Por Risonete Batista de Souza*

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Transcrição:

Floema - Ano V, n. 5, p. 173-180, jul./dez. 2009 Castro, Bernardo Monteiro de. As cantigas de Santa Maria: um estilo gótico na lírica ibérica medieval. Niterói: EdUFF, 2006. (Coleção Estante Medieval). Por Risonete Batista de Souza* As cantigas de Santa Maria: um estilo gótico na lírica ibérica medieval, de Bernardo Monteiro de Castro, é o primeiro volume da coleção Estante Medieval da EdUFF. Conforme informa a Profa. Maria do Amparo Maleval, coordenadora da coleção, seu objetivo é facilitar o acesso de medievalistas brasileiros a textos de fontes primárias medievais, estudos e teses de doutorado sobre o Medievo considerados relevantes. A obra que a abre enquadra-se nesse propósito. Defendida em 2002, na Pós- Graduação em Letras da PUC-Minas, sob a orientação da Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004 logrou ser premiada, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), como a melhor tese do biênio 2002-2003. O prefácio da diligente orientadora informa sobre a trajetória acadêmica do autor. É ela que dá notícia sobre a primeira publicação em livro, nos Estados Unidos, pela editora Juan de la Cuesta, Newark, Delaware, na série Hispanic Monographs, em 2005. Ressalte-se, entretanto, que o acesso a essa edição não é fácil para os leitores brasileiros, o que justifica a nova edição brasileira. A obra de Bernardo Monteiro de Castro propõe a análise das cantigas de Santa Maria como representativas do estilo gótico na literatura. Nesse intento, apóia-se nos estudos de Michael Camille, em sua obra Gothic art, publicada em Londres em 1996 pela The Everyman Art Library, segundo a qual a arte gótica não deve ser vista apenas sob ponto de vista formal, com base em padrões arquitetônicos característicos, mas * Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

174 Risonete Batista de Souza como resultado de uma mudança significativa na dinâmica social que permite ao homem da época ver de modo diferente o tempo, o espaço, a natureza, Deus e a si mesmo. A nova cosmovisão é própria do renascimento cultural, fruto da arrancada econômica, cujos efeitos são percebidos de forma mais clara a partir do século XII, no ocidente europeu. Para dar conta da análise desses aspectos, o livro está dividido em seis capítulos: O estilo gótico e as Cantigas de Santa Maria, O espaço, O tempo, O Deus, A natureza, O si mesmo. A introdução ocupa somente quatro páginas e tem como foco a justificativa da trajetória acadêmica do autor, as razões que o levaram à escolha do tema e à descoberta do trabalho de Michael Camille, que lhe forneceu o instrumental teórico para empreender a análise segundo a qual as Cantigas de Santa Maria, diferentemente das lírico-amorosas, seriam representativas do estilo gótico, cuja estética substituía pouco a pouco o românico na Europa medieval. O primeiro capítulo é o mais global e procura explicitar o que o autor entende por estilo gótico, bem como a apresentação do contexto cultural da Baixa Idade Média, com foco no século XIII, época em que foram compostas as cantigas que constituem o corpus do trabalho, caracterização do momento histórico em que o cancioneiro foi elaborado, sobretudo em relação à História, à Estética e à Filosofia. A discussão do contexto histórico é fundamental para o entendimento da gênese do estilo gótico, fruto do florescimento urbano do século XII. A virada econômica, que impulsionou o ressurgimento do comércio, permitiu a projeção da nova classe social emergente, a burguesia, o crescimento das cidades, desestabilizou as estruturas feudais e contribuiu para a ascensão da figura do rei. A prosperidade econômica possibilitou o investimento na cultura, nas ciências e nas artes. A expressão emblemática do estilo gótico é, sobretudo, a construção das majestosas catedrais, mas não se restringe a elas. O conhecimento descentraliza-se e deixa de ser exclusivo dos clérigos. Surgem, assim, os intelectuais laicos. Esse panorama é necessário para se fazer a inserção da corte afonsina na nova dinâmica política, social e cultural da Europa medieval.

Castro, Bernardo Monteiro de. As cantigas de Santa Maria: um estilo gótico... 175 À virada econômica associa-se a mudança dos pressupostos filosóficos que balizaram o período românico. A nova filosofia de Santo Tomás de Aquino substitui a de Santo Agostinho, que vê as coisas como alegorias. A escolástica traz um novo conceito de beleza, defendendo que ela não existe por si só, mas se constitui como uma manifestação do divino. Para ela, os elementos inteligíveis são o ponto de partida para a obra de arte. Toda obra carecia de razão. Castro destaca que a relação entre a doutrina escolástica e a estética gótica já fora feita por Panofsky, em Arquitetura gótica e escolástica, (tradução brasileira da Martins Fontes, 1991). Na primeira, a palavra chave é a razão; na outra, a proporção. Ressalta, ainda, que Kinkade, em Scholastic philosophy and the Cantigas de Santa Maria, publicado na coletânea, já defendera a idéia de que há estreita relação entre a escolástica e as Cantigas de Santa Maria. Considerando que a escolástica é o resultado da necessidade de se reconciliar conhecimento científico pagão e fé cristã, vê na obra de Afonso X uma estrutura cuidadosamente pensada para atender aos princípios da nova teologia cristã. O plano geral do cancioneiro mariano seria uma prova do rigor estético próprio da arquitetura gótica. Embora reconheça que esse raciocínio se aplica à poesia mariana, Castro discorda de Kinkade, que minimiza a influência da cultura folclórica na poética afonsina. Essa influência, segundo o autor, vai além dos aspectos formais, mas abrange também o temático, ao afirmar que se Afonso X fosse tão escolástico e adepto da lógica, não seria tão sensível ao misticismo, à astrologia e à cabala. Ao contrário dos pensadores religiosos, Afonso X não se esquivou em sua obra dos temas metafísicos, dando preferência aos sentimentos hostis e aos vícios. Nesse ponto, Castro vai ao encontro da proposta de Jacques le Goff, que vê na produção cultural que floresce a partir do século XI, no ocidente medieval, uma reação da cultura laica à clerical. Segundo essa concepção, os leigos letrados apropriam-se dos temas, dos motivos, bem como dos aspectos formais da cultura popular, folclórica, e modificam-nos e adaptam-nos para expressar seus valores culturais e ideológicos.

176 Risonete Batista de Souza A associação entre a obra mariana de Afonso X e a estética gótica, a rigor, não é de fato inédita. O autor parte das concepções de Snow, em Alfonso X y las Cantigas : documento personal y poesia colectiva, publicado em 1999, que define as Cantigas de Santa Maria como uma espécie de catedral literária gótica, defendendo que os conteúdos, temas e arquitetura do projeto seriam semelhantes às catedrais, e de Castillo, no artigo Panorama de las artes em el reinado de Alfonso X, publicado em Cuadernos hispanoamericanos, n. 410, 1984, para quem o projeto do cancioneiro mariano assemelhava-se ao projeto gótico da exaltação do poderio da Igreja, no caso do rei Sábio, a obra deveria por em relevo o esplendor da monarquia ascendente. Castro ressalta, porém, que a influência da poesia tradicional e folclórica não pode ser minimizada. Não se esquece da influência árabe na arte e cultura hispânica da época, presente nas Cantigas de Santa Maria, sobretudo na estrutura do zejel. A idéia é identificar a influência gótica na literatura propriamente dita. Primeiramente, destaca o caráter civil da nova estética, que se liberta do foco religioso. Destaca, entretanto, que, em sua visão, o elemento mais importante da estética gótica é seu caráter sensual, ressaltando que sensual, aqui, refere-se ao gozo estético dos sentidos, à experiência sensorial plena de prazer, de encantamento. Artistas e apreciadores da arte são sensíveis à importância do prazer. As novas categorias sociais favorecidas pela urbanização e pelo enriquecimento ganham o gosto pelo desfrute. Tanto a moral eclesiástica quanto a arte gótica realizam a triangulação entre o humano e o divino. No primeiro caso, o veículo estruturante é a razão, no segundo, a fruição. A partir do segundo capítulo, passa à análise dos elementos apontados como característicos da visão de mundo que se reflete no novo estilo: o espaço, o tempo, o Deus, a natureza e o si mesmo. Ressalva que somente os textos das cantigas serão objeto de análise. Não são estudadas, pois, a música nem a iconografia. A edição das Cantigas de Santa Maria utilizada pelo autor é a de Walter Mettman, publicada em Madrid pela editora Castalia, em 1989, em três volumes.

Castro, Bernardo Monteiro de. As cantigas de Santa Maria: um estilo gótico... 177 Uma idéia-chave defendida por Castro é que as duas vertentes da poesia trovadoresca peninsular pertenceriam a estéticas diferentes. Enquanto as Cantigas de Santa Maria seriam representativas da estética gótica, as cantigas lírico-amorosas pertenceriam à estética românica. Seu objetivo é demonstrar que a angústia da morte, o amor impossível e infrutífero são o leit motif do amor cortês, para o qual não há esperança de futuro. A obra gótica, ao contrário, projeta-se para o futuro, parece tender ao inacabado. Essa proposta de análise é instigante, mas carece de uma argumentação mais sólida, que extrapole os limites dos dois exemplos cotejados, a cantiga de amor, de autoria de Gil Perez Conde, Mia senhor, já eu morrerei, e a cantiga de amigo, Sedia-m eu na ermida de San Simiom, de Meendinho. É preciso levar em conta o fato de que tanto as cantigas lírico-amorosas quanto as marianas são produzidas no mesmo ambiente e pelos mesmos agentes culturais; usam a mesma língua, o galego-português, e lançam mão dos mesmos recursos formais, embora as últimas apresentem predileções por alguns recursos estilísticos que aparecem mais esporadicamente nas primeiras. A arte gótica teve sua gênese na cidade, mas ainda não era uma arte burguesa, antes era sacra e régia. Castro destaca que, do ponto de vista dos temas, as Cantigas de Santa Maria vão dar ênfase ao espaço urbano. Espaço de liberdade e de oportunidades, a cidade congrega e expõe, também, vícios e prazeres: os jogos, a luxúria, a usura, a gula, a cobiça. Esses temas abundam nas cantigas marianas, que abordam o cotidiano dos habitantes da cidade, transformam em personagens novos tipos humanos, característicos da nova composição social. Outro aspecto relevante é a expansão dos espaços que se materializa na dilatação das fronteiras tanto do poema como do reino afonsino. A constatação desses dados conduz o autor à hipótese de que as Cantigas de Santa Maria tivessem sido usadas para exaltar o projeto político do rei. O argumento mais forte evocado é a constatação da predominante ambientação dos milagres narrados no território recém conquistado e a exaltação de novos santuários em detrimento dos antigos, sobretudo, Santiago de Compostela. Seria esse silêncio proposital em virtude dos

178 Risonete Batista de Souza embates entre o rei e a nobreza da velha cepa? A inferência é convincente, sobretudo se consideramos os temas notadamente políticos abordados em outro gênero apreciado na corte afonsina: as cantigas satíricas. É preciso lembrar que a reconquista dos territórios dos muçulmanos estava inserida no projeto cristão das cruzadas, conseqüentemente, cada batalha vencida assume a conotação de uma vitória da Igreja de Cristo, representante, na terra, do verdadeiro Deus. Sabe-se que os monarcas de além Pirineus tomaram para si a tarefa de combater os mouros. Afonso X o fez dentro de seu próprio reino. Ainda em relação ao espaço, o autor chama a atenção para o fato de - do ponto de vista formal - as cantigas marianas aproveitarem o espaço gráfico de modo diferente das lírico-amorosas. O autor evidencia a recorrência do recurso dos enjambements. O texto extrapola os limites do verso, em busca de espaços mais amplos bem ao gosto do estilo gótico. Em relação à nova visão de tempo, busca-se entender como a arte representava o passado, o presente e o futuro. As bases são frágeis, mas é possível perceber um leve avanço na percepção do tempo. Embora ainda continuasse fundamentalmente cíclico, então, o tempo tornou-se passível de ordenação. O tempo era percebido como desdobramento do espaço. Da justaposição entre tempo profano e sagrado pode-se avançar na separação de ambos. Vale lembrar que o Cristianismo é uma religião histórica. Relevante é, também, a visão da divindade. O Deus gótico era próximo e ativo, se fazia presente, operava milagres, parece mais humanizado, mais próximo do homem. Um aspecto relevante da nova religiosidade é o tratamento dado aos mitos pagãos. Muitas das cantigas narram milagres que são, nitidamente, de origem pagã. Castro afirma categórico que o mito medieval de Maria recebeu influência dos antigos cultos de deuses que representavam a Grande Mãe, na região do Oriente Médio. Defende a idéia de que seu culto foi um impulso popular, espontâneo, não foi imposto pela igreja. Embora o Juízo Final ainda atormente o homem, a promessa de vida eterna se faz mais presente. A

Castro, Bernardo Monteiro de. As cantigas de Santa Maria: um estilo gótico... 179 possibilidade, ainda que remota, do Paraíso atenua a ameaça da punição. É preciso não esquecer que é nessa época que se institui o sacramento da confissão e se cria o Purgatório. Outro aspecto importante que o autor põe em evidência é o maior realismo, nas narrativas das cantigas, percebido também na abordagem da natureza. Embora seja vista como obra divina, é retratada de maneira menos alegórica e mais real. Os animais, os homens, os seres e elementos da natureza são retratados em suas funções reais. Por último, um aspecto deveras relevante é o senso de alteridade na arte gótica, que trata a realidade cotidiana descolada do ideal, conciliando forma e conteúdo, artista e receptor. O texto afonsino põe em destaque a metáfora, mas rejeita a alegoria. A narração do milagre, da maravilha tem função prática, objetiva comprovar o poder da Virgem e, quiçá, o valor de seu poeta. A consciência do autor ganha destaque nas Cantigas de Santa Maria. O trovador está presente em sua obra; fala da obra e de si, a obra é um ato de vontade. Faz propaganda de seu poderio político, da extensão de seu reino; identifica-se como rei e como poeta. A primeira pessoa está presente em um número significativo de cantigas. A consciência de autoria destaca-se na obra. Mas ao lado do autor está o rei, o homem e o cristão. Como esclarece, seu papel é amar, servir e trovar a Virgem. A obra, além de emocionar as pessoas, deveria, também, revelar a sensibilidade do artista, revelar sua excelência artística. Castro dá especial atenção a essa consciência de si, que é a grande novidade na arte da época. Os historiadores já haviam apontado o fenômeno de promoção do indivíduo, da pessoa, que se libertava do grupo. Georges Duby, na série de artigos sobre o amor cortês, crê que o a valorização do indivíduo já pode ser percebida na temática das cantigas lírico-amorosas occitanas. Portanto, a obra de Afonso X está em consonância com o seu tempo, ou seja, tal como as catedrais góticas, a poesia mariana em galego-português expressa a nova visão de mundo decorrente da virada econômica e, conseqüentemente, social e cultural ocorrida no Ocidente europeu, no período que os historiadores costumam denominar

180 Risonete Batista de Souza Renascimento, e que toma impulso a partir do século XII. Tal como a poesia occitana, as Cantigas de Santa Maria, assim como parte significativa das cantigas de temática satírica produzidas na corte castelhana do rei Sábio são expressão da expansão da cristandade e do fortalecimento das monarquias. Do exposto, fica clara a relevância da obra de Bernardo Monteiro de Castro como contribuição para entender melhor o papel da poesia mariana peninsular como instrumento de propaganda de um monarca que tem plena consciência da importância da expansão castelhana na Península Ibérica. Essa linha de análise permite questionar a crítica tradicional, que vê a poesia medieval peninsular como alienada da realidade, e abre perspectiva para uma releitura de toda a literatura produzida nesse período nos reinos ibéricos.