Bolsas e bolsistas de produtividade do CNPq: uma análise de gênero 1 Moema de Castro Guedes 2 Resumo O presente trabalho analisa mudanças e permanências no perfil dos bolsistas de produtividade do CNPq na última década. Para tanto, trabalhamos com um banco de dados que cruza a variável sexo do bolsista com sua idade; área específica e área maior de atuação. O quadro traçado mostra que, apesar dos intensos avanços femininos nos cursos de pós-graduação, as barreiras interpostas ao avanço das mulheres no topo da carreira acadêmica continuam solidamente estruturadas. No período analisado (2001 a 2013) as mulheres avançaram pouco particularmente nas grandes áreas masculinizadas que contam com maior montante de bolsas. Em linhas gerais percebemos um rejuvenescimento no perfil do bolsista e mesmo nos níveis mais baixos da bolsa de produtividade os homens continuam sendo os principais contemplados com o benefício. Essa tendência é particularmente relevante porque, enquanto nos níveis hierárquicos mais altos quase não houve aumento na oferta de bolsas, nos níveis mais baixos houve um crescimento expressivo ao longo do período analisado. O dado agregado, no entanto, encobre importantes diferenciações entre grandes áreas do conhecimento. Os principais avanços foram nas áreas novas e naquelas tradicionalmente femininas. A comparação entre distintas culturas institucionais revelam importantes diferenciações em termos de relações de gênero. Introdução Historicamente as bolsas de produtividade foram uma modalidade criada pelo CNPq no sentido de incentivar aqueles pesquisadores que se destacam em suas áreas de pesquisa e atuação com uma produção acadêmica continuada e relevante a respeito dos temas que estudam. Em termos de hierarquia na estrutura da academia brasileira elas representam o mais 1 O presente trabalho é parte de uma pesquisa financiada pelo CNPq. 2 Professora e Pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
alto patamar de reconhecimento uma vez que o universo de pesquisadores é muito mais amplo que o grupo contemplado com o benefício (que representa não apenas o financiamento da pesquisa mas uma renda a mais que o salário recebido na instituição a qual pertence). Nesse sentido, o segmento de pesquisadores bolsistas de produtividade é antes de mais nada uma elite de pesquisadores no Brasil. O benefício surge em meio a um cenário no qual o universo de doutores se amplia muito no país e o título vai perdendo o caráter distintivo que possuía até então. Outra dimensão que reflete essa banalização do doutorado foi a recente expando das bolsas de pósdoutorado, que além de criarem mais um patamar na formação dos pesquisadores vem servindo fundamentalmente para aqueles que ainda não possuem um vínculo formal com instituição de pesquisa ou universidade uma possibilidade de emprego e sustento até que consigam se inserir neste mercado de trabalho extremamente competitivo. Apesar dos intensos avanços das mulheres no processo educacional seus ganhos neste campo vêm sendo tímido, razão pela qual resolvemos investigar o universo em questão. Para tanto, trabalhamos com uma série de bancos de dados. Neste trabalho optamos por utilizar principalmente as informações disponibilizadas pelo CNPq na internet. 1. Contextualização das bolsas de produtividade As análises aqui desenvolvidas partem de dois conjuntos distintos de dados. Um primeiro, que contextualiza a discussão sobre as bolsas de produtividade. O segundo é um banco de dados disponibilizado pelo CNPq 3 para esta pesquisa no qual estão cruzadas as seguintes variáveis: número de bolsas desagregadas por nível hierárquico oferecidas por ano 4 pelo órgão de fomento segundo área, sexo e idade do pesquisador contemplado com a bolsa. O gráfico 1 a seguir ilustra as tendências de distintas modalidades de bolsas em números absolutos recentemente. 3 Destacamos a imensa colaboração do setor de estatística do CNPq no sentido de atender com prontidão nossas demandas específicas sobre a disponibilização do conjunto de dados que necessitávamos para a construção das questões aqui analisadas. 4 Frequentemente a bolsa não foi disponibilizada em todo o período de um ano. Nestes casos os valores aparecem fracionados.
Gráfico 1 Número absoluto de bolsas oferecidas pelo CNPq por ano e modalidade Fonte: CNPq/AEI. Elaboração própria. Na análise do período em questão observamos tendências de crescimento parecidas entre as bolsas de Mestrado, Doutorado e Produtividade em pesquisa. Esta última apresenta um patamar constantemente mais elevado que as demais e a partir de 2008 seu crescimento passa a ser ligeiramente maior que o observado nas bolsas de mestrado e doutorado. As bolsas de pós-doutorado, que começaram a ser implementadas recentemente, têm um peso relativo menor que as demais e seu crescimento também não é acentuado. O principal elemento a ser destacado, no entanto, é o expressivo aumento na oferta de bolsas de Iniciação Científica a partir de 2007. Este dado revela um crescimento da base de estudantes que se insere na carreira científica e um direcionamento claro de recursos investidos nas etapas iniciais de formação no quadro de bolsistas no país. Esse cenário aponta possíveis mudanças importantes tanto na dinâmica de acesso às etapas de formação subsequentes (mestrado e doutorado) quanto no perfil dos cientistas que alcançam as bolsas de produtividade. Nesse sentido, em termos de contextualização das dinâmicas de acesso a essas bolsas direcionadas aos pesquisadores que se destacam em sua área de conhecimento, podemos apontar um quadro mais relacionado à pós-graduação e a manutenção de um caráter de
seletividade. Isso se reflete na proporção ainda muito baixa de pesquisadores que conseguem acessar este benefício. No entanto, destaca-se o crescimento na oferta de bolsas nível 2, como mostra o gráfico a seguir. Gráfico 2 Número absoluto de bolsas de produtividade oferecidas pelo CNPq por ano e nível Fonte: CNPq/AEI. Elaboração própria. Os dados em questão expressam de forma clara a estagnação no oferecimento das bolsas em todos os níveis ao longo do período analisado, com exceção do nível 2 (mais baixo na estrutura proposta pelo CNPq, como já foi apontado anteriormente). Agrupamos os níveis na legenda do mesmo modo como se organizam hierarquicamente. A categoria mais alta (SR) e a mais baixa (2F) foram criadas apenas em 2007 e apresentam poucos contemplados. Neste sentido, podemos analisar o nível 1A como o tipo de bolsa que historicamente foi oferecido aos pesquisadores mais importantes e conceituados. O nível 2 pode ser pensado tanto como porta de acesso aos demais níveis em uma carreira muito promissora quanto patamar no qual o bolsista que apresenta uma produção acadêmica importante e continuada permanece durante longo período. É interessante notar que é justamente neste segmento onde se observa um intenso crescimento (o contingente de
bolsistas mais que dobram no período em questão) 5. Em termos de estratificação isso reflete uma base de pesquisadores que se alarga mas um topo que continua bastante restrito. A questão posta diante deste crescimento do nível 2 no período recente é em que medida ele pode pressionar no médio prazo um aumento do número de bolsas nos níveis mais altos subsequentes. Isso porque necessariamente para acessar os níveis mais altos todos os pesquisadores começam neste nível. Por outro lado, o número de pesquisadores que perde o benefício não é tão baixo e muitos não terão uma trajetória tão ascendente já que o montante de bolsas diminui conforme aumenta o nível hierárquico. Nesse sentido é interessante observar que diferentemente do que seria de se esperar o número absoluto de bolsas oferecidas não cai diretamente conforme aumenta o nível. Os dados do gráfico mostram que o montante de bolsas 1A é praticamente o mesmo do montante de bolsas 1B. Na realidade as dinâmicas de estratificação são bastante distintas dependendo da área de conhecimento. Conforme já pontamos em trabalho anterior (Guedes, 2013), quando analisadas de modo agregado, as bolsas de produtividade apresentam direta relação entre nível hierárquico 6 e presença masculina: quanto mais alto o nível maior é a proporção de homens. Esse peso varia gradativamente de forma crescente entre 62% (no nível 2F, mais baixo) e 77% (no nível Senior, mais alto). Um elemento importante é que mesmo nesta distribuição desagregada por níveis a presença feminina quase não varia na última década. Ou seja, mesmo nos estratos mais baixos não percebe-se um avanço feminino. No nível 2 a proporção de mulheres era 37% em 2001 e passa a 38% em 2011. No nível 1A a proporção de mulheres era 22% em 2001 e passa a 23% em 2011. Tanto em um extremo quanto no outro se constata que as mudanças nessa perspectiva macro são tímidas. Os níveis Senior e 2F não foram utilizados como parâmetro do período porque foram criados posteriormente (o primeiro em 2007 e o segundo em 2009). 2. Algumas dimensões analíticas da presença feminina no quadro de bolsistas de produtividade O problemático acesso feminino aos postos mais altos dentro de uma hierarquia profissional, como apontam diversos autores, ocorre também no mercado de trabalho científico (Leta, 2003; 5 Apesar da clara estratificação das bolsas oferecidas pelo CNPq a esta elite de pesquisadores o pertencimento (ou não) ao quadro acaba sendo o grande elemento de distinção, mais do que o nível da bolsa concedida. 6 2F representa o mais baixo e Senior (SR) o mais alto.
Velho e Prochazka, 2003; Tabak, 2002). Nesse sentido, uma primeira questão a ser investigada é por que causas se explica a estagnação das proporções de homens e mulheres na última década independentemente do nível. Segundo o banco de dados e estatísticas do CNPq\ AEI, tendo como referência apenas o ano de 2011, vemos que há uma clara prevalência de bolsistas mulheres nas modalidades iniciantes: em relação ao total de bolsas de Iniciação Científica, o contingente feminino chega a 56%. No mestrado e doutorado os patamares são próximos com pequena maioria feminina, 52% e 51% respectivamente. No pós-doutorado as mulheres continuam representando 58% do total de bolsas concedidas. No entanto, é interessante perceber que entre os bolsistas de produtividade em pesquisa, estrato no qual estão os pesquisadores mais bem avaliados do país, as mulheres passam a representar apenas 32%. Ao desagregarmos este dado por categoria vemos que as mulheres têm um peso relativo que cai conforme sobe o nível hierárquico. Enquanto entre os pesquisadores avaliados na categoria 2F (mais baixa) as mulheres representam 29,5%, nas categorias 1 A quanto e Sênior (mais altas) o peso feminino cai para apenas 23,7% e 24,4% respectivamente. O gráfico a seguir ilustra de forma clara essa tendência. Gráfico 2 - Distribuição relativa dos bolsistas de produtividade por nível e segundo sexo (2013)
Fonte: CNPq/AEI. Elaboração própria. Esses dados mostram que também no campo científico há uma clara dificuldade de progressão feminina se tomamos como referência a dinâmica masculina. Evidentemente estas distribuições mudam significativamente dentro das grandes áreas e ao longo das séries históricas. Chama atenção, no entanto, a manutenção da baixa proporção de mulheres no segmento de bolsistas de produtividade no período recente. O quadro avançou pouco nos últimos dez anos. Comparativamente vemos que de 2001 para 2013 o peso relativo das bolsistas mulheres não aumenta muito nos extremos dos níveis, mas avança consideravelmente nos intermediários. No primeiro ano da série analisada vemos que a proporção feminina no nível 2 era 37,4% (o que, surpreendentemente revela uma queda feminina neste nível inicial), no nível 1D houve uma pequena melhora, de 32,3% para 34,3%; no nível 1C vemos o maior avanço, de 28% para 34%; no nível 1B também há uma melhora importante: de 27,1% para 32%; no nível 1A houve um reduzido aumento do peso relativo das mulheres que passam de 22,3% para 23,7% dos bolsistas. Esses dados revelam um cenário em movimento, mas é interessante notar que as principais mudanças no que tange a presença feminina neste quadro de destaque da ciência nacional não vem ocorrendo na base da pirâmide de bolsistas mas sim nos níveis intermediários. O dado agregado, contudo, mascara importantes diferenciações entre as grandes áreas conhecimento. Como mostra o gráfico a seguir, o peso de cada grande área é bastante diferenciado.
Gráfico 3 Peso relativo das grandes áreas de conhecimento no montante total de bolsas de produtividade do CNPq (2013) Fonte: CNPq/AEI. Elaboração própria. O gráfico mostra a alta concentração de bolsas na área de Ciências Exatas e da Terra (22%), área historicamente masculinizada e que segue com poucos avanços no que tange a presença feminina em seu quadro. A grande área de Ciências Biológicas, Engenharias e Ciências Agrárias também se destacam, sendo a primeira a única destas em que o peso relativo do contingente de pesquisadoras é equânime. Nesse sentido, parte da estagnação alardeada por análises recentes se relaciona ao fato de que as áreas com maior número de bolsas são exatamente aquelas nas quais as bolsistas mulheres tem um peso relativo reduzido. O gráfico a seguir ilustra essas distinções entre cada grande área.
Gráfico 4 Distribuição relativa dos bolsistas de produtividade do CNPq por sexo e segundo grande área de conhecimento Fonte: CNPq/AEI. Elaboração própria. Primeiramente o gráfico ilustra de modo claro que mesmo nas áreas tipicamente femininas nos cursos de graduação o peso relativo é próximo de um patamar de equilíbrio entre homens e mulheres. A única exceção é a grande área de Linguística, Letras e Artes, onde a presença feminina de fato é bastante superior à masculina. Em contrapartida, há três grandes áreas com expressivo peso no montante de bolsas cuja presença feminina é baixíssima (abaixo de 30% dos bolsistas). Isso sugere que em todas as áreas há uma sub-representação das mulheres neste segmento mais elitizado de pesquisadores. Essa tendência ressalta um ponto em comum entre as carreiras acadêmicas e o mercado de trabalho em geral: o padrão de segmentação feminina em áreas menos valorizadas socialmente. Parece-nos que ao mesmo tempo em que há a manutenção disso assiste-se também ao avanço das pesquisadoras em novas áreas, dentre as quais destacaríamos particularmente as Ciências Biológicas e Ciências da Saúde.
Considerações Finais Pensar as dinâmicas de progressão na carreira científica a partir da variável sexo é muito relevante no caso brasileiro, sobretudo em função de nosso problemático acesso feminino a postos de comando/ poder decisório. No caso das carreiras científicas, e particularmente das bolsas de produtividade, o lento avanço das mulheres nos postos mais altos da hierarquia acadêmica contrasta com o rápido e intenso processo de escolarização feminina na história recente de nosso país. Essa breve análise se insere em um esforço de pesquisa mais amplo no qual uma série de articulações da variável sexo do bolsista com áreas de conhecimento mais desagregadas e com a variável idade do pesquisador que é contemplado com a bolsa de produtividade vem abrindo novas chaves de leitura em relação ao processo de entrada das mulheres neste seleto grupo. Em linhas gerais, podemos afirmar que esse é um cenário em movimento, mas as rupturas e continuidades que marcam as distintas áreas do conhecimento apontam nichos de maior avanço e áreas onde a mudança se processa de modo muito mais lento. Como estas costumam ser aquelas mais valorizadas e contempladas com maior número de bolsas cabe um olhar mais cuidadoso sobre os processos institucionais e as razões históricas da não entrada feminina nestes setores. Referências Bibliográficas FERREIRA, L. O.; AZEVEDO, N.; GUEDES, M. C.; CORTES, B. Institucionalização das ciências, sistema de gênero e produção científica no Brasil. História, Ciências, Saúde- Manguinhos, v. 15, 2008. GUEDES, M. C. A presença feminina nos cursos universitários e pós-graduações: desconstruindo a idéia da universidade como espaço masculino. História, Ciências, Saúde- Manguinhos, v. 15, 2008. LETA, Jacqueline As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil de sucesso. São Paulo, Estudos Avançados, 17 (49), São Paulo, 2003.
TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora. Estudos sobre a ciência no feminino. Rio de Janeiro, Garamond, 2002. VELHO, Léa; PROCHAZKA, Maria Viviana. No que o mundo da ciência difere dos outros mundos? www.comciencia.br/reportagens/mulheres, SBPC/Labjor, 2003.