Opção Lacaniana online nova série Ano 5 Número 14 julho 2014 ISSN FPS e sinthome. Paola Salinas

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Transcrição:

Opção Lacaniana online nova série Ano 5 Número 14 julho 2014 ISSN 2177-2673 1 Paola Salinas Este texto visa clarear algumas indagações a respeito do fenômeno psicossomático a partir da noção de sinthome no último ensino de Lacan. Tais questionamentos acompanharam minha prática em um hospital geral e o enfrentamento subjetivo do corpo na histeria, de onde surgiu o desejo de saber sobre as possibilidades de um corpo tomadas aqui sob a pergunta: como um corpo goza? Como o corpo goza nos acontecimentos de corpo, que diferença há, se há, entre tais modos de afetação? Num primeiro tempo de estudo referenciado no simbólico, sintoma e FPS se diferenciavam pela oposição. O sintoma metáfora endereçado ao Outro, passível de decifração e, por outro lado, o FPS que introduzia o sem sentido aquém da decifração, não endereçado ao Outro, um escrito para não ser lido 2. Um fenômeno enraizado no imaginário que articula simbólico e real em uma holófrase 3, engendra um gozo específico que não passa pela castração e inscreve direto no corpo algo do número, de real. Ao tomarmos a referência ao sinthome não se trata mais de uma oposição. Ou seja, a partir da redefinição do sintoma como acontecimento de corpo, tal como o FPS, a diferenciação relativa à afetação do corpo nos dois acontecimentos não é tão clara. Seria preciso diferenciar FPS, sintoma e sinthome no percurso de uma análise, em termos dos efeitos específicos de gozo em jogo em cada um a partir da experiência analítica. Para tanto, sirvo-me dos relatos de passe de Araceli Fuentes 4 por entender que essa diferenciação embora possa ser pensada teoricamente, é melhor esclarecida no um a um. Temos assim uma primeira resposta à pergunta que nos 1

move - como um corpo goza com o opaco e singular do seu sinthoma. A noção de sinthome inclui o opaco do gozo não articulado diretamente a um sentido e que faz obstáculo à decifração. Onde isso cala, isso goza, o inconsciente se apresenta na sua vertente de defesa contra o real do gozo. Segundo Miller 5, o sinthome não é um acontecimento de corpo especular, mas um acontecimento de corpo substancial, cuja consistência é gozo. Nesses termos o sinthome se aproxima da definição de FPS, onde um gozo que escapa à decifração é fixado no corpo. Por outro lado, o FPS está enraizado no imaginário, contudo trata-se do imaginário em articulação com o real 6. O real do gozo faz intrusão no imaginário do corpo sem mediação simbólica. Como vimos, no sinthome a satisfação se articula ao corpo como consistência e não ao corpo especular como no FPS, contudo a articulação do imaginário ao real no FPS torna mais interessante pensar a articulação, quando possível, entre no percurso de uma análise. No caso de Araceli Fuentes, a holófrase sesuamãeavisse 7 (entre simbólico e real) invoca o olhar da mãe morta, marca no corpo o luto não simbolizado, afeta e lesiona. Condensa olhar e morte, pontos do circuito pulsional da analisante tanto na vertente fantasmática dar-se a ver quanto na vertente silenciosa, fora do sentido, do luto não simbolizado que marcou o corpo. Essa vertente entra no discurso somente num segundo tempo, articulada à morte do pai e ao lúpus. Como nos diz Araceli, no fenômeno psicossomático, a temporalidade em jogo supõe dois tempos: primeiro, a falha epistemo-somática que, em um segundo tempo, se realiza 8. A análise só termina quando as duas vertentes se articulam. O destino do FPS participa da pulsão e do avanço da análise em relação à construção do sinthome. Esse, ao 2

final, é feito do que se atravessou da fantasia fundamental e da borda que se inscreveu onde antes havia a holófrase. Araceli nos diz que o final só se produziu quando a letra pôde ser escrita em relação ao luto, ou seja, quando ocorreu a passagem de uma escritura real no corpo - o número -, à letra. O sinthome não é sem esse furo decorrente dessa borda, o que permite ao sujeito uma nova posição frente ao gozo e à obtenção de satisfação. Isso afeta diretamente a relação com o corpo próprio, tanto no que diz respeito à satisfação que se pode obter dele, quanto à mudança no padecimento colocado tanto pelo FPS como pela construção fantasmática. O fundamental é justamente isso, que o avanço e a modificação em relação ao corpo e seu gozo não se restringe à vertente da fantasia, mas toca o gozo específico do FPS que não se articulava a um saber. Essa passagem localiza o objeto voz em função da separação entre o olhar e a morte. O FPS cede lugar à letra e o sujeito pode se apropriar de sua satisfação. A letra escrita não atribui sentido, faz borda no indizível. Atesta o acontecimento traumático, somente então tomado como tal, localizando o luto não feito anteriormente. Trata-se do inconsciente além da ficção. Araceli nos diz que o relevo da voz e a obtenção de uma voz mais metonímica, menos rude, é a resposta sintomática ao silêncio imposto do trauma 9. A voz, minha voz vivida com um empuxo a dizer irrefreável, não é outra coisa do que minha resposta sintomática ao silêncio imposto do trauma [...] o relevo da voz é aquilo que se escreveu da voz como sintoma, esse empuxo a fazer-se ouvir que atravessa meu corpo é a outra cara do trauma, a outra cara do silêncio 10. A voz estava presente na holófrase, que nada mais era do que uma invocação, e também na novela familiar entre seu pai e sua segunda mãe. Como efeito, a partir da borda 3

escrita como letra no corpo a voz se transmuta, separando o que a holófrase congelara. O conceito de sinthome tem como consequência redimensionar a prática analítica, tomada não só como decifração de um saber, mas também como elucidação da natureza de defesa do inconsciente. Assim, penso que o FPS, na perspectiva aquém da decifração, participa da modificação e da nomeação da satisfação em jogo no sinthome em uma análise e não tem sentido colocá-lo como um modo exclusivo ou à parte do efeito da lalíngua. O FPS é mais um ponto a ser incluído no trabalho de construção do sinthome, enfatizando o gozo em questão. O caso de Araceli nos mostra com clareza como o FPS, longe de ser um elemento isolado, se articula à pulsão do sujeito sob a forma de um real indizível que, em última instância, diz do que do inconsciente permanece como furo. Assim, o que ela chama de fenômenos especiais, os FPS, as alucinações imaginárias e o acting out dão conta de um real que não pode ser historicizado e que excede a dimensão da verdade. O sinthome, para além do FPS, não é uma constatação do efeito de um acontecimento de corpo, mas passa por uma construção, por um saber fazer com a satisfação. O FPS é uma marca que exclui totalmente o sujeito. O sinthome, ao contrário, inclui o sujeito e seu furo, o parlêtre, o corpo, nessa nova modalidade de satisfação que se coloca em jogo em uma análise. Araceli nos diz que sua voz perdeu volume, esvaziando-se de ruído, se fez mais metonímica 11, a voz que toca o silêncio do trauma (invocação da holófrase), o Édipo articulado ao humor do pai frente às sentenças rígidas da segunda mãe, uma versão do supereu. Ela nos diz do seu percurso como algo da mancha ao furo, do lúpus (manchas na pele) articulado ao luto não realizado à letra onde se trata de outro tipo de 4

escritura 12. As manchas-olhares, como ela nos diz, colados na pele colocam ao mesmo tempo um gozo não afetado pela castração e um gozo do semblante, um plus de gozo escópico situado no fantasma e colocado em ato na transferência. Esse ponto se articula ao silêncio do trauma e à escritura real no corpo, que pode agora ter uma borda e não um sentido. 1 Trabalho apresentado no VI ENAPOL, nos dias 22 e 23 de novembro de 2013, em Buenos Aires. Este trabalho também conta com as discussões feitas no âmbito do Núcleo de Psicanálise e Corpo do Clin-a, em Ribeirão Preto. Agradeço especialmente a José Danilo Canesin, Nara Pratta e Carolina Molena. 2 LACAN, J. (1998/1975). Conferência em Genebra sobre o sintoma. In: Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 23. São Paulo: Edições Eólia. 3 MILLER, J.-A. (1990). Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. In: Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 4 FUENTES, A. (mar. 2012). Al final, la satisfacción. In: XII Conversación Clínica del ICF. Barcelona: ICF; IDEM. (nov. 2011). Um corpo, duas escrituras. In: Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 61. Op. cit.; IDEM. (jun. 2012). O resíduo de uma análise. In: Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 63. Op. cit.; IDEM. (2013). Un acting out en análisis. Disponível em: <http://pequenaleitura.blogspot.com.br/2013/10/un-acting-out-enanalisis-por-araceli.html>. 5 MILLER, J.-A. (2011). Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan. Entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 97. 6 ZENONI, A. El fenómeno psicosomático y la pulsión. Disponível em: <http://nucep.com/wpcontent/uploads/2012/09/alfredo_zenoni_elfenomeno_psicosom%c3%a1tico_y_la-pulsion.pdf>. 7 Sisumadrelaviera, em espanhol. 8 FUENTES, A. (nov. 2011). Op. cit., p. 145. 9 IDEM. (2012). El relieve de la voz. In: Letras - Revista de Psicoanálisis de la ELP-Madrid, n. 4. Madrid: ELP. 10 IDEM. (mar. 2012). Op. cit., p. 36. Tradução nossa. 11 IDEM. Ibidem. 12 IDEM. (nov. 2011). Op. cit. 5