Uso de combustíveis gasosos em transporte urbano



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Transcrição:

COMBUSTÍVEIS AN P Uso de combustíveis gasosos em transporte urbano Dmitri D. Lobkov E-mail: lobkov@fem.unicamp.br Unicamp. Faculdade de Engenharia Mecânica Alexandre Sordi Unicamp. Faculdade de Engenharia Mecânica Newton P. Neves Jr. Unicamp. Instituto de Física - Laboratório de Hidrogênio Ennio Peres da Silva Unicamp. Instituto de Física - Laboratório de Hidrogênio Carlos Alberto B. Guimarães Unicamp. Faculdade de Engenharia Civil, Arq. e Urbanismo Depto de Geotecnia e Transportes. A energia é um insumo essencial para a humanidade e sua busca sempre mobilizou a sociedade. A princípio, e por um longo período, a energia serviu somente para satisfazer suas necessidades básicas, como cocção de alimentos, aquecimento e defesa. A partir da era industrial, no entanto, há três séculos apenas, intensificou-se a exploração dos recursos naturais para obtenção de combustíveis de maior densidade energética. Primeiramente, sólidos como o carvão, depois com os líquidos derivados do petróleo e, atualmente, presenciamos a ascensão do consumo de combustíveis gasosos como o gás natural, bem como de todas as mudanças estruturais e tecnológicas necessárias ao seu aproveitamento em larga escala. No futuro, poderemos vislumbrar a era da economia do hidrogênio que está sendo considerado o combustível do futuro por muitos especialistas, alicerçada principalmente no avanço tecnológico das células a combustível. Esses dispositivos eletroquímicos convertem a energia química do hidrogênio diretamente em eletricidade com eficiências superiores às das máquinas térmicas. Dessa forma, constituem uma opção muito atraente como fontes de força motriz para o setor de transporte. A economia do hidrogênio tem ainda um longo caminho para se desenvolver até fazer frente à consolidada economia do petróleo. A obtenção do hidrogênio é um dos grandes desafios dessa nova economia, uma vez que ele é um vetor energético, assim como a energia elétrica, e não se encontra disponível na natureza em quantidades significativas na forma gasosa. É necessário primeiramente retirá-lo dos compostos onde se encontra, quer sejam recursos fósseis ou renováveis. Tendo em vista o setor de transportes, dois combustíveis são fontes promissoras de hidrogênio: o gás natural e o etanol. O gás natural, que é um combustível fóssil e portanto não renovável, apresenta uma demanda crescente no mundo devido às suas vantagens técnicas e ambientais sobre os demais combustíveis fósseis. O etanol é um combustível renovável, cujo maior produtor mundial é o Brasil, onde já se dispõe de tecnologia e de um sistema de distribuição consolidado. Do ponto de vista ambiental, as vantagens deste combustível são inegáveis, o que o torna especialmente atraente para o setor de transporte. TRANSIÇÃO ENERGÉTICA Nota-se claramente a evolução dos combustíveis na história humana. Durante um longo período, da aurora das civilizações até a era industrial, predominou a fase sólida com a lenha que, posteriormente, foi substituída pelo carvão mineral. Essa substituição, ao invés de trazer benefícios para a preservação das florestas, acentuou a exploração indiscriminada da lenha, pois como a necessidade energética passou a ser suprida pelo minério, a lenha foi liberada para outros fins, como a marcenaria bélica e de produção. Grandes áreas florestais desapareceram por conta do desenvolvimento, para citar exemplos na Argentina, nas províncias de Córdoba e Santa Fé, e notadamente na Mata Atlântica brasileira. No período de 1920 a 1934, houve a mais rápida destruição da floresta atlântica, calculada em mais de três mil km 2 por ano. Na metade do século XX, apenas 18% do território do Estado de São Paulo ainda permaneciam com cobertura florestal, sendo que originalmente essa proporção era de 85%. Há pouco mais de um século, o aproveitamento do petróleo inaugurou a fase dos combustíveis líquidos. Os combustíveis fósseis são fontes de carbono e hidrogênio originadas a partir da fotossíntese ocorrida a milhares de anos atrás. Os animais utilizam os produtos e os subprodutos da fotossíntese a uma taxa próxima a que as plantas tornam a utilizar o gás carbônico e a água resultante do metabolismo animal. Mas, os veículos e as centrais termelétricas podem utilizar os produtos e subprodutos da fotossíntese a uma taxa muito superior ao processo de reciclagem da matéria. Dessa forma, a utilização dos combustíveis fósseis está indiretamente ligada à diminuição da importância atribuída ao processo da fotossíntese. O petróleo que deve ser transportado via oceano tem uma porcentagem que é descartada no próprio mar, cobrindo uma superfície marítima cada vez maior que impede o intercâmbio gasoso normal entre o mar e o ar. Atualmente, nota-se um empenho pela utilização do gás natural e futuramente do hidrogênio. Com isso, delineia-se no horizonte energético a fase gasosa. Essa evolução na utilização dos combustíveis 111 112

é citada por muitos autores como a descarbonização da economia, pois os combustíveis utilizados têm cadeias carbônicas cada vez menores. Essa tendência histórica tem sido demonstrada, por exemplo, por Hefner (2002). A figura 1 ilustra o gráfico de um modelo de transição para os combustíveis gasosos no mundo. Figura 1 Transição do sistema energético global: 1850-2150 Fonte: Adaptado de Hefner (2002). Há um consenso na comunidade mundial de que a era do petróleo barato está terminando. Os poços de petróleo que estão sendo descobertos fazem parte de bacias off-shore com custos crescentes de extração. As grandes bacias petrolíferas se encontram em países do Oriente Médio onde a instabilidade política não garante a tranqüilidade almejada para o Ocidente. Além disso, as questões ambientais associadas com a utilização dos combustíveis fósseis são motivos de preocupação da comunidade internacional. Esses fatores implicarão inevitavelmente em custos crescentes para a sociedade, cuja economia está baseada no petróleo. No Brasil, o setor de transporte no ano 2005 foi responsável por 48,5% de todo o consumo de derivados de petróleo. Esta dependência não poderá estender-se por um longo período, devido ao fato do petróleo ser um recurso natural finito. Ademais, sua queima gera a emissão de vários contaminantes atmosféricos, com forte impacto ambiental urbano, que a nível regional se manifesta como chuva ácida e a nível global produz a intensificação do efeito estufa. Assim é que o desenvolvimento de um modelo de transporte sustentável deve buscar a redução do consumo de combustíveis derivados de petróleo, o que permitirá reduzir substancialmente as emissões de contaminantes produzidos pela combustão, tais como hidrocarbonetos não queima- 113 dos (HC), monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOx) e de enxofre (SOx) e material particulado (MP). Uma das alternativas de substituição de combustíveis derivados do petróleo é o gás natural. Gás natural O consumo de gás natural vem aumentando continuamente no mundo. Isso se deve principalmente à abundância das reservas (em 2002 a reserva mundial situava-se em 156x10 9 m 3, o que significa em média, uma disponibilidade desse recurso durante 60 anos, calculada com níveis da atual produção), às propriedades intrínsecas desse combustível (combustão mais limpa, fácil manuseio, eficiência e flexibilidade) e, além disso, um preço competitivo frente aos demais combustíveis. O uso do gás traz benefícios ambientais, pois os efeitos da combustão sobre o ar e o clima são inferiores aos provocados pelos outros combustíveis fósseis (OECD/IEA, 2002). Na figura 2 mostra-se a evolução do consumo de gás natural, mundial e da América Latina, de 1970 a 2001, e a projeção do aumento de consumo até 2025. O consumo de gás na América Latina cresceu rapidamente, atingindo 3,9% do consumo mundial em 2001. Entre 1990 e 2001, o crescimento foi de 73% e, de acordo com a projeção, isso corresponderá a aproximadamente 7% do consumo mundial. De acordo com as estatísticas da EIA/DOE (2003), prevê-se que até o ano de 2025 o consumo de gás natural irá crescer mais de três vezes em relação a 2001, o que representará um desafio para a matriz energética de muitos países e em especial para Brasil. Figura 2 Consumo mundial e da América Latina de gás natural 1970-2025 Fonte: Adaptado de EIA/DOE (2003). 114

Ao contrário do petróleo que na sua maior porção é empregado no setor de transportes, o gás natural é utilizado atualmente principalmente em aplicações estacionárias. Nestas, incluem-se: a geração de eletricidade; o atendimento da demanda de calor residencial e comercial; a indústria petroquímica, como gás de processo; e a produção de vapor industrial. Nos países membros da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD), os setores residencial e comercial consomem a maior parte, ou seja, 35% do gás. Já o setor de transportes está incluso dentro do item Outros da tabela 1, que representa 11% do consumo total de gás. Tabela 1 Distribuição do consumo de gás natural por setor (2000) Total OECD Am. do Norte Pacífico Europa 106 m 3 % 106 m 3 % 106 m 3 % 106 m 3 % Residencial/comercial 1 483,85 35 263,70 34 28,28 23 191,87 40 Indústria 347,29 25 182,24 24 24,85 20 140,19 30 Geração de potência 2 391,78 29 210,81 27 66,86 53 114,11 24 Outros 3 145,80 11 113,38 15 5,53 4 28,91 6 Total 1.368,72 768,13 125,52 475,08 Fonte: EIA/DOE (2003). 1. Incluindo agricultura. 2. Incluindo co-geração. 3. Setor de energia, calor distrital e setor de transporte. Embora o gás natural ainda seja pouco empregado no setor de transportes no Brasil, há uma expectativa de uma maior participação futura. A emissão veicular de gases de efeito estufa e gases tóxicos é uma forte razão para isso. O aproveitamento do gás natural no transporte urbano é realizado através da combustão em motores de combustão interna, particularmente em motores com ignição por centelha (ciclo Otto). Também é considerada a utilização em motores de ignição por compressão (ciclo diesel), onde o gás natural é o combustível principal e o óleo diesel é utilizado para incendiar a mistura ar/gás, promovendo uma melhor queima e menor emissão de particulados e gases nocivos. As investigações científicas comprovaram que o uso de gás natural veicular no lugar da gasolina não é uma solução forçada, ao contrário, o gás natural no motor dos automóveis é queimado de forma mais completa que a gasolina e por essa razão a concentração de monóxido de carbono (CO) em emissões de gases de escape é várias vezes menor. Praticamente não haverá enxofre (SOx) porque o gás natural o contém em quantidades insignificantes. É certo que os motores a gasolina e os que usam como combustível o gás natural emitem hidrocarbonetos em quantidades quase iguais. Porém, para a saúde humana, o perigo não está apenas nas quantidades de hidrocarbonetos emitidos, mas, sim, nas diferentes espécies químicas presentes. Os motores a gasolina emitem substâncias com capacidade de acidificar-se rapidamente, enquanto os motores que usam gás natural emitem principalmente metano. Por ser menos propenso à reação de acidez, o metano emitido é considerado menos danoso que a emissão de gases de escape provenientes dos motores a gasolina. Uma análise da frota de veículos por tipo de combustível de três estados do Brasil demonstrou que a porcentagem de veículos utilizando gás natural ainda é muito pequena, quase insignificante. Em São Paulo 0,05% da frota, no Paraná 0,3% e no Rio de Janeiro 5,6% (Detran, 2004). Essa baixa porcentagem de veículos a gás natural se deve à escassez de estações de carregamento de gás comprimido e isto se deve à falta de consumidores, o que caracteriza um círculo vicioso. Como no Estado do Rio de Janeiro há mais postos disponibilizando o gás, obviamente uma maior quantidade de usuários pode fazer a conversão do seu veículo para gás natural. Uma maneira de inserir o gás natural no mercado, rompendo esse círculo vicioso, é utilizá-lo para transporte urbano, em ônibus e veículos de carga urbana com motores propriamente a gás ou, então, em motores diesel convertidos para aplicação da tecnologia gás-diesel. Para os próximos anos o desafio para o Brasil é visto da seguinte forma. O aumento do número de carros a gás natural viabilizará a disponibilidade de mais estações de carregamento de gás, estas, por sua vez, promoverão o desenvolvimento local. Num estágio mais avançado virão as estações de carregamento de gás em corredores de transporte rodoviários interestaduais. Dessa forma, teremos uma infra-estrutura completa de abastecimento de gás natural que poderá ser aproveitada para o futuro uso do hidrogênio em transporte. Uma forma mais eficiente e mais limpa de converter o gás natural em força motriz de transporte está em fase de estudo e desenvolvimento. Trata-se de converter o gás natural em hidrogênio e transformá-lo em eletricidade por meio de dispositivos conhecidos como células a combustível. A eletricidade gerada, dessa forma, alimenta um motor elétrico que é o sistema de propulsão de um veículo. Hidrogênio O hidrogênio é o elemento químico mais abundante do universo e tem sido considerado como um combustível para o futuro. Cabe lembrar, porém, que o hidrogênio não é encontrado dissociado na natureza, devendo ser extraído dos compostos onde ele se encontra, como a água e compostos orgânicos, como os hidrocarbonetos. 115 116

Existem vários processos para obtenção do hidrogênio e todos eles requerem certo consumo de energia, que pode ser de origem renovável ou não renovável. Quanto às fontes renováveis destacam-se a energia fotovoltaica, a energia eólica ou dos ventos, a energia das marés e ondas, a biomassa e, também, a energia hidráulica; as fontes não renováveis compreendem os combustíveis fósseis e a energia nuclear. Os processos mais conhecidos são a eletrólise alcalina da água e a reforma de hidrocarbonetos. A figura 3 ilustra um esquema simplificado do ciclo do hidrogênio, incluindo sua obtenção a partir de várias fontes de energia e processos, transporte, armazenamento e utilização. Figura 3 Esquema simplificado do ciclo do hidrogênio Fonte: Adaptado de Dunn (2002). A maior parte do hidrogênio produzido é utilizada no próprio local, como na indústria petroquímica, e apenas uma fração é destinada para fins energéticos. Entretanto, existe uma grande expectativa de aumento da aplicação energética do hidrogênio devido à possibilidade da disseminação das células a combustível (CaC) e sua aplicação em transporte urbano. As CaCs são dispositivos que convertem o hidrogênio diretamente em eletricidade eletroquimicamente, alcançando uma eficiência da ordem de 50%, contra 25% dos motores ciclo Otto e 35% dos motores ciclo diesel (Fuel Cell, Handbook, 2002) A diferença entre os motores de combustão interna convencionais e a CaC é que nos motores os combustíveis são queimados. Neste processo, designado oxidação, os átomos do combustível doam elétrons, ou se oxidam, aos átomos de oxigênio, que se reduzem. Desta reação resulta a libertação de energia térmica, transformada em ener- gia cinética pelas componentes mecânicas do motor. Numa CaC as reações de oxidação e redução são separadas por um eletrólito. A separação destas duas reações resulta na produção de uma carga negativa no ânodo e positiva no cátodo, surgindo a corrente elétrica devido à diferença de potencial. Como na CaC a conversão do combustível ocorre de forma direta existem menos irreversibilidades do que nos motores, ou seja, menores perdas. A CaC possui componentes e características similares a de uma bateria típica, mas difere em aspectos relevantes. A bateria é um dispositivo de armazenamento de eletricidade e a máxima energia elétrica disponível é determinada pela quantidade de reagentes químicos estocados em seu interior. Ela deixará de fornecer eletricidade quando os reagentes químicos forem completamente consumidos. A célula a combustível, diferentemente, é um dispositivo de conversão que tem a capacidade de produzir eletricidade enquanto houver combustível e o oxidante sendo supridos para os eletrodos (Fuel Cell Handbook, 2002). Um veículo elétrico a hidrogênio funciona da seguinte maneira: o sistema propulsor é um motor elétrico alimentado pela eletricidade da CaC a hidrogênio. Já existem vários protótipos desses veículos sendo testados no mundo (União Européia, Japão, Rússia, Estados Unidos e no Brasil). O Laboratório de Hidrogênio da Unicamp finalizou a montagem do primeiro protótipo de veículo híbrido com célula a combustível do Brasil. Trata-se do Vega II, e é chamado de híbrido devido à operação em conjunto da CaC e de um banco de baterias para alimentar o motor elétrico. A principal vantagem do hidrogênio é ambiental. A combustão do hidrogênio libera apenas água, o mesmo ocorre na reação eletroquímica em uma CaC. Se o hidrogênio for gerado através da eletrólise da água o nível de poluição é zero, se o hidrogênio for gerado da reforma de hidrocarbonetos ou da gaseificação da biomassa haverá emissão de CO 2. Mas o nível de emissão é consideravelmente inferior quando comparado com a queima de combustíveis em motores de combustão interna ou em turbinas a gás, o que pode ser creditado à maior eficiência das CaC. Na tabela 2 há uma comparação de tecnologias que utilizam o gás natural. Nota-se claramente que a CaC apresenta emissões de gases tóxicos inferiores às outras. Há uma emissão de CO 2 devido à reforma do gás natural, que é inferior às demais tecnologias devido à superioridade de eficiência da CaC. A principal desvantagem da CaC é o alto custo (situa-se entre US$ 3.000 e US$ 4.000 por kilowatt de eletricidade produzida) que não a torna competitiva frente às demais tecnologias. Esse alto custo é devido ao 117 118

fato de que atualmente existem poucas unidades CaCs em funcionamento, e que são para fins de demonstração e testes, ou seja essa tecnologia ainda não é comercializada em grande escala. Calcula-se que as CaCs se tornarão viáveis frente aos motores de combustão interna quando o seu preço por kilowatt estiver em torno de US$ 450. Esse nível de preço será alcançado com o desenvolvimento de materiais dos componentes das CaCs mais baratos e comercialização das CaCs em grande escala. Tabela 2 Emissão de gases nocivos e custo das tecnologias utilizando gás natural Emissões em kg/mwh Tecnologia Combustível US$/kW CO 2 NO x SO 2 CO Motor diesel Diesel 300 a 1000 650 a 850 5 a 20 0,2 a 1,5 0,2 a 3 Motor diesel GN 300 a 1000 475 a 600 9 a 26-0,5 a 3 Micro turbina GN 650 a 850 650 a 900 0,1 a 0,7-0,15 a 0,9 Célula a H 2 (GN) 3000 a 4000 400 a 700 < 0,02-0,005 a 0,06 combustível Fonte: Adaptado de Califórnia Energy Commission / Siting Committee Workshop / Evaluating Distributed Generation CEQA and Permit Streamlining (2000). O primeiro passo mais viável do uso de CaC será a aplicação em ônibus urbano. Atualmente no mundo estão sendo conduzidos vários programas de uso de ônibus a hidrogênio em cidades. Entre esses programas está o programa Clean Urban Transport for Europe - Cute que envolve nove cidades: Amsterdam (Holanda), Barcelona (Espanha), Hamburgo (Alemanha), Londres (Inglaterra), Luxemburgo, Madrid (Espanha), Porto (Portugal), Estocolmo (Suécia) e Stuttgart (Alemanha). O primeiro ônibus a hidrogênio começou a andar em Madrid em maio de 2003. Ao final do ano de 2003, foram incorporados 26 ônibus nessas cidades. O projeto terminou ao final de 2005 quando foram avaliados os resultados e então deu-se prosseguimento em 2006. DISCUSSÃO Embora já seja comprovada a vantagem ambiental do hidrogênio, sobretudo quando utilizado em CaC, há um longo caminho a ser percorrido até a implantação de uma sociedade baseada no uso desse vetor energético. Existem vários desafios a serem superados, principalmente com relação às formas de armazenamento e à infra-estrutura de abastecimento. O hidrogênio poderá ser gerado de várias fontes conforme a disponibilidade da fonte nas regiões. Essas regiões poderão apresentar uma disponibilidade tanto de fontes fósseis como de renováveis. O transporte pode ser feito com o hidrogênio gasoso através de gasodutos ou na forma líquida em caminhões com tanques criogênicos. Existem três formas de armazenamento: na forma gasosa em cilindros, na forma líquida em tanques para fluídos criogênicos, ou em hidretos metálicos que são ligas metálicas que possuem a capacidade de absorver o hidrogênio. O problema do uso do hidrogênio como combustível em veículos é a dificuldade de armazenamento. Somente para pressões acima de 700 atm é que se obtém uma relação entre a quantidade de energia armazenada e o volume do reservatório de H 2 gasoso adequado. Essa forma de armazenamento exige o emprego de equipamentos não convencionais como cilindros, válvulas, compressores etc. Entretanto, pode vir a ser bastante viável para o uso automotivo. O armazenamento de hidrogênio líquido envolve primeiramente o processo de liquefação o qual consome cerca de 30% da energia contida no combustível. Além disso, existem as dificuldades na tecnologia de fabricação do tanque criogênico, o seu alto custo, além dos periféricos e dos cuidados requeridos na sua manipulação; o armazenamento e a transferência de fluídos criogênicos sempre envolvem perdas por evaporação que podem alcançar de 0 a 100% dependendo do tempo de armazenamento que, no caso do hidrogênio, resultarão em problemas de perda de combustível e de segurança. A forma mais segura de armazenamento do hidrogênio para uso em veículos, no entanto, é em hidretos metálicos (H 2 /H y ), tecnologia desenvolvida e testada em inúmeros veículos com motor a combustão interna. No entanto apresenta sérios problemas como: grande peso do tanque com hidreto; o armazenamento e liberação do hidrogênio no hidreto metálico consomem energia; e o processo é muito lento. Uma solução possível para o problema do abastecimento de hidrogênio poderá ser o aproveitamento de uma infra-estrutura de gás natural. Dessa forma, se estabeleceria uma transição para o hidrogênio, pois o gás natural pode ser reformado para abastecer os veículos com o hidrogênio. Porém, nesse caso há ainda o problema da forma de armazenamento. Uma tecnologia que eliminaria a necessidade de armazenamento de hidrogênio em um veículo é o aproveitamento do etanol. Será extremamente interessante para o Brasil, o maior produtor mundial desse produto, uma vez que a conversão desse combustível para hidrogênio poderá ser feita no próprio carro por meio de um reformador on board. Dessa forma, um veículo com CaC poderá ser abastecido com etanol dispensando toda uma infra-estrutura de abastecimento de hidrogênio, e com a vantagem de o etanol ser uma fonte renová- 119 120

vel com balanço nulo de CO 2. A tecnologia da reforma vapor do etanol está sendo desenvolvida na Unicamp pelo Laboratório de Hidrogênio, já há um protótipo de reformador sendo testado, o próximo passo será instalar o reformador em um protótipo de veículo com CaC, o Vega III. Um veículo urbano utilizando CaC torna-se uma unidade de geração distribuída de eletricidade (GD) quando parado. Uma unidade de GD é uma central geradora de pequeno porte (escala de geração até no máximo de 30 MW de potência). Ao invés de uma grande usina conectada aos grandes consumidores por extensas linhas de transmissão, pode ser qualquer tecnologia modular instalada na área de serviço de uma concessionária, conectada à distribuição ou ao sistema de subtransmissão, diminuindo dessa forma o custo de serviço. Portanto, empresas de transporte urbano podem se tornar também empresas geradoras de energia elétrica. CONCLUSÃO A transição para utilização de combustível gasoso é uma realidade para os dias de hoje, sendo um fator positivo, pois leva a uma diversificação da matriz energética. A aplicação do hidrogênio será o passo seguinte ao uso dos combustíveis gasosos, o que irá diminuir a participação dos combustíveis fósseis na matriz energética. As diretrizes de uso do combustível em transporte no Brasil são as seguintes: diminuição do uso de combustível líquido fóssil e aumento do uso de combustível líquido renovável (álcool e biodiesel) e gás natural e introdução do hidrogênio. O aumento do uso deste vetor energético deverá se basear na infra-estrutura de álcool e gás natural. O uso do hidrogênio em transporte é uma realidade presente e o uso massivo desse fará uma revolução na economia de transporte transformando-se em um vetor importante na geração distribuída de eletricidade. Aumentando-se a utilização do hidrogênio em veículos com CaC, as emissões de gases nocivos diminuirão, contribuindo para melhorar as condições do ambiente e a qualidade de vida da população. CALIFORNIA Energy Commission and U.S. Department of Energy, Office of Energy Efficiency and Renewable Energy. Review of combined heat and power t technologies. http://www.distributed-generation.com/ DOE / EIA. US Departament of Energy / Energy Information Administration. International Energy Outlook. DOE, 2003, 249 pgs. DOE (2002) U.S. Department of Energy, Hydrogen Information Network. http://www.eren.doe.gov/hydrogen/faqs.html#cost DOE U.S. Departament of Energy. Fuel Cell Handbook (6ª edição). EG&G Services Parsons, Inc. Science Applications International Corporation. Morgantown, West Virginia, EUA, 2002, pp. 352. DUNN, S. Hydrogen futures: toward a sustainable energy system. International Journal Hydrogen Energy. Elsevier Science Ltd., vol. 27, 2002, pp. 235-264. HEFNER, R. A. SPE SOCIETY OF PETROLEUM ENGINEERS. Gas Technology Symposium. Canada, 2002 http//.www.aspeninstitute.org/aspeninstitute/files OECD / IEA. Organisation For Economic Co-Operation and Development / International Energy Agency. Flexibility in natural gas supply and demand. Paris, France: IEA Publications, 2002, 273 pgs. SILVA, E. P. Introdução a tecnologia e economia do hidrogênio. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, 204 p. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAIN, R. L.; OVEREND, R. P.; CRAIG, K. R. In: Uso da biomassa para produção de energia na indústria brasileira. Gaseificação para a geração de calor e eletricidade e a produção de metanol e hidrogênio. Ed da Unicamp, 2002, capítulo 9, pp. 204-216. BROWN, L. F. A comparative study of fuels for on-board hydrogen production for fuelcell-powered automobiles. International Journal Hydrogen Energy. International Association for Hydrogen Energy. Elsevier Science Ltd. vol. 26, 2001, pp. 381-397. 121 122