Rafael de Souza Oliveira* DISCERNINDO - Revista Teológica Discente da Metodista

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Transcrição:

Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto da Missão no Brasil Historic Protestantism and Pentecostalism in the context of the Mission in Brazil Rafael de Souza Oliveira* Resumo Este artigo é resultado das reflexões decorrentes da participação no curso Missão, Cultura, Sociedade e Religião na América Latina. Seu objetivo é avaliar a relação entre pentecostalismo clássico e tradição histórica no contexto dos novos desafios missionários determinados por uma época caracterizada pela acelerada urbanização, modernização e globalização da cultura brasileira. Inicialmente, abordamos os processos históricos de estabelecimento do protestantismo no Brasil, apresentamos o atual cenário com destaque ao grande crescimento do grupo pentecostal desde sua chegada ao país. Por fim, refletimos sobre os projetos missionários, geralmente conflitantes; e, apontamos a necessidade de uma nova proposta missionária que seja relevante para o povo. * Bacharelando em Teologia pela Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. E.mail: rafaeldsoliveira@gmail.com 143

Rafael de Souza Oliveira 144 Abstract This article is the result of reflections arising from participation in the course Mission, Culture, Society and Religion in Latin America. It aims to evaluate the relationship between Classical Pentecostalism and Historical Tradition in the context of new missionary challenges determined by an era characterized by rapid urbanization, modernization and globalization of the Brazilian culture. Initially, we address the historical processes of establishment of Protestantism in Brazil, and present the current scenario highlighting the large growth of Pentecostal group since their arrival in the country. Finally, we reflect on the missionary projects, usually conflicting, and then we point out the need for a new missionary proposal that is relevant to the people. Introdução Missão é um assunto cativante na esfera eclesiástica, afinal, ser cristão é ser participante da Missão de Deus. Esse tema foi objeto de análise na segunda edição do curso Missão, Cultura, Sociedade e Religião na América Latina oferecido em parceria entre a Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (FaTeo) e a Candler School of Theology, Atlanta, EUA. Realizado com o uso da tecnologia de comunicação a distância, o curso teve o objetivo de oferecer contribuições sobre o tema, numa perspectiva brasileira e wesleyana, a partir das produções desenvolvidas na Fa- Teo. O curso foi realizado no primeiro semestre de 2012. O programa baseou-se em assuntos como a inserção do cristianismo no Brasil, o papel do pentecostalismo, a dimensão do pluralismo religioso, missão urbana, AIDS e a questão da sexualidade e os desafios missionários apresentados para uma igreja comprometida com o Cristo e com os valores do Evangelho. Neste artigo, baseado no conteúdo do curso, abordaremos a relação entre pentecostalismo clássico e tradição histórica no contexto dos novos desafios missionários determinados por uma época caracterizada pela acelerada urbanização, modernização e globalização da cultura brasileira. v.1, n.1, p. 23-27, jan.dez.2013,

Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto... Com esse objetivo, inicialmente analisaremos os processos de implantação do protestantismo no Brasil, em seguida trataremos do grande crescimento do pentecostalismo no país e, por fim, estudaremos uma proposta missionária para a igreja brasileira. Estabelecimento do Protestantismo no Brasil Ao contrário do que muitos imaginam a chegada do protestantismo ao Brasil se deu antes do século XIX. Em 11 de outubro de 1555, com ajuda do rei Henrique II e o apoio de Calvino chegou ao Rio de Janeiro um grupo de refugiados franceses do partido dos huguenotes que sofriam perseguição religiosa por parte dos católicos. Dois anos depois, chegaram mais missionários, tornando-se possível em 10 de março de 1557 a realização do primeiro culto protestante em terras brasileiras. Entretanto, desentendimentos e divisões internas em relação a elementos litúrgicos, fez com que essa primeira empreitada missionária fracassasse e contribuiu para o domínio e monopólio do Catolicismo Romano por mais dois séculos. Uma segunda tentativa de implantação da religião protestante no Brasil chega com os holandeses em 1624 e se consolida em 1630, quando dominam Recife e Olinda. No ano de 164,1 os holandeses dominavam 14 capitanias do nordeste brasileiro. El proyecto de colonización holandesa en el Brasil tuvo un componente religioso en la medida en que la tradición reformada calvinista se volvió la región del Brasil holandés, pero en el marco de una tolerancia religiosa similar a la de la metrópoli tanto hacia el judaísmo como hacia el catolicismo. (BASTIAN, 1990, p.55) Sob o domínio dos holandeses, a Igreja Reformada era a oficial e concedia, como citado acima, certa liberdade religiosa. Além da pregação, ensino e benevolência, essa igreja preparou um catecismo na língua nativa e realizou uma admirável obra missionária junto aos indígenas. Em 1654, os holandeses foram expulsos do Brasil, transferindo- -se para o Caribe. O fracasso dessa segunda tentativa de estabelecer o protestantismo no Brasil deu-se ao fato do envolvimento da Holanda nas turbulências européias. Com a expulsão dos holandeses aumenta- -se o domínio português e católico, extingue-se a liberdade religiosa 145

Rafael de Souza Oliveira e acirram-se as tentativas de impedir a inserção do protestantismo no Brasil. É uma época de intensificação das atividades do Santo Ofício Inquisição. Essa situação perdurou até meados do século XIX. Com a vinda da família real, as coisas começaram a melhorar. Até então, as tentativas, já distantes, dos franceses e holandeses, apenas resultaram na identificação dos protestantes como invasores (RIBEIRO, 1973, p.17). O Tratado do Comércio firmado com a Inglaterra em 1810 permitia aos ingleses a construção de igrejas e capelas, mas só em 1822, poucos meses antes da independência do Brasil, é que foi inaugurada a capela anglicana no Rio de Janeiro, que foi também o primeiro edifício erguido para o culto protestante, em tempos modernos, no Brasil (REILY, 2003, p.54). Além dos ingleses, outros imigrantes de países protestantes chegam ao Brasil, após a abertura dos portos, como norte-americanos, suecos, dinamarqueses e escoceses. Entretanto, até a proclamação da independência não há notícia de existir sequer um brasileiro protestante. (RIBEIRO, 1973, p.18) Em 1824, desembarca a primeira colônia protestante que se estabelece em Nova Friburgo. Esse grupo de alemães luteranos composto por 324 pessoas vem acompanhado de seu pastor. A data de 3 de maio de 1824, é também considerada a data da fundação da igreja. Na verdade, era a transladação de uma igreja e do seu pastor para uma nova terra. Desde então, outros núcleos protestantes se estabeleceram em vários pontos do Império, mas principalmente composto por alemães no sul do país. 146 Aproximadamente 4800 alemães chegaram ao Rio Grande do Sul até 1830, e logo fundaram suas igrejas e escolas. As comunidades alemãs, assim estabelecidas, eram tipicamente igrejas de imigrantes. Usavam a língua materna nas igrejas e escolas, e muitos entenderam que a manutenção do idioma era essencial à conservação da fé evangélica. Viveram, por via de regra, à margem da vida e cultura brasileiras e, por força das condições da vida rural, muitos tinham pouca oportunidade de participação regular na vida da Igreja. (REILY, 2003, p.58) A vinda desses colonos criou condições que facilitariam a introdução do protestantismo missionário no Brasil, como as alterações na legislação. Algumas questões como casamentos, batismos e enterros foram as que mais geraram discussões.

Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto... O ano de 1855 marca o início do protestantismo de missão com a chegada de missionários estadunidenses, especialmente da região sul deste país. O quadro a seguir faz a síntese histórica da chegada de missionários americanos. PROTESTANTISMO DE MISSÃO NO BRASIL 1855 Congregacionais 1859 Presbiterianos 1867 Metodistas 1881 Batistas 1889 Episcopais 1900 Luteranos (IELB) Esse protestantismo que chega ao Brasil é marcado por uma ética individualista, dualista e conservadora. Apresenta um forte sentido conversionista, na qual conversão é vista como tirar o indivíduo da cultura e da forma como havia sido criado, assim, os americanos procuravam estabelecer seu estilo de vida, político econômico e cultural. Além disso, há uma forte orientação anticatólica romana. O professor Reily apresenta um excerto da carta de um missionário anglicano em passagem pelo Rio de Janeiro que demonstra o sentimento de desdenho pelas atividades cúlticas autóctones em 1819, como se segue: Os católicos romanos aqui em todo o seu culto são mais insensatos que os chineses, dos quais, ou de outros como eles, parecem ter imitado o absurdo costume de soltar toda espécie de fogos de artifício no seu culto. O espetáculo das suas ridículas cerimônias ou melhor, a forma vergonhosa na qual nossa pura e santa religião se exibe aqui, e os 80 mil escravos que formam uma parte da população desta cidade, que não parecem ter mais probabilidade de serem libertados da sujeição ao pecado e a Satanás que dos grilhões da escravidão: o espetáculo destas coisas, afirmo, torna este lugar, no meu modo de pensar, um dos mais miseráveis do mundo. Aqui existe uma população de 300 mil pessoas, que, com a exceção de bem poucos da Europa, estão na escuridão total sem nada que possa lhes dar sequer um vislumbre distante de libertação. Um lugar que professa ser cristão mas que não possui nem a forma de santidade, pois suas próprias cerimônias são piores que as pagãs. (REILY, 2003, p.55-56, grifo nosso) 147

Rafael de Souza Oliveira A vinda dos americanos para o Brasil está vinculada diretamente à ideologia do destino manifesto, através da qual a nação americana seria o povo escolhido por Deus para implantar uma alta civilização cristã, dentro dos princípios da liberdade e da democracia, e espalhar esta civilização pelo mundo (NOVAES apud ELIAS, 2001, p.24). Assim, o protestantismo incentivou a criação de centros urbanos e o progresso trazido pelos americanos e implementou uma nova visão ideológica de individualismo e a busca do lucro através do crescimento econômico. Os metodistas, em específico, dedicaram-se à educação a fim de formar elites e civilizar a nação (NOVAES apud ELIAS, 2001, p.24). A fundação de institutos educacionais foi o meio encontrado para influenciar as classes que emergiam. Pode-se perceber, consequentemente, forte influência da filosofia liberal e da democracia no projeto missionário do protestantismo de imigração estadunidense. O fato é que o protestantismo histórico obteve certo sucesso, mas não alcançou o sucesso das igrejas pentecostais. 148 Estabelecimento do Pentecostalismo no Brasil O movimento pentecostal chega ao Brasil através da pregação do operário italiano Luigi Francescon que sai de Chicago (EUA) em 1909 e chega ao Brasil em março de 1910. Iniciando suas atividades em São Paulo e em Santo Antonio da Platina, no Paraná, torna-se o fundador da Igreja Congregação Cristã no Brasil (ICC). Seis meses depois, chegam à Belém do Pará dois suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg que fundam a Igreja Assembléia de Deus (AD). Ambos tornaram-se batistas na Suécia e depois emigraram para os EUA, respectivamente em 1902 e 1903, e afirmaram ter recebido o dom o Espírito Santo em 1909. O movimento pentecostal pode ter surgido em terras norte- -americanas, mas foi alimentado no sul desse continente, no Brasil, principalmente através das ADs. A língua do Espírito que falavam encontrou eco nos operários de São Paulo (MIGUEZ BONINO, 2003, p.55). O movimento pentecostal cresceu assustadoramente na perspectiva dos protestantes históricos. Alguns se entusiasmaram, outros

Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto... se entrincheiraram, gerando um campo de conflitos e, em alguns casos, rupturas. Batistas e Irmãos Livres sofreram mais agudamente essas tensões, mas elas não estão ausentes entre metodistas, presbiterianos ou Discípulos de Cristo (MIGUEZ BONINO, 2003, p.56). A partir dos anos de 1940, novos grupos pentecostais surgem resultando de divisões das igrejas mais velhas, ou se constituíram em torno de líderes carismáticos, ou foram iniciadas por missões pentecostais do exterior. Com ênfase na cura divina, também apresentaram grande crescimento, são elas: Igreja Evangélica Avivamento Bíblico, 1946 Igreja do Evangelho Quadrangular, 1951 Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo, 1955 Deus é Amor, 1962 Em 1965, estimava-se que havia entre 28 e 30 igrejas e movimentos pentecostais atuantes no Brasil. Na década de 70, ocorre o surgimento de uma linha pentecostal conhecida como neopentecostalismo. Voltado mais para as massas e suas necessidades imediatas de saúde, prosperidade e amor, esse novo pentecostalismo tem experimentado elevadas taxas de crescimento, mas ainda não alcançou o número de pentecostais clássicos. As principais denominações dessa linha são a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976), a Igreja Apostólica Renascer em Cristo (1986) e a Igreja Mundial do Poder de Deus (1998). O cenário protestante hoje Pode-se dizer que o protestantismo está estabelecido no Brasil, embora longe ainda de ultrapassar o domínio católico romano, é reconhecido pela sociedade como um influente grupo que inclui aproximadamente 15% da população, assediado por políticos em tempos de eleição e por artistas em busca de destaque. Mariano avalia os números do Censo Demográfico divulgado no Brasil no ano 2000 no qual se revelou que o protestantismo abrangia 15,4% da população brasileira, ou seja, que somava 26.184.941 de pessoas naquele ano. Nesse montante, dois terços são formados por pentecostais (MARIANO, 2004, p.121). 149

Rafael de Souza Oliveira Outras constatações desse Censo analisadas por Mariano relacionam-se ao perfil socioeconômico e demográfico que marca a distinção entre pentecostais e protestantes históricos no Brasil: 150 Dados do último Censo revelam que a maioria dos pentecostais apresenta renda e escolaridade inferiores à média da população brasileira. Grande parte deles recebe até três salários mínimos e ocupa empregos domésticos, em geral modestos e precários, numa proporção bastante acima da média nacional. Em contraste, os protestantes históricos apresentam renda e escolaridade elevadas, ambas bem superiores à média brasileira, estando distribuídos mais nos níveis escolares de segundo grau, graduação e pós-graduação e nas faixas de renda entre seis e vinte salários mínimos. Pentecostais e protestantes são majoritariamente urbanos e apresentam maior proporção de mulheres que de homens. Quanto à cor dos fiéis, os primeiros sobressaem pela presença de pretos e pardos superior à média da população, enquanto os últimos pela maior proporção de brancos. Os pentecostais abrigam mais crianças e adolescentes do que adultos, enquanto os protestantes mais adultos e idosos do que jovens, diferenças de perfil etário e de taxas de natalidade que, tal como ocorre nas comparações anteriores, refletem suas distinções de classe social. (MARIANO, 2004, p.122) Propostas missionárias no mercado brasileiro As igrejas protestantes brasileiras são extremamente plurais, tanto interna como externamente, e ao longo das últimas décadas, diferentes projetos missionários estão em aberta competição, freqüentemente em aberto conflito caracterizado por uma virulenta intolerância religiosa. Essa constatação faz-se presente também em relação à igreja católica romana. Os diferentes projetos missionários em conflito se inserem num amplo escopo teológico que vai desde a teologia neopentecostal da prosperidade, passando por teologias escapistas do arrebatamento apocalíptico (rupture), até o messianismo político de certas teologias da libertação de construir-se o Reino de Deus na terra como uma sociedade socialista plenamente inclusiva. Uma proposta missionária para a igreja brasileira A igreja protestante tem uma responsabilidade missionária com os grupos excluídos. No entanto, a maneira de ver os excluídos está

Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto... sempre acompanhada de preconceitos raciais reforçados por preconceitos econômicos, gênero e outros. As diversas tribos indígenas, o pobre, os negros, as mulheres e prisioneiros são grupos minoritários que, historicamente, são excluídos e carecem de atenção nos projetos missionários da igreja protestante no Brasil. O novo cenário socioeconômico brasileiro determina a formação de novos grupos de excluídos, que também devem ser tratados de forma especial. É grande a massa de desempregados no país, migrantes, refugiados, vítimas de tráfico humano. Convive-se com preconceitos contra enfermidades, vícios e contaminados com HIV. Há também a exclusão de pessoas incapacitadas, analfabetas, sem condições de competir com outros. As populações em condições de rua são grandes. Preconceitos tradicionais têm aumentado também quando vemos as pessoas do campo que vivem sem terra para trabalhar. As culturas trazem com elas uma tendência forte ao preconceito. Quando Jesus Cristo se identifica com os discriminados revela que não se rendeu aos preconceitos culturais dos judeus e de classes abastadas em relação aos que eram excluídos. Uma proposta missionária precisa ver a missão de forma inculturada, ao contrário de uma cultura modelo para outras culturas. Essa forma de inculturação é ver que o evangelho não tem uma face, mas apresenta uma diversidade delas conforme os grupos humanos. O evangelho foi muitas vezes pregado para impor a cultura e isso resultou em grandes prejuízos para o cristianismo em todo o mundo. Mesmo trabalhos bem intencionados entre índios foram obras missionárias conduzidas com preconceitos culturais. Hoje, missão em grupos indígenas é inculturar o evangelho sem impor um modelo cultural novo. A teologia da face é uma teologia de aprender com o outro. Antes de traduzir claramente a mensagem, é necessário que o outro seja aceito, ou seja, é preciso identificar a face do outro com a face de Cristo e aceitá-lo na sua forma cultural, étnica, de gênero e de ser. Sem isso o evangelho é subvertido. A teologia da face é uma teologia de aprender e ouvir o outro a fim de poder falar da face de Cristo. 151

Rafael de Souza Oliveira 152 Considerações finais O crescimento dos pentecostais (e neopentecostais) continua chamando a atenção da tradição histórica. A simpatia ou o rechaço ao movimento pentecostal continua sendo a tônica de embates que geralmente culminam em divisões. O fato é que o Brasil cada vez se torna mais pentecostal, e parafraseando o Prof. Almeida, à medida que isso ocorre, o pentecostalismo se torna mais brasileiro. Teologias à parte, a igreja pentecostal conquistou uma hegemonia nacional e, como protestantes históricos, precisamos reconhecer seus méritos e conquistas. Precisamos repensar nosso projeto missionário com humildade e reconhecer no crescimento pentecostal, muito mais do que fatores sociais e culturais, a ação do Espírito Santo. Luiz Wesley de Souza avalia como o pentecostalismo clássico tornou-se autóctone no Brasil, em oposição ao protestantismo histórico identificando lições missiológicas que deveriam ser aprendidas do primeiro grupo, como a importância do laicato, a contextualização da linguagem e métodos, e possuir relevância cultural, espiritual e emocional à vida do povo. Aos metodistas, em especial, baseado na aproximação histórica com o pentecostalismo, faz considerações que devem ser acatadas em um projeto missionário para brasileiros: A maneira assembleiana de fazer teologia e missão também denuncia como os metodistas de hoje afastaram-se de suas próprias origens teológicas, eclesiológicas e missiológicas em relação aos pobres e ao laicato. Isso faz que o metodismo de hoje tente recuperar aspectos que acabaram esquecidos ou negligenciados em sua prática de missão, coisas que o pentecostalismo trouxe à realidade ao aprender, absorver e desenvolver as mesmas premissas teológicas e missiológicas que os metodistas possuíam desde o começo do movimento wesleyano. (SOUZA, 2007, p.66) O curso Missão, Cultura, Sociedade e Religião na América Latina cumpriu seu papel ao esclarecer aos participantes a necessidade de revisão dos projetos missionários da atualidade, corrompidos pelos fundamentos fatídicos das leis de mercado. Os pentecostais precisam reforçar seu compromisso com milhares de brasileiros que encontram

Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto... nele apenas uma fuga para os problemas socioeconômicos enfrentados, por outro lado, os protestantes históricos necessitam reconhecer o distanciamento com o povo. O crescimento pentecostal nos alerta para o fim da soberba liberal na forma de fazer missão. Certa ingenuidade do discurso de opção preferencial pelo pobre deve ser substituída por viver a realidade da massa, de crescer junto. O pentecostalismo faz parte do povo. É preciso mudar para crescer. Ser uma religião onde o povo sinta-se em casa. Referências bibliográficas ALMEIDA, Ronaldo. Os pentecostais serão maioria no Brasil? In: Revista de Estudos da Religião: São Paulo, n.8, p.48-58 (2008). Disponível em <www.pucsp.br/rever/ rv4_2008/t_almeida.pdf>, acesso em: 25/05/2013. BASTIAN, Jean Pierre. Historia del protestantismo en America Latina. [S.l.]: C.S.S. Publishing Company, 1990. MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n.52, p. 121-138, set./2004. MIGUEZ BONINO, José. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003. ELIAS, Beatriz Vicentini. Vieram e Ensinaram Colégio Piracicabano, 120 anos. Piracicaba, SP: Editora Unimep, 2001. REILY, Duncan Alexander. Historia documental do protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo, SP: ASTE - Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, 2003. RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil monárquico (1822-1888): aspectos culturais de aceitação do protestantismo no Brasil. São Paulo, SP: Pioneira, 1973. SOUZA, Luis Wesley de. Pentecostalismo clássico: lições missiológicas. O que se deve aprender do pentecostalismo clássico brasileiro. In: Caminhando, São Bernardo do Campo, v.12, n.19, p.57-67 (2007). 153