À espera da morte: testamentos e atitudes perante a morte (Santa Maria/1850-1900) *



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Transcrição:

À espera da morte: testamentos e atitudes perante a morte (Santa Maria/1850-1900) * Ana Paula Marquesini Flores ** Resumo Para uma análise das atitudes perante a morte na Vila de Santa Maria da Boca do Monte (R.S.) foram pesquisados um universo de 84 testamentos entre 1850 e 1900. Neste material foram analisadas as preocupações com os preparativos para a chegada da morte, as últimas vontades do testador, as recomendações para esta vida, os meios empregados nas tentativas de salvação da alma, do bem morrer e as inquietações com o pós-morte. O momento de construção destes materiais se dava, em sua maioria, quando os testadores acreditavam que a morte estava cada vez mais próxima. Em muitos casos o testamento era confeccionado como um meio de comunicação entre o mundo dos vivos e o sagrado, em que poderiam ser feitos os acertos de contas. Instruções para a quitação de dívidas em dinheiro e o número de missas a serem rezadas em nome de suas almas, a procura da Salvação. Palavras-chave: Atitudes perante a Morte, Testamentos, Santa Maria. Testamento, momento de confissão, de pesagem da vida, de preocupação, de espectativas e de acertos de contas. Momentos que fazem dos testamentos documentos de suma importância aos estudos das atitudes perante a morte. Que os tornam únicos, por serem momentos que não se pode enganar a morte como dizia Vovelle 1. Quando no Brasil do século XIX, uma pessoa sentisse a necessidade de fazer um testamento, este deveria seguir algumas regras. A pessoa deveria ser maior de quatorze anos, se homem, e maior de doze se mulher; a presença de testemunhas durante a confecção era obrigatória. Nos casos que o testador não soubesse assinar, caberia a quem lavrasse o testamento o ato da assinatura ou a uma das testemunhas. Após as assinaturas deveria ser feito * ** 1 Texto apresentado no IX Encontro Estadual de História ANPUH-RS/2008. Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). VOVELLE, Michel. Sobre a Morte. IN: Vovelle, Michel. Ideologia e Mentalidades. 2 ed.traduzido por Maria Julia Cottvasser. São Paulo: Brasiliense. p.127-150. 1991.

o instrumento de aprovação pública, validando o documento, também por meio de testemunhas 2. O direito de testar não era dado a todas as pessoas. Apenas os homens maiores de quatorze e as mulheres maiores de doze, que não fossem consideradas fora de suas consciências, ou acometidas de alguma doença que impossibilitassem de fazer o testamento e suas últimas vontades. Não poderiam testar também, os escravos, os surdo-mudos de nascença e os condenados 3. Com a morte do testador, sendo ele homem ou mulher e fossem casados, em primeiro lugar, seus bens eram divididos pela metade. Uma das metades caberia ao cônjuge vivo, a outra metade, referente ao defunto, era dividida entre seus herdeiros forçados: ascendentes e descendentes 4. Na ausência de pais vivos ou de filhos legítimos, o testador poderia legar todos os seus bens a quem desejasse. A parte restante da herança do testador, a sua terça parte, poderia ser legada a quem ele desejasse 5. Deste modo, segundo tais orientações, as pessoas que procuravam fazer um testamento possuíam algum tipo de bens, fossem eles móveis, semoventes ou de raiz que desejavam transmitir a outra pessoa após a sua morte. Esses bens poderiam ser dinheiro; móveis e utensílios para a casa; vestuário; roupa de mesa e cama; animais, gado vacum ou cavalar; escravos; terrenos; casas; etc. Para a Santa Maria da segunda metade do século XIX, foram analisados um total de 84 autos testamentais entre os anos de 1850 e 1900, armazenados em dois maços 6. Nos quais, pode-se analisar que diferentes pessoas elaboravam testamentos e por motivos diferentes. Deixavam seus bens para parentes e/ou para as pessoas mais diversas. Deixavam escritos pedidos e recomendações. Mostravam alguns padrões e algumas especificidades relevantes aos estudos da morte nessa sociedade. Essa Santa Maria da região central da Província do Rio Grande do Sul, um ponto de passagem para as demais localidades da Província, uma Santa Maria estratégica, formada por luso-brasileiros, índios, escravos, imigrantes europeus e por 2 Ordenações filipinas. Livro 4, tít.80. Disponível em: http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. 3 Ordenações filipinas. Livro 4, tít.81. Disponível em: http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. 4 Herdeiros forçados, isto é, ascendentes seriam os pais, e descendentes os filhos legítimos. 5 Ordenações filipinas. Livro 4, tít.96. Disponível em: http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. Sobre a terça ver também: REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. p.93. Ver também, FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no cotidiano da Colônia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1998. p.257. 6 Maços 2. Estante 149. Autos de número 40 ao 76. 1864-1882.; Testamentos. Cartório da Provedoria de Santa Maria. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maços 3. Estante 149. Autos de número 77 ao 134. 1882-1907.

gente vinda de outras Províncias do Império. Nessa Santa Maria, de acordo com as orientações de feitura de testamentos, muitos foram escritos e neles expressas as últimas vontades de seus testadores. Desejos dirigidos a esta vida e a vida do pós-morte. Últimos desejos e recomendações aos vivos e a comunicação com o mundo do sagrado foi estabelecida. Missas foram pedidas, contas foram pagas, filhos reconhecidos e sepulturas encomendadas. Testamentos feitos as presas no leito de morte e testamentos feitos como prevenção e com anos de antecipação. Tudo estabelecido em documentos que falavam pelo testador, e que alguns começavam mais ou menos assim: Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho, Espírito Santo, em cuja fé pretendo viver e morrer (...). Após o início do testamento ser feito com algumas frases remetendo ao sagrado e as crenças, o restante seguia um roteiro como que biográfico do testador. Nome completo, filiação (filho natural ou legítimo 7 ), naturalidade, estado civil (casado em primeira ou segunda núpcias), nome do cônjuge, a existência de descendentes (legítimos ou ilegítimos). Em alguns casos, na seqüência, era acrescentado o estado de saúde, a idade, e algum outro motivo para a elaboração do documento. O próximo passo seria a distribuição dos bens, justificando em alguns essa sua atitude. Após a legação dos bens, eram indicados os testamenteiros e as testemunhas, seguido por suas respectivas assinaturas, que asseguravam a autenticidade do ato testamental. Por fim, seguia-se a listagem e discriminação dos gastos com a formulação e requisitos legais do testamento. A ordem da elaboração e a descrição do testamento poderiam ser alteradas, de testamento para testamento, conforme os seus autores. Para que um testamento fosse feito era preciso que a pessoa tivesse bens e motivos. Os motivos eram os mais variados: a proximidade da morte, doenças, idade avançada, matrimônio, assegurar o futuro dos filhos, etc. As decisões para as elaborações, na maioria das vezes, coincidia em um momento em que as pessoas acreditavam que a morte estava próxima, em razão de acharem-se em idade avançada ou de estarem acometidos de alguma doença que pudesse acarretar a morte. O que tornava a confecção desses materiais uma espécie de 7 Filhos legítimos eram aqueles tidos dentro do casamento. Os filhos naturais eram os tidos fora do casamento e reconhecidos legalmente pelo progenitor. Os filhos ilegítimos eram os tidos fora do casamento e que não foram reconhecidos legalmente pelo progenitor. Para um melhor entendimento desta questão, ver os autos testamentais: Testamentos. Cartório da Provedoria de Santa Maria. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maços 2. Estante 149. Autos número 45, 1866.; Testamentos. Cartório da Provedoria de Santa Maria. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maços 2. Estante 149. Autos número 53, 1868.; Testamentos. Cartório da Provedoria de Santa Maria. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maços 2. Estante 149. Autos número 54, 1870.

exercício à espera da morte, preparano o testador para a sua chegada. Neste contexto, tanto homens quanto mulheres podiam realizar seus testamentos, ao contrário do que se possa pensar de que mulheres não possuíam bens. Os bens poderiam vir por meio de dote, casamento e administração dos próprios bens, adquiridos por meio de compras. A diferença do número de mulheres que testavam para a quantidade de homens não era muito alta. Em quanto 53,75% dos testadores eram homens, 46,25 % eram mulheres. Na Santa Maria dezenoviana, figuravam como principais motivos para a elaboração dos testamenetos, as doenças e as idades avançadas, (...) que me achando de cama e bastante enferma e temendo a morte que a todos é natural (...) 8 ; (...) já que em avançada idade e temendo a morte, privação da vida humana (...) 9. Como pode-se ver nos trechos anteriores, o medo da morte também fazia parte das preocupações e motivos para a elaboração dos documentos, assim como a insegurança em relação ao futuro. Sendo talvez o medo da morte e do desconhecido os que motivavam muitos dos outros medos e motivações. Para REIS, o temor da morte não era maior do que morrer sem estar preparado: O temor da morte, no entanto, não deve ser visto como o medo sem controle. O grande receio era mesmo morrer sem um plano, o que para muitos incluía a feitura do testamento. A preparação facilitava a espera da morte e aliviava a apreensão da passagem para o além. 10 A prevenção do futuro dos seus, estava relacionada em oferecer a segurança material possível, por meio dos bens destinados em testamentos, àqueles que ocuparam papéis importantes na vida dos testadores. Conforme relatado, essas pessoas poderiam ser filhos, cônjuges, afilhados, sobrinhos, escravos, amigos, médicos e enfermeiros. Havia uma maior preocupação por parte dos testadores em deixar tudo especificado em forma de testamento, também como um meio do testador assegurar-se que os beneficiários usufruiriam dos bens herdados. A preocupação em torno dos preparativos para a chegada da morte também estava expressa através da prevenção e antecipação no lapso de tempo entre a possibilidade de sua ocorrência e as datas nas quais os testamentos foram feitos.examinando quanto tempo antes a 8 9 10 Maços 2. Estante 149. Autos número 46, 1868. Maços 2. Estante 149. Autos número 55, 1870. REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. p.95.

maioria dos testadores de Santa Maria da Boca do Monte se preparava para a chegada da morte. Porque, a questão de deixar tudo organizado e esquematizado antes do passamento 11, era algo de extrema relevância nessa sociedade. Como J.J. Reis destacou, poderia ser prejudicial para o destino da alma do testador não deixar os seus negócios, tanto os terrenos quanto os sagrados, resolvidos ainda em vida 12. Com a análise dos autos foram obtidos os seguintes resultados: 36,47% dos testadores fizeram seus documentos de últimas vontades no mesmo ano em que morreram; 14,11%, um ano antes; 23,52% de 2 à 5 anos antes; 10,58%, de 6 à 10 anos antes e, 14,11%, o fizeram com mais de 10 anos de antecedência. Este exame demonstra que por maior que fosse a preocupação com a organização da vida, antes que esta chegasse ao seu fim, é fato que a maioria dos testadores optava pela elaboração desses documentos um ano antes ou no mesmo ano de sua morte, representando 50,58% do universo pesquisado. Decisão tomada, por anteverem a morte bastante próxima, certamente por terem conhecimento de seus problemas de saúde, e/ou por ter uma idade avançada, e estimarem que o tempo de vida que lhes restava exigia a confecção dos seus legados e últimas vontades. Mas, nem todos os testadores fazeram os seus testamentos próximos de suas mortes, alguns resolveram se prevenir e fazer o acerto de contas, com até mais de 20 anos de antecedência 13. A inexistência de filhos e a denominação da terça, também influenciavam na decisão de confecção de um testamento. Entretanto nem sempre os testadores declaravam ter, ou não, filhos legítimos e/ou ilegítimos. Entre, os que fizeram esse tipo de declaração, cerca de 69,13% deles diceram que não possuíam filhos, o que pode ser considerado um número relativamente alto em relação ao número total de fontes. Quando os testadores não possuíam herdeiros ascendentes ou descendentes (salvo em alguns casos), acabavam deixando a sua terça para o cônjuge, sobrinhos (a), afilhados (a) ou a outros que considerassem dignos de recebê-los. Este foi o caso de Maria Rozalinda de Jesus, que casada com Manoel da Silva, sem filhos, sem herdeiros diretos, deixou a terça de seus bens ao marido 14. 11 12 13 14 Passamento é um termo utilizado pelos próprios testadores ao referirem-se ao momento de sua morte, simbolizando uma passagem para o pós-morte. Para isto, ver Testamentos. Cartório da Provedoria de Santa Maria. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maços 2. Estante 149. Autos de número 40 ao 76. 1864-1882. / Testamentos. Cartório da Provedoria de Santa Maria. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maços 3. Estante 149. Autos de número 77 ao 134. 1882-1907. REIS, João José. O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista. IN: Alencastro, L. F. História da vida Privada no Brasil. v 2. São Paulo: Companhia das Letras. p.95-142. 1997. p. 104 Maços 3. Estante 149. Auto número 98, 1890.

As preocupações com a confecção do testamento, fosse ela antecipada ou com a morte a espreitar, trazia em seu conteúdo muitos pedidos e ás últimas vontades do testador. Estes poderiam ser escolhidos como momento de reparação moral 15, em que algumas atitudes tomadas em vida poderiam ser corrigidas. Filhos eram reconhecidos, casamentos realizados, escravos prestativos libertados, afilhados e sobrinhos queridos eram tratados como filhos e recompensados. Talvez com a idéia de que o no dia de prestar contas ao Tribunal Celeste, estivesse tudo claro e em ordem para poder se dar o seu julgamento. Isso fizesse com que os acertos de contas fossem realizados, tanto com o mundo terreno, quanto com o mundo do sagrado. Era o momento em que promessas eram pagas, contas com os santos e dívidas com os vivos também procuravam ser quitadas. Acreditava-se, segundo as crenças católicas, que corrigir erros do passado e fazer justiça limparia a consciência dos testadores 16, como também as suas almas dos pecados, e assim poderiam enfrentar a justiça divina sem temer os castigos que poderiam sofrer no pósmorte, como por exemplo, o tempo a ser passado no Purgatório. A crença no purgatório implicava antes de tudo em uma crença na imortalidade e na ressurreição, em que algo de novo poderia acontecer entre a morte e a sua ressurreição para o dia do Julgamento Final. A possibilidade de purgar os pecados da alma e enfim alcançar os Céus após uma estadia no purgatório, dava novas esperanças aos que compartilhavam desta crença. O tempo a ser passado no purgatório poderia ser amenizado através da quantidade de missas rezadas em nome da alma do pecador, em que missas eram mandadas rezar em vida ou deixadas solicitadas em suas últimas vontades testamentais. Alguns pensavam que apenas duas missas seriam o suficiente, outros pediam dezesseis e havia os que pediam que fossem rezadas vinte missas por suas almas. Havia aqueles que não especificavam uma quantia exata de missas a serem rezadas por suas almas e, que apenas requeriam junto aos seus testamenteiros que esses apontassem a quantia após sua morte. Joaquim Mariano Teixeira 17 deixou para serem rezadas 10 missas pelas almas do purgatório. Assim como ele, muitos outros também deixaram estes pedidos em seus testamentos, como o testador que deixou 16 missas por sua alma e mais 3 pela de seus pais 18, asegurando também a alma dos pais. Ou 15 16 17 18 Maços 2. Estante 149. Auto número 40, 1864. Reis, João José. 1997. op.cit. p.103. Reis, João José. 1999. op.cit. p.95. Maços 2. Estante 149. Autos número 42. 1864.

ainda aquele que solicitou 100 missas para o eterno descanso de sua alma 19. Julgando eles, quantas missas seriam necessárias para livrarem as suas almas de uma estadia muito longa no purgatório. Os testadores também deixavam orientações para a quitação das dívidas adquiridas em vida e as que pudessem ser adquiridas depois de sua morte, em conseqüência dos gastos com o seu funeral e sepultamento. Acreditava-se que aqueles que realizavam o seu passamento sem deixar tudo arrumado neste mundo, não conseguiriam bons lugares no mundo dos mortos, ou que passariam um longo período no Purgatório, pois, para poder descansar em paz, o alheio deveria ser restituído, ninguém poderia ficar com aquilo que não lhe pertencia, suas dívidas com os vivos deveriam ser pagas 20. O pagamento de dívidas com os vivos, o pagamento de promessas aos Santos e os incontáveis pedidos de missas formam o conjunto do que se pode denominar por acerto de contas tanto com o mundo dos vivos quanto com o mundo dos mortos. As missas e o seu meio de negociar a salvação das almas, segundo J.J. Reis, a moeda corrente do Além 21. A confecção dos testamentos, os mecanismos de elaboração destes documentos, os pedidos e últimas vontades, somados as boas ações e as solicitações de missas em prol das almas dos mortos configuravam todo o processo que permitiriam a salvação da alma do testador. Considerações Finais As necessidades de serem confeccionados testamentos, o amparo dado aos familiares e as pessoas próximas, as últimas vontades do testador e as preocupações com o pós-morte e a salvação da alma, fazem dos testamentos fontes riquíssimas aos estudos das atitudes perante a morte na sociedade Santamariense da segnda metade do século XIX. Os testamentos, além de serem uma forma de preparação para a morte, por parte dos seus testadores e testamenteiros, serviam ainda como meio de comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo do pós-morte, em que contiam os acertos de contas e os cuidados a 19 20 21 Maços 2. Estante 149. Autos número 60. 1870. Maços 3. Estante 149. Autos número 134, 1899. Reis, João José. 1997. op. cit. p.102. Reis, João José. 1997. op. cit.p.103.

serem tomados para a salvação da alma do testador. Revelavam, desta forma, as atitudes tomadas pelo testador frente à proximidade da morte e a sua espera. Encaminhavam todas as últimas ações do falecido ao Tribunal Celeste, colocando em perigo, ou determinando a salvação e o descanso de sua alma. Referências Bibliográficas: ARIÈS, Philippe. O Homem Perante a Morte. Traduzido por Ana Rabaça. 2 ed. Portugal: Europa-América. v.1. 2000... v.2. [19--].. História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos nossos dias. Traduzido por Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro. 2003. CATROGA, Fernando. Morte romântica e religiosidade cívica. IN: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal: O Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Estampa, v.5. p. 594-607. [19--].. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos (1756-1911). Coimbra: Minerva. 1999. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no cotidiano da Colônia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1998. LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Editorial Estampa. 1981. MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Faces da liberdade, máscaras do cativeiro: experiências de liberdade e escravidão, percebidas através das cartas de alforria - Porto Alegre (1858-1888). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.. Os cativos e os Homens de Bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre: EST Edições. 2003. NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote: Mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. REIS, João José. O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista. IN: Alencastro, L. F. História da vida Privada no Brasil. v 2. São Paulo: Companhia das Letras. p.95-142. 1997.. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. VOVELLE, Michel. Sobre a Morte. IN: Vovelle, Michel. Ideologia e Mentalidades. 2

ed.traduzido por Maria Julia Cottvasser. São Paulo: Brasiliense. p.127-150. 1991.. Imagens e Imaginário na História: Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ática. 1997.