Trauma, uma nova perspectiva sobre um real Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

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Transcrição:

Opção Lacaniana online nova série Ano 6 Número 16 março 2015 ISSN 2177-2673 Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros O verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua : quando Lacan diz isso, que perspectiva sobre o trauma se descortina, que caminhos ele abre para pensarmos o trauma na experiência da psicanálise e no atual momento da civilização? A intolerância a tudo o que escapa à causalidade programada e prevista pela ciência é considerada traumática, e as mais variadas técnicas são desenvolvidas para capturar, prevenir ou eliminar seus efeitos que começam a surgir de todo lado. Quando Lacan fala do trauma da língua, ele se refere a um outro tipo de generalização do trauma, o do impacto das palavras escutadas, das frases pronunciadas que incidem sobre o corpo sem que tenha sido possível naquele momento lhe atribuir um sentido. Abordar o trauma como conceito, que é a proposta desta plenária, nos leva a nos perguntar como situá-lo, para que ele possa nos orientar para lidar com aquilo que da experiência humana ficou incompreensível, inarticulável, e, dessa forma, paradoxalmente fora de uma apreensão conceitual. Dizer incompreensível, inarticulável, indica o impensável da experiência traumática, e aponta para sua dimensão de buraco aberto na relação do sujeito com um Outro, antes mesmo que esse Outro possa se constituir como um lugar onde se buscar respostas para aquilo que não se entende, mas que deixa marcas. A abertura desse buraco é correlativa a um gozo em excesso, em um corpo que se goza só, sem referência possível a um Outro capaz de oferecer algum recurso para lhe servir de mediação, para simbolizálo, metabolizá-lo. O buraco aberto fica assim ocupado por 1

um corpo estranho, que insiste em sua opacidade, que se fixa, tornando a vida difícil de suportar a cada vez que certos acontecimentos, muitas vezes insignificantes em si, evocam esse ponto, essa ferida incurável. Abordar o conceito de trauma a partir da indicação de Lacan em seu ultimíssimo ensino, como relação do falasser com a língua, pode orientar nossa maneira de acolhê-lo e de fazer face ao empuxo atual da civilização, que considera que se poderia anulá-lo e eliminar seus efeitos, de forma a não perturbar o desenrolar da vida segundo as exigências da produção e do consumo. Dizer que o trauma é da língua orienta, porque a generalização do trauma passa a ser correlativa à maneira como a linguagem incidiu para cada sujeito, o que é bem diferente do anonimato do trauma indicado no transtorno do estresse pós-traumático, suposto ter sido sentido da mesma forma por todos que sofreram o mesmo impacto de um acontecimento imprevisto, sem considerar que encontro inominável com o gozo já realizado esse novo acontecimento provocou. Os ditos e os acontecimentos que causaram perplexidade não são possíveis de generalizar, pois mesmo que tenham sido escutados e vividos por mais de um pelos membros de uma mesma família, por exemplo, a emoção que produziu em cada um é muito particular. O trauma, troumatisme como indica Lacan equivocando com tropmatisme, buraco e excesso, insiste com suas marcas indeléveis, que se referem ao mais singular de cada um e requer uma forma de defesa para evitar o retorno incômodo de um gozo fora de sentido, um acúmulo de excitações que se situam além do princípio de prazer, além do que se pode contabilizar e eliminar. O valor traumático de um acontecimento depende de certas condições e tem consequências imprevisíveis, segundo as vicissitudes do caminho seguido para tratá-lo. Daí o 2

conceito de traumatismo incluir não só o acontecimento, mas também os seus efeitos, o que faz com que o valor traumático de um acontecimento só possa ser situado a posteriori, a partir das operações que ele convoca. Simbolização e seu limite Para podermos entender o que indica Lacan ao dizer que o núcleo do trauma é a relação com a língua, é preciso lembrarmos do que ele falou sobre o significante como parasita do corpo 1. A interferência das palavras sobre os corpos não resulta somente em simbolizá-los, ou significantizá-los, em produzir uma extração do gozo, deixando nele um lugar vazio, inscrevendo nele uma falta, que abre para um uso diversificado e encadeado dos significantes na língua pessoal de cada um. Os significantes, as palavras, se corporificam, causando um impacto no corpo, desregulando o gozo que não pode ser todo simbolizado, mas que exige algum tipo de tratamento para que tanto o gozo como o corpo se tornem suportáveis. Jacques-Alain Miller, em seu curso sobre O ultimíssimo Lacan, 2 se refere à operação da corporização como o avesso da simbolização. É no avesso da simbolização que encontramos o seu limite. Nem tudo pode ser simbolizado. O processo de simbolização que o trauma convoca e do qual o psicanalista pode ser parceiro, não implica na anulação dessas marcas, e o apagamento que produz é bem diferente daquele que propõe a civilização atual, pois ele se constitui em um tipo de recobrimento que produz um vazio, que inscreve uma falta. Quando o analista é convocado a intervir nessas situações, ele não se oferece apenas como um herói da hermenêutica, doador de sentido, como indica Laurent em seu texto sobre O avesso do trauma 3, pois ele cuida para que o sentido produzido mantenha aberto esse vazio, que ele vem apenas circunscrever. Nessa 3

indicação de Laurent se articulam os dois sentidos do trauma, aquele em que o real faz furo no simbólico e aquele em que o simbólico é real, pedaço de língua fora de sentido, que permanece como parasita no corpo, marca indelével da não relação sexual. Temporalidade do trauma Chegamos então à concepção freudiana da temporalidade do trauma, que se inscreve no processo de causalidade psíquica e convoca a invenção do inconsciente. A necessidade de dois tempos está intimamente ligada à tese freudiana de que o traumatismo é essencialmente sexual. No caso Emma 4, o valor traumático do acontecimento de corpo experimentado na cena com o proprietário da confeitaria, que ri ao tocar seus órgãos sexuais por cima da roupa, aos oito anos, se dá a partir do sentido que ele toma a posteriori, a partir da primeira cena, que é lembrada em análise, na qual os dois vendedores da loja, em que ela entra sozinha aos 12 anos, estão rindo. O que liga uma cena e outra é o riso enigmático presente nas duas cenas. Só se pode localizar o mal-estar provocado pela primeira cena a partir do vínculo estabelecido com a segunda cena, mais antiga. Entre um tempo e outro opera, segundo Freud, o recalque, que conta com a construção da fantasia para se produzir e que pode ser localizado a partir de seu retorno nas formações do inconsciente e na reconstrução da fantasia sob transferência. Entre uma cena e outra se deram as modificações corporais próprias à adolescência, é nisto que insiste Freud até um certo momento de sua elaboração. Lacan, sensível à pesquisa de Freud sobre o encontro com o real por trás da fantasia, vai indicar sua emergência na tiquê, no encontro faltoso, encontro marcado com um real que escapa 5. É esse encontro faltoso que está em jogo no sexual, é o diferencial que ele inscreve que move a 4

repetição e atualiza a cada vez o encontro com o ponto mais cruel do objeto, ali onde se revela sua inadequação, sua impossibilidade interna de responder pelo que nele se busca encontrar. É a forma que Lacan, já no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, introduz o que mais tarde será elaborado com outros referenciais, a não relação sexual, a impossibilidade de complementaridade com o objeto, que só pode ser reencontrado a partir de uma perda inaugural, o que vai ter consequências no encontro sexual, na impossível proporção entre os sexos. O encontro faltoso com o real vai aparecer no sonho analisado por Freud em seu texto sobre A interpretação dos sonhos 6, e que é retomado por Lacan em seu Seminário 11 7. Nesse sonho se dá o encontro do pai com seu filho morto, que lhe diz: pai, não vês que estou queimando?, e que Lacan indica como o encontro com o ponto mais cruel do objeto, que só o pai enquanto pai experimenta, o impossível, na própria função paterna, de evitar a morte de seu filho, e o reencontro com o que se inscreve como falha estrutural entre os dois. O ponto mais cruel, onde o objeto como suplemento e não como complemento ou seja, a voz, marca o excedente pelo qual se tenta simbolizar o que escapa à simbolização na perda de um filho. O que Lacan, com sua elaboração do objeto a, acrescenta em seu retorno a Freud, nos ajuda a apreender a função do trauma, que, dependendo da forma como será acolhido, cumprirá sua função de provocar um trabalho de elaboração, que precisa produzir um novo tipo de furo ali onde se foi tomado por um tipo de excesso sem bordas. Esse furo, que o encontro com o analista pode provocar, necessita conjugar o trauma como buraco no simbólico com seu avesso, enquanto buraco no real, a não relação sexual. O sentido que ganha o acontecimento experimentado por Emma aos doze anos, a partir de sua vinculação ao 5

acontecimento dos oito anos, não consegue anular o diferencial traumático, no qual o gozo experimentado está correlacionado a uma não complementaridade com o objeto. Segundo Freud, a formação simbólica desse tipo estável, que constitui a função que excede a defesa normal. O que excede, o objeto que descompleta, aparece a partir do trabalho feito para dar uma significação à cena primordial. Isto já nos permite fazer uma diferença entre o excesso e o excedente que Lacan nomeou objeto a, e com isso indicou a função da fantasia para localizar esse excedente, que já faz furo no excesso. Como ler nesse diferencial traumático um ponto de impossível, que abre a novas saídas sintomáticas? Um exemplo: uma forma de tratamento do trauma que não é pela doação de sentido, mas por uma construção bem particular, é representado pelo vídeo de arte realizado por Julieta Hanono, produzido no apartamento onde ela ficou presa quando foi sequestrada pela ditadura militar da Argentina. Vocês terão oportunidade de vê-lo amanhã no intervalo do almoço. Ao tratamento pela via do sentido que terá sido feito em um primeiro tempo, com a ajuda de sua análise, não temos acesso. Mas o que podemos deduzir é que esse trabalho não visou nem anular a marca da experiência, nem tamponar o furo no sentido que ela inscreveu, e o fora de sentido que ela reascendeu. Ao retornar depois de anos a esse lugar, Julieta coloca a filmadora no centro desse apartamento, ponto panóptico de onde todos os cômodos poderiam ser vistos e que era impossível de ver quando se estava em qualquer um deles. Desse lugar ela vai fazendo um giro com a câmera até retornar ao ponto inicial. Isso se repete várias vezes. Vendo este vídeo, o que se produziu em mim foi a expectativa de algo imprevisível, tamanha era a inquietante estranheza que esse apartamento vazio e um pouco dilapidado 6

provocava em mim, embora não chegasse a produzir nenhum afeto de temor ou de angústia. Quando a câmera retorna ao ponto inicial, produz-se um alívio. Que posso dizer dessa experiência? O movimento da câmera circunscreveu um vazio, abriu um buraco na própria cena traumática, ao mesmo tempo insuportável e impensável. A inquietante estranheza ineliminável deu lugar a uma sensação de alívio e reconectou com um a-mais de vida que pode fazer parte da experiência de um sobrevivente. O objeto como excedente na cena, o olhar em seu ponto de opacidade, produz um efeito novo. Estar no lugar de onde se poderia ver não anula a opacidade da experiência vivida, mas circunscreve um vazio central que produz um furo, uma hiância, ali mesmo onde esse excedente se aloja, produz um furo no excesso traumático e no real sem bordas, que ameaça sempre retornar aonde menos esperamos. Seria essa uma modalidade de tratar o real que aparece no encontro com a crueldade radical do Outro? Hanna Arendt, ao se retificar por ter se referido à banalidade do mal, diz que o bem pode ser banal, mas nunca o mal: o mal pode ser radical, e não banal, quando se apresenta em sua face de crueldade sem limite. Julieta Hanono nos transmite com essa obra como ela conseguiu produzir silêncio no que antes era o ruído sem sentido do trauma, que não cessava. Para tratá-lo em um primeiro momento, ela precisou não só se afastar de seu país como de sua própria língua materna, falar outro idioma e ter a chance de encontrar um analista. Esse trabalho, que não é de sentido, mas se assemelha mais ao que Laurent se referiu como uma instalação precária, só pode acontecer se considerarmos que o trauma é um ponto de apoio e de possível reviramento, que não pode e não deve ser anulado e nem desconsiderado por uma cultura do bem-estar que não quer saber de suas consequências enquanto buraco aberto, não só no simbólico, no sentido, 7

mas no real, através do qual cada um se reconecta com o que lhe é mais próprio e que abre para uma invenção singular. Lacan, em seu Seminário De um Outro ao outro 8, diz que o inconsciente a ser decifrado, aquele que quer dizer alguma coisa, é uma substituição ao isso não quer dizer nada, não tem sentido nada que se diga sobre isso. Os passos que Lacan dará ao longo de seu ensino reforçará esse desafio de manter aberto como um furo no sentido, o que fica como fora de sentido no centro mesmo do que isso quer dizer. O fora de sentido produz um furo nos enunciados suscitados para dizer a verdade sobre a experiência. Exigência da verdade que é própria do supereu, diante do qual se é necessariamente impotente, se cai necessariamente no emaranhado de um gozo utilitário, que mantém o Outro da exigência. E que afasta de um gozo que não serve para nada. Extrair do gozo a exigência desmesurada do supereu permite, enfim, suportar um gozo que não serve para nada, sem utilidade no mercado de trocas, mas que, no entanto, faz as trocas serem bem mais humoradas e o gozo fálico menos exigente. Esse é o alívio que pode ser produzido pela abertura desse buraco no centro mesmo da cena traumática, um buraco diferente daquele produzido pelo trauma, pois com ele se pode fazer enodamento, sinthoma e transmissão. É uma outra lógica, ou melhor outra topologia da causalidade que nos permite reler os dois tempos do trauma, talvez acrescentando o terceiro, aquele que produz o enodamento sinthomático. A causalidade freudiana tem uma complexidade diferente da causalidade natural, e é a própria ideia do trauma e a invenção do inconsciente que produzem essa subversão. A subversão que Lacan vai produzir quando diz, como nos aponta Jacques-Alain Miller, que o verdadeiro núcleo traumático não é a sedução, a ameaça de castração, a observação do coito, nem a transformação do estatuto de 8

tudo isso em fantasia, não é o Édipo e a castração, mas a relação à língua, convoca uma maior diversidade nas modalidades de tratamento do trauma, que não se reduz ao recalque e à repetição provocada pelo encontro faltoso com o real. As invenções psicóticas, as diferentes formas de instalações produzidas pelos autistas, podem se inscrever também como modalidades de tratamento do trauma da língua. 1 LACAN, J. (2005/1975-1976). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. A questão é antes de saber porque um homem normal, dito normal, não percebe que a palavra é um parasita, que a palavra é un placage, que a palavra é a forma de câncer de que o ser humano está afetado. 2 MILLER, J.-A. (2013) El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós. 3 LAURENT, É. (2002, jun.-jul.). El revés del trauma. In: Virtualia Revista digital de la Escuela de la Orientacón Lacaniana, nº 6. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/006/pdf/elaurent.pdf>. Acesso em 09/09/2014. 4 FREUD, S. (1977/1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completes de Sigmund Freud, vol. I. Rio de Janeiro: Imago Editora, p. 464. 5 LACAN, J. (1985/1963-1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 55. 6 FREUD, S. (1977/1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completes de Sigmund Freud, vol. v. Rio de Janeiro: Imago Editora. 7 LACAN, J. (1985/1963-1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 8 IDEM. (2008/1968-1969). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 273. 9