendo em conta a reduzida dimensão da amostra. Todas as crianças apresentavam MPP, mas quatro evidenciavam igualmente desaceleração estatural, refletindo o impacto da cronicidade desta patologia no crescimento global. A HAA destacou-se como o principal fator responsável na totalidade das crianças, e a asma/pieira recorrente, presente em cinco casos, constituiu com grande probabilidade fator de 124

agravamento. Relativamente à sintomatologia, com exceção da roncopatia presente em todas as crianças, os sintomas mais frequentemente apontados foram a apneia e a sudorese noturna. Uma criança apresentava comportamento hiperativo. Refira-se que, contrariamente ao adulto e na criança mais velha com SAOS, em que predomina a sonolência diurna excessiva, na criança pequena, as alterações do comportamento (agitação, irritabilidade) são mais frequentes 7,12. Ao exame objetivo, mais de metade das crianças apresentava sinais de desnutrição. Este achado reforçou a necessidade de investigar outras hipóteses de diagnóstico e demonstra a importância da repercussão da SAOS sobre o ganho ponderal. a intervenção 2. Os doentes com SAOS ligeiro a moderado e resolução clínica completa dos sintomas, não necessitam de mais investigação a curto prazo 2. A repetição do EPS está indicada no caso de persistência de sintomas, SAOS grave prévio, ou complicado (ex: cor pulmonale) e no caso de doentes pertencentes a grupos de risco de recorrência de SAOS 2 (obesidade, anomalias craniofaciais, doenças neuromusculares, doenças sindromáticas, idade <1 ano, malácia das vias aéreas, doença pulmonar crónica, doença das células falciformes). No presente estudo, as quatro crianças que repetiram o EPS apresentavam resolução clínica incompleta e correspondiam a casos de SAOS grave. Apesar da recuperação do crescimento, mantinham alterações da respiração durante o sono. Não pertenciam, contudo, a nenhum grupo de risco. No grupo estudado, a gravidade das alterações residuais não atingiu critérios de passagem à fase terapêutica subsequente que consiste na aplicação de ventilação não invasiva com pressão positiva. É uma modalidade que tem demonstrado boa aceitabilidade e eficácia quando a cirurgia não se revela completamente eficaz, nos casos de SAOS sem indicação cirúrgica ou naqueles que aguardam um momento ótimo para a cirurgia 1. p<0.04 Figura 3- Evolução ponderal (z- score) das crianças estudadas. Pré-op (pré-operatório); 3M pós-op (3 meses de pós-operatório) O inquérito sistemático dos hábitos de sono na consulta de Pediatria Geral não impediu, em seis casos, um atraso médio de onze meses na evocação do diagnóstico. Este facto poderá resultar não só de dificuldades no interrogatório, como também de subvalorização dos sintomas pelos pais. No que respeita ao diagnóstico, a oximetria noturna foi solicitada em quatro casos e em três foi suficiente para estabelecer o diagnóstico de SAOS. Ainda assim, a confirmação da SAOS foi obtida na maioria das crianças por EPS. Todavia, segundo Mitchell, menos de 10% das crianças propostas para adenoamigdalectomia no contexto de roncopatia são submetidas a estudo do sono 22, ainda que referindo-se a crianças num grupo etário mais alargado. Quando a clínica é muito sugestiva e em situações muito selecionadas, pode prescindir-se da execução de exames complementares 8,10,15. Estes factos explicam que num dos casos não tenha sido realizada qualquer investigação. Todas as crianças submetidas a cirurgia melhoraram a clínica respiratória e recuperaram o seu crescimento ponderal. Estes resultados permitiram apontar a SAOS como responsável pela MPP nos casos estudados. Relativamente à terapêutica, apesar da adenoamigdalectomia ser a primeira opção, a corticoterapia intranasal pode ser considerada nos casos ligeiros 9 ou como terapêutica complementar 8. Esta solução foi utilizada em nove crianças, enquanto aguardavam a cirurgia. Recomenda-se uma reavaliação clínica 6 a 8 semanas após Conclusão Apesar da limitação imposta pela dimensão reduzida da amostra e do caráter retrospetivo da colheita de dados, confirmou-se que a SAOS é uma causa de MPP que deve ser considerada nos primeiros anos de vida. O diagnóstico precoce é fundamental uma vez que a cronicidade dos sintomas pode levar a perturbação do crescimento, sendo este recuperável após o tratamento. O inquérito regular e dirigido dos hábitos do sono da criança na consulta assume, desta forma, um papel essencial no rastreio da patologia respiratória do sono. Referências 1. Ferreira R, Estêvão MH. Roncopatia - recomendações de abordagem. Sociedade Portuguesa de Pediatria. Acta Pediatr Port 2011:42(4):184-6. 2. American Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline: Diagnosis and management of childhood obstructive sleep apnea syndrome. Pediatrics 2002;109:704-12. 3. Ali NJ, Pitson DJ, Stradling JR. 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